O Mestre Construtor

O Mestre Construtor

Thor tinha ido para o leste lutar contra os trolls. Asgard era mais pacífica sem sua presença, mas cava desprotegida. Isso foi nos primórdios, logo depois do tratado de paz entre os Aesir e os Vanir, quando os deuses ainda estavam criando seu lar e Asgard tinha poucas defesas.

— Não podemos depender de Thor o tempo todo — constatou Odin. — Precisamos de proteção. Os gigantes virão nos atacar. Os trolls virão.

— O que você propõe? — perguntou Heimdall, o guardião da Bifrost, a ponte arco-íris.

— Um muro. Alto o bastante para que nenhum gigante do gelo consiga escalá-lo. E espesso o bastante para que nem o troll mais forte consiga derrubá-lo.

— Construir um muro desses, tão alto e espesso, vai levar muitos anos — alegou Loki.

Odin assentiu.

— Mesmo assim precisamos de um muro.

No dia seguinte, um desconhecido chegou a Asgard. Era um homem grande, com trajes de ferreiro, e atrás dele vinha um cavalo arisco, um garanhão enorme e cinzento com um lombo largo.

— Soube que vocês precisam construir um muro — comentou o estranho.

— Prossiga — disse Odin.

— Posso construir esse muro — anunciou o estranho. — Um muro tão alto que nem o gigante mais alto consiga escalá-lo, e tão largo que nem o troll mais forte consiga derrubá-lo. Meu trabalho será tão primoroso, empilhando pedra sobre pedra, que nem uma formiga vai se esgueirar através dele. Construirei um muro que resistirá durante mil milhares de anos.

— Um muro desses vai levar muito tempo para ser construído — comentou Loki.

— Muito pelo contrário — retrucou o estranho. — Consigo terminá-lo em apenas três estações. Amanhã é o primeiro dia do inverno. Eu só levaria um inverno, um verão e mais outro inverno para construir.

— E se você se dispusesse a fazer isso, o que desejaria como recompensa? — indagou Odin.

— Peço pouco, um pagamento justo pelo serviço que estou oferecendo. Apenas três coisas. Primeiro, gostaria da mão da bela deusa Freya em casamento.

— Isso não é pouco — retrucou Odin, o Pai de Todos. — E não vou me surpreender se Freya tiver a própria opinião a respeito dessa proposta. Quais são os outros dois pedidos?

O estranho abriu um sorriso arrogante.

— Se eu construir seu muro, quero a mão de Freya. E também quero o sol que brilha no céu durante o dia e a lua que nos dá luz à noite. Essas são as três coisas que os deuses me darão se eu construir o muro.

Os deuses olharam para Freya. Ela nada disse, mas comprimiu os lábios, e seu rosto ficou lívido de raiva. Em seu pescoço estava o colar Brisingamen, que brilhava feito as luzes da aurora boreal, e seu cabelo havia sido entrelaçado com ouro, que era quase tão brilhante quanto os os.

— Espere lá fora — disse Odin para o estranho, por fim.

O homem saiu, mas não sem antes perguntar onde encontraria comida e água para seu garanhão, Svadilfari, que significa “o que tem uma jornada de infortúnios”. Odin esfregou a testa. Então se virou para todos os outros deuses e perguntou:

— O que acham?

Os deuses começaram a falar.

— Silêncio! — bradou Odin. — Um de cada vez!

Cada um dos deuses e deusas tinha sua opinião, e todos concordavam: Freya, o Sol e a Lua eram importantes e valiosos demais para serem cedidos a um estranho, mesmo que ele pudesse erguer o muro de que precisavam em apenas três estações. Freya achava que o homem devia ser surrado pela impertinência e expulso de Asgard, para seguir com seu caminho.

— Então está decidido — anunciou Odin. — Nossa resposta é não.

Alguém pigarreou no canto do salão. Era o tipo de pigarro usado para chamar a atenção, e os deuses se viraram para ver quem se manifestara. Viram Loki, que os encarava de volta, sorrindo com um dedo erguido, como se tivesse algo importante a anunciar.

— Preciso salientar que vocês estão ignorando um ponto importantíssimo.

— Acho que não negligenciamos ponto algum, encrenqueiro dos deuses — retrucou Freya, com sarcasmo.

— O que vocês estão ignorando é que o que esse estranho está se propondo a fazer sem dúvida é impossível. Não há vivalma que possa construir uma muralha tão alta e tão grossa como a que ele descreveu em apenas dezoito meses. Gigante ou deus nenhum poderia completar esse feito, muito menos um mortal. Eu apostaria minha própria pele.

