Thor, o deus do trovão, tinha um fiel servidor chamado Thialfi. Eles se conheceram da seguinte maneira: Thor e o astucioso Loki haviam decidido ir até a Terra dos Gigantes (Jotunheim) para que Thor desafiasse aqueles arrogantes seres a uma disputa de força, bem ao gosto da época. Após um dia de cansativa viagem, entretanto, resolveram fazer pouso numa casa muito pobre – pois era a única que avistaram nas proximidades. Thor desceu sua carruagem puxada por dois vigorosos bodes e junto com Loki pediu alojamento por aquela noite. Estavam já sentados à mesa para matar a fome de um dia inteiro de caminhadas, quando Thor percebeu que aquela frugalíssima refeição não seria nem de longe o suficiente para saciar o seu monstruoso apetite.
– Só isto: duas nozes e um pedaço rançoso de queijo? – disse Thor, com o semblante irado, ao dono da casa e à sua mirrada esposa.
– É o que a pobreza nos permite, poderoso deus…! – disse o humilde anfitrião. Mas, neste momento, ele escutou o balir de suas duas cabras, que estavam lá fora, no pequeno redil.
– Garoto, vá até lá e traga já os dois animais! – disse Thor a Thialfi, que era o filho do dono da casa.
Thialfi deu um olhadela em seus pais e estes confirmaram, sem coragem para contestar o desejo do irascível deus. Num instante, as duas cabras estavam na sala apertada, espremidas com os demais.
– Matem-nas e façam uma bela caldeirada! – disse Thor ao casal.
O velho, entretanto, temeroso de que isto pudesse enfurecer o deus, disse:
– Mas, poderoso deus, são as suas cabras!…
– Loki, mate-as você, já que nossos anfitriões se recusam a nos saciar a fome! –
bradou Thor, com o semblante ainda mais irado.
Loki deu cumprimento à ordem, e logo os pedaços das duas cabras estavam nadando dentro de um imenso caldeirão. Thor e Loki comeram com imenso prazer, mas Thialfi e seus pais mal puderam mastigar alguns bocados, pois temiam estar cometendo algum sacrilégio.
Thor custou a perceber a angústia dos anfitriões, mas, uma vez avisado por Loki, tratou de lhes acalmar a aflição.
– Não se preocupem – disse ele, com a barba ruiva manchada pelo molho. – Basta que recolham os ossos das duas cabras e os coloquem dentro de suas respectivas peles e amanhã os animais estarão inteiros outra vez.
O rosto dos anfitriões iluminou-se e, somente então, puderam comer a refeição – ou pelo menos o que sobrara dela – com gosto e alegria.
Loki, entretanto, dominado pelo seu furor em armar confusões, decidiu aprontar uma para cima daqueles pobres coitados. Cochichou, matreiramente, ao ouvido de Thialfi: –
Thor não lhes deixou grande coisa: veja só o que restou…!
De fato, dentro do caldeirão restavam apenas os ossos das duas cabras, lisos como pedras.
– Abra um deles e chupe o tutano! – cochichou ainda a Thialfi. – Verá que não há nada mais saboroso do que o tutano de uma bela cabra cozida!
O jovem, esfomeado, seguiu o conselho e saboreou o petisco. Terminada a refeição, foram todos deitar, não sem antes devolver os ossos às respectivas peles.
Nunca uma noite foi tão contrastante como aquela, pois enquanto os dois visitantes dormiam e roncavam como duas sonoras tubas, os moradores da casa não podiam desgrudar os olhos, lá de seus miseráveis leitos, das peles recheadas de ossos, que jaziam atiradas a um canto. Mesmo quando tentavam fechar os olhos para dormir um pouco, tudo o que conseguiam ver nesta modorra angustiante era as duas cabras desconjuntadas, tentando se manter, desesperadamente, em pé e o deus tomado pela ira, arrebentando com tudo.
Porém, tão logo amanheceu, o velho dirigiu-se humildemente a Thor, e disse, enquanto fazia girar em suas encarquilhadas mãos o seu velho gorro:
– Poderoso Thor, será que elas voltarão a ser como eram…?
– Elas quem?… – disse o deus, com as barbas emaranhadas pelo sono.
– As suas cabras! – disse o velho, apontando para as peles cheias de ossos.
– Ah, sim! – exclamou o deus, tomando de seu martelo Miollnir. – Aproximando-se, então, dos restos dos animais, tocou-os com o martelo e eis que ali estavam outra vez, inteiros c saudáveis, os dois animais!
– Viva! – exclamou Thialfi junto da mãe, que batia palmas feito uma criança.
Mas cedo desfez-se a alegria, pois logo Thor percebeu que uma das cabras coxa.
Thor, encolerizando-se, ameaçou matar a família inteira, enquanto Loki tapava a boca com a mão para esconder o riso.
Os dois velhos arrojaram-se diante do deus e clamaram de mãos postas:
– Por favor, poderoso Thor! Perdoa a gula de nosso irresponsável filho! Há muitos meses que não sabia o que era provar o gosto de uma carne!
Mas, Thor estava irredutível e prestes a fazer descer seu pavoroso martelo sobre a cabeça dos infelizes quando o velho, em desespero, disse-lhe:
– Leve consigo o meu filho! Ele será seu escravo para sempre! Somente então, Thor sentiu aplacar sua ira.
– Está bem, levarei o jovem comigo! – disse ele, encaminhando-se para a porta, juntamente com Loki, o causador de tudo.
E foi assim que, ao mesmo tempo, Thialfi tornou-se o servo predileto de Thor e dois pobres pais perderam o animo de sua velhice.
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