O castigo de Loki

Depois de haver provocado a morte de Balder, o mais querido dos deuses, ainda sobrara ruindade bastante a Loki, o mais perverso, para impedir que o primeiro retornasse do mundo dos mortos. Ele se recusou a lamentar o desaparecimento de Balder (condição imposta por Hei, a deusa da morte, para que aquilo ocorresse). Com isto, Odin perdera, definitivamente, o seu filho e também a paciência, decidindo punir, de uma vez, as maldades de Loki.

Este, entretanto, que era tudo menos idiota, farejara logo o perigo e, por isto, tratara imediatamente de desaparecer, buscando refúgio num local ermo e inacessível. Para tanto, escolheu o pico da mais alta montanha que pôde encontrar. Ali, construiu uma cabana, dotada estrategicamente de quatro portas cada qual voltada para um lado do mundo, de modo a não ser pego desprevenido. Mas isto somente à noite, porque durante o dia metamorfoseava-se em um enorme salmão, mergulhando nas águas de uma cachoeira que corria ao pé da montanha. “Aqui dentro, eles jamais me encontrarão!”, pensava o Loki-salmão, sempre que descia às profundezas e gozava da proteção e liberdade que aquele lugar lhe proporcionava. “Impressionante como um peixe podia ser livre”, pensava todas as vezes que subia até a superfície e depois mergulhava outra vez até quase roçar as algas que se embalavam no fundo numa elegante e graciosa coreografia. -Céus, isto é quase como voar!… – dizia eufórico aos outros peixes, que ficavam, no entanto, observando-o com aquele olhar parado e idiota, que só os peixes e os empregados de qualquer emprego que exista neste mundo possuem.

Mas, ele sabia também que o paraíso do qual gozava era efêmero (como de resto, todos os paraísos), porque estava contaminado pelo remorso – ou seja, pelo medo de uma punição. Então, a idéia obsessiva que ronda o pensamento de todo os perseguidos, apossou-se também de seu cérebro: Como escapar ao perseguidor!

“Um peixe é pescado, naturalmente, e para isto se usa um anzol”, pensou ele, enquanto nadava no fundo de um lado para o outro. “Conseqüentemente, a partir de hoje, jamais morderei qualquer coisa que me surja presa num anzol!”, completou, aplaudindo-se todo com suas nadadeiras. (Pode parecer uma conclusão demasiado óbvia para nós, mas, levando-se em conta que milhões de peixes ainda não foram capazes de perceber uma trapaça ordinária como esta, isto já foi um grande passo.) Em seguida, dando seqüência ao seu raciocínio – lembremos que ele pensou tudo isto com seu minúsculo cérebro de salmão – começou a imaginar um outro meio de que se poderiam servir os deuses para capturá-lo. Durante o dia inteiro, esteve a matutar sobre os mil estratagemas possíveis até que teve uma idéia verdadeiramente espantosa:

“E se eles confeccionassem uma cortina de arame e a arrastassem pela água até me capturar?” (Aqui é preciso esclarecer que a rede de pesca ainda não fora inventada, daí, a denominação tosca e improvisada.)

Esta possibilidade inquietou profundamente o coração de Loki, que correu imediatamente para a sua casa no alto da montanha e se pôs a fabricar uma destas

“cortinas de arame”. “Se eu não for capaz de fabricar um artefato suficientemente forte para ser nele apanhado, ninguém o conseguirá, eis que sou o mais esperto dos deuses!”, pensou ele, convicto de que só quando chegasse a esta certeza teria sossego para nadar em paz novamente nas águas refrescantes da sua cachoeira.

Odin, entretanto, não desistira ainda de localizar o assassino de seu mais amado filho; por isto, sentado em seu trono, Hlidskialf, de onde podia observar tudo que se passava nos quatro cantos do mundo, percorria, dia após dia, com olhar atento, cada centímetro dos nove mundos, à procura de Loki. – Mais cedo ou mais tarde meu único olho pousará sobre ele e, então, ai de seu pescoço…! – dizia Odin aos demais deuses reunidos à sua volta. – De repente, o velho deus deu um pulo do trono, seguido de um grito: – Arrá! Lá está o patife…!

E, lá estava mesmo: sentado num banco, Loki costurava calmamente a sua rede.

