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O Espelho da Alma: Uma Leitura de “O Iluminado”

Existe um tipo de frio que nem o aquecedor mais potente consegue aquecer. Um frio que nasce não do inverno lá fora, mas de dentro, onde o homem que você pensava ser vai morrendo devagar, célula por célula, até sobrar apenas a casca.

Você já sentiu vontade de machucar quem mais ama? Não por raiva, não por ciúme. Por tédio. Por uma curiosidade mórbida de saber até onde pode ir antes que algo se quebre definitivamente. Essa vontade vive em você, adormecida, esperando o momento certo para acordar. E quando acorda, ela não pede licença.

É disso que Kubrick fala em O Iluminado. Não de fantasmas. Não de hotéis mal-assombrados. Ele fala do único horror que realmente importa: o de descobrir que o monstro sempre foi você.

Sempre esteve aqui

O Overlook Hotel não é um lugar. É um estado mental. Aqueles corredores infinitos, repetitivos, hipnóticos, são o interior da mente humana quando ela começa a se dobrar sobre si mesma. Cada porta fechada é um trauma não resolvido. Cada eco é uma lembrança que se recusa a morrer.

Jack Torrance não enlouquece no hotel. Ele se revela. O isolamento não cria a loucura, apenas remove as camadas de civilização que a escondiam. Tire um homem do seu contexto social, do seu trabalho, das suas obrigações, e o que sobra? O que sempre esteve lá.

A genialidade de Kubrick está em mostrar que o horror não vem de fora. Vem de dentro. Os fantasmas do hotel são apenas projeções. O verdadeiro fantasma é Jack, assombrando a própria família muito antes de chegar ao Colorado.

Durante os primeiros dias, Jack ainda performa o papel de pai e marido. Sorri nas horas certas, diz as palavras adequadas, finge interesse pelas preocupações de Wendy. Mas é uma performance cada vez mais mecânica, como um ator que se esqueceu do texto e improvisa mal.

A escrita é o ritual que mantém a máscara no lugar. “All work and no play makes Jack a dull boy“. Essa frase não é sintoma de loucura. É o mantra da sanidade forçada. Jack repete para se convencer de que ainda é normal, de que ainda existe um Jack escritor, um Jack produtivo.

Mas repetição é hipnose. E hipnose é dissolução. Cada linha que ele digita é uma camada de identidade que se dissolve. Até sobrar apenas a verdade nua: ele nunca quis ser escritor. Nunca quis ser marido. Nunca quis ser pai.

Ele só queria ser deixado em paz para odiar.

Você sempre foi o zelador

Quando Jack encontra Lloyd no salão dourado, não está conversando com um fantasma. Está conversando com a linhagem. Com todos os homens que vieram antes dele e fizeram as mesmas escolhas. Que olharam para suas famílias e sentiram o mesmo fastio, a mesma claustrofobia, o mesmo desejo primitivo de quebrar tudo.

A festa de 1921 não aconteceu no passado. Acontece no presente, toda vez que um homem escolhe o álcool em vez da responsabilidade, a violência em vez da conversa, o ego em vez do amor. Jack não está revivendo o passado. Está cumprindo um roteiro que se repete em ciclos.

Delbert Grady não é uma assombração. É um espelho. Quando ele diz que Jack “sempre foi o zelador”, está revelando a verdade que Jack já sabia: ele sempre foi o tipo de homem capaz de matar a própria família. O hotel apenas ofereceu a oportunidade.

O labirinto no jardim é a mente de Jack vista de cima. Aqueles caminhos sem saída, aquelas voltas que levam ao mesmo lugar, aquela sensação de estar perdido mesmo conhecendo o caminho — é assim que funciona a consciência em colapso.

Danny corre pelo labirinto porque entende algo que Jack não entende: a saída existe. Sempre existiu. Mas para encontrá-la, é preciso parar de correr em linha reta. É preciso aceitar que às vezes o caminho para frente é o caminho para trás.

Jack se perde no labirinto porque se recusa a voltar. Para ele, voltar é fracasso. Admitir erro. Pedir desculpas. Reconhecer que machucou quem ama. Então ele prefere morrer congelado, sozinho, a reconhecer que errou o caminho.

Eu não vou machucar você

A frase mais aterrorizante do filme não é um grito. É um sussurro. Jack dizendo para Wendy que não vai machucá-la, enquanto destrói a porta com um machado. A perversidade não está na violência. Está na mentira. Na capacidade de olhar para alguém e dizer exatamente o oposto do que se pretende fazer.

Isso você reconhece. É o mesmo tom que você usa quando diz “estou bem” estando destroçado. Quando diz “te amo” sentindo nada. Quando diz “não foi nada” depois de magoar alguém profundamente. A mentira não é para proteger o outro. É para proteger a própria imagem.

Jack não quer ser visto como monstro. Quer ser visto como vítima. Como o homem incompreendido, pressionado além do limite, forçado a fazer o que fez. Por isso sorri enquanto persegue Danny. Por isso fala com carinho enquanto quebra tudo. Ele não é um psicopata. É pior. É um homem comum que se recusa a assumir a própria monstruosidade.

A última imagem do filme é Jack sorrindo em uma fotografia de 1921. Não é um twist sobrenatural. É uma revelação psicológica. Jack finalmente encontrou seu lugar: entre os homens que escolheram a violência. Entre os que preferiram destruir a construir. Entre os que transformaram o amor em ódio porque era mais fácil.

Ele não morreu no labirinto. Ele finalmente viveu. Pela primeira vez na vida, foi completamente honesto sobre quem era. E honestidade, mesmo a mais sombria, é uma forma de liberdade.

A tragédia de Jack não é ter se tornado um monstro. É ter descoberto que sempre foi um. O hotel não o transformou. Apenas retirou as máscaras que o mundo o obrigou a usar.

O Iluminado não é um filme sobre hotéis assombrados. É um filme sobre lares assombrados. Sobre como o homem que deveria proteger é o mesmo que destrói. Sobre como o amor pode virar ódio quando não é correspondido da forma exata que esperamos.

Você conhece esse homem. Ele está na mesa de jantar quando o silêncio fica pesado demais. Está no carro quando a discussão não termina. Está no quarto quando ele vira as costas e você sabe que algo morreu entre vocês.

Jack Torrance não é uma exceção. É uma possibilidade. A sombra que todo homem carrega e que a maioria consegue manter na coleira. Sua tragédia não é ter perdido a sanidade. É ter finalmente encontrado a verdade.

E a verdade, às vezes, é insuportável para quem ama. Mas libertadora para quem odeia.


Nem todo labirinto tem saída. Alguns são construídos para se perder para sempre.