– O que o idiota está fazendo? – perguntou Odin, sem nada entender. -Então, reunindo os deuses da sua assistência, partiu logo à caça de Loki. Mas, este, que mantinha as quatro portas de sua casa, no alto da montanha, permanentemente abertas, pressentiu a chegada dos intrusos tão logo estes começaram a escalar o monte.

“Malditos!”, exclamou ele, juntando a rede e correndo a lançá-la na lareira da sala. Seu semblante era de puro terror, pois, neste meio tempo, ele havia descoberto que aquela rede seria o instrumento ideal para a sua captura. – Queima, desgraçada, queima de uma vez…! – dizia ele, com as bochechas escarlates do esforço de assoprar as chamas, que envolviam rapidamente a rede.

Infelizmente, não pôde esperar mais, pois os intrusos já galgavam os últimos metros antes de chegar ao seu refúgio. Transformando-se novamente em salmão, deu um mergulho magnífico do alto até atingir a cachoeira com um golpe surdo, desaparecendo nas profundezas antes que se pudesse avistá-lo.

– Vamos, revistem tudo por aqui! – disse Odin, esquadrinhando cada canto da casa com seu único olho raiado de sangue.

Então, um grito estentóreo partiu da sala: – Odin, meu pai, venha cá ver o que encontrei! – Era Thor quem retirava os restos da rede da lareira, tentando apagar as línguas de fogo, que ainda a percorriam.

– O que é isto? – disse o velho deus, cocando a cabeça.

– Um cobertor de verão, ao que parece – disse Thor, indeciso.

– Uma teia de aranha gigante – aventurou Kvasir (um deus que teve uma origem estranha, tendo nascido do cuspo dos deuses numa escarradeira sagrada).

Mas, Odin, que era o mais sábio dos deuses – não à toa perdera um de seus olhos para adquirir o saber – depois de farejar a rede e sentir nela um cheiro inequívoco de peixe, logo compreendeu tudo: – Ah, então, era por isto que o maldito tecia esta malha! –

esbravejou. – Dê-me logo este anzol trançado e vamos direto para a cachoeira!

Assim, os três deuses desceram, rapidamente, a íngreme montanha, levando consigo o tal “anzol trançado” (como toda coisa inédita, a rede recebia a cada instante uma nova denominação). – Agora, lancem-na sobre a água! – ordenou Odin, tão logo, viram-se todos ao pé da cachoeira.

– Deixe comigo, deus poderoso! – disse Thor, fazendo um bolo compacto da rede e lançando-a sobre a água com um arremesso viril.

– Não, idiota!… – exclamou o velho deus, levando as duas mãos a cabeça. – Aberta, imbecil! Lance-a toda aberta!

A rede foi, imediatamente, recolhida pelo deus do trovão, espichada e lançada outra vez. Como uma toalha esgarçada, ela voou pelos ares e foi cair sobre o rio com um plaf!

sonoro, ficando depois a boiar acima das ondas de maneira inútil e melancólica. Odin abaixou os olhos com um ar de desânimo: “É triste… muito triste!…”, pensou ele, meditando, com certeza, sobre o poder de raciocínio de seu amado filho. Assumindo, então, o comando das operações, ordenou que Kvasir segurasse uma ponta enquanto ele seguraria a outra. – Você, Thor, ficará à espreita, para o caso de Loki pular por cima, entendeu?

Thor ficou com o olhar perdido por alguns instantes, enquanto a cachoeira continuava a despejar as suas águas em seu arremesso incessante.

– Mas, meu deus, entendeu?… – exclamou Odin, arregalando a órbita vazia.

– Claro, meu pai! – disse Thor, cujos neurônios haviam, finalmente, chegado a um consenso.

No primeiro arrastão, Loki-salmão conseguiu escapar com um jogo de corpo verdadeiramente admirável; no segundo, arrastou-se pelo cascalho do rio, enquanto a malha apenas lhe roçara uma das barbatanas; mas, na terceira vez, viu-se obrigado a pular para fora da água, sendo apanhado, imediatamente, pela mão ágil de Thor. –

Peguei-o! – gritou ele, em triunfo. – Aqui está!…

Loki viu-se obrigado a readquirir a sua forma humana ao ver-se frente a frente com Odin. Chegara, afinal, a hora do acerto de contas.

– Agora, desgraçado, pagará pela morte de Balder, meu saudoso filho! – disse Odin, cujos cantos da boca espumavam.

Loki foi levado para uma gruta profunda e desabitada, por um caminho que só Odin conhecia. Uma vez ali, foi amarrado a três rochas imensas – com cordas retiradas dos tendões de Narvi, um dos filho de Loki, que fora morto expressamente para isto -, de modo que não pudesse jamais se libertar.

Mas mesmo aquele castigo pareceu a Odin suave demais. Por isso, ordenou à giganta Skadi – que se tornara inimiga de Loki, após ter sido repudiada por ele – que encantasse uma serpente e a mantivesse pendurada sobre o rosto de Loki. De sua boca, escorria uma baba peçonhenta e incessante que, ao atingir as faces do deus, provocavam-lhe uma dor intolerável. Achando, então, que aquele castigo era cruel o bastante, Odin retirara-se com os demais deuses. – Aí, ficará até o final dos tempos, tal como o seu odioso e carniceiro filho! – disse Odin, referindo-se ao gigantesco lobo Fenris, terror dos deuses, que estes também haviam aprisionado há muito tempo.

Entretanto, passados alguns dias, a esposa de Loki, a fiel e dedicada Sigyn, dera um jeito de descobrir o local onde o esposo estava aprisionado. Desafortunadamente, nem ela nem ninguém seriam capazes de libertar Loki de suas cadeias. Por isso, não lhe restou outra alternativa senão mitigar-lhe os seus sofrimentos. Tomando de um cálice, ela, desde então, permanece noite e dia ao lado do desgraçado deus, recolhendo o veneno que pinga da boca da serpente para que seu amado esposo tenha um descanso nos seus tormentos. Quando o cálice enche, entretanto, ela é obrigada a esvaziá-lo e algumas gotas atingem o rosto de Loki, que se contorce em indizíveis espasmos.

– Mulher idiota! – guinchava ele, em meio aos seus pavorosos estertores. – Não podia ter arranjado um cálice maior?

Sigyn, com a alma dilacerada pela dor, fazia menção de sair para ir buscar um outro maior. Mas, agora, Loki já não suportava a idéia de ter de esperar o seu retorno sob aquele tormento infame. Por isto, tão logo, ela esvaziava o pequeno cálice, ele implorava à esposa que o recolocasse, imediatamente, sobre a sua cabeça e, assim, seguirão ambos nesta pavorosa rotina até que chegue o dia da esperada Ragnarok, a terrível conflagração final, que porá fim ao mundo dos deuses. Neste dia, Loki será finalmente liberto do seu suplício para comandar as hostes malignas que enfrentarão os deuses, provocando a morte de todos, inclusive a dele próprio, uma vez que todos os autores de crimes nefandos, bem como todos aqueles que os puniram com desmedida crueldade, serão banidos para sempre deste mundo.

Veja outros posts sobre a Mitologia Nórdica:


QUER VIRAR ESCRITOR?
PARTICIPE DO UNIVERSO ANTHARESSAIBA COMO CLICANDO AQUI.

A pescaria de Hymir e Thor - Universo Anthares

A pescaria de Hymir e Thor - Universo Anthares

[…] O castigo de Loki […]

Os Filhos de Loki - Universo Anthares

Os Filhos de Loki - Universo Anthares

[…] O castigo de Loki […]

Loki – Mitologia Nórdica - Universo Anthares

Loki – Mitologia Nórdica - Universo Anthares

[…] O castigo de Loki […]

Freya e o colar dos anões - Universo Anthares

Freya e o colar dos anões - Universo Anthares

[…] O castigo de Loki […]

A história de Gerda e Frey - Universo Anthares

A história de Gerda e Frey - Universo Anthares

[…] O castigo de Loki […]

O Casamento Incomum de Freya - Universo Anthares

O Casamento Incomum de Freya - Universo Anthares

[…] O castigo de Loki […]

Sigurd e Brunhilde - Universo Anthares

Sigurd e Brunhilde - Universo Anthares

[…] O castigo de Loki […]

Comments are closed.