Todos os deuses assentiram, concordando com o comentário de Loki, resmungando e parecendo impressionados. Todos, menos Freya; ela parecia com raiva.

— Vocês são tolos — declarou a deusa. — Principalmente você, Loki, porque se acha esperto.

— O que ele alega poder fazer é impossível — retrucou Loki. — Então sugiro o seguinte: concordamos com as exigências e o preço, mas estabelecemos condições muito rígidas. Dizemos que ele não pode ter ajuda na construção e que, em vez de três estações para finalizar o muro, terá apenas uma. Se no primeiro dia de verão qualquer parte do muro estiver inacabada, e é óbvio que vai estar, então não pagaremos nada.

— E por que ele concordaria com nossas condições? — perguntou Heimdall.

— E o que nós ganharíamos com isso, se no m vamos continuar sem muro? — perguntou Frey, irmão de Freya.

Loki tentou conter a impaciência. Será que todos os deuses são tolos?, perguntou-se. Então começou a explicar, como se todos no salão fossem criancinhas.

— O ferreiro vai começar a erguer o muro. Mas não vai terminar. Ele vai trabalhar por seis meses, sem receber nada, em uma tarefa impossível. Ao m dos seis meses, vamos mandá-lo embora, talvez até mesmo surrá-lo, pela presunção. Mas aí poderemos usar o que ele já tiver construído como fundação e completar o muro nos próximos anos. Não há risco de perdermos Freya, muito menos o Sol e a Lua.

— E por que ele concordaria em construir tudo em uma única estação? — perguntou Tyr, o deus da guerra.

— Ele pode até não concordar — argumentou Loki —, mas parece ser um sujeito arrogante e seguro de si, do tipo que não recusa um bom desafio.

Todos os deuses resmungaram, deram tapinhas nas costas de Loki e disseram que ele era muito astuto, e como era bom um sujeito tão astuto estar do lado deles, pois conseguiriam negociar para que as fundações do muro fossem construídas a troco de nada. Os deuses se parabenizaram pela sua inteligência e habilidade de barganha. Freya nada disse. Ela remexia no colar de luz, Brisingamen. Era o mesmo colar que Loki roubara assumindo a forma de uma foca enquanto ela tomava banho — e Heimdall também assumira forma de foca para lutar contra Loki e obrigá-lo a devolvê-lo. Freya não confiava em Loki. E não gostou nada de como aquela conversa tinha terminado. Os deuses chamaram o construtor de volta ao salão. Ele olhou para os deuses a sua volta. Todos pareciam de bom humor, rindo, se cutucando e sorrindo. Freya, entretanto, estava séria.

— E então? — perguntou o construtor.

— Você pediu três estações — disse Loki. — Mas vamos lhe conceder uma estação, e apenas uma. Amanhã é o primeiro dia de inverno. Se você não tiver terminado o muro no primeiro dia de verão, vai embora daqui sem nenhum pagamento. Mas, se tiver terminado de construir um muro tão alto, espesso e inexpugnável quanto concordamos, vai receber tudo que pediu: a Lua, o Sol e a mão da bela Freya. Porém, você não pode ter ajuda de ninguém na construção do muro: deve fazê-lo sozinho.

O estranho passou alguns segundos em silêncio. Com uma expressão contemplativa, ele avaliava as palavras e condições de Loki. Por m, olhou para os deuses e deu de ombros.

— Vocês disseram que não posso ter ajuda. Mas eu gostaria que meu cavalo, Svadilfari, me ajudasse a trazer para cá as pedras que vou usar para erguer o muro. Acredito que não seja um pedido absurdo.

— Não é — concordou Odin, e os outros deuses assentiram e comentaram uns com os outros como cavalos eram bons para transportar pedras pesadas.

Juramentos foram feitos, e do tipo mais poderoso que existe, no qual nenhum dos lados pode trair o outro. Juraram sobre suas armas; juraram sobre Draupnir, o bracelete de ouro de Odin; e juraram sobre Gungnir, a lança de Odin. E um juramento feito sobre Gungnir era inquebrável. Na manhã seguinte, ao amanhecer, os deuses pararam para ver o homem trabalhar. O sujeito cuspiu nas mãos e começou a cavar o fosso onde colocaria as primeiras pedras.

— Ele cava fundo — comentou Heimdall.

— E cava rápido — constatou Frey, irmão de Freya.

— Bem, é verdade que ele é um excelente escavador de fossos e valas — concordou Loki, mal-humorado.

— Mas imaginem quantas pedras ele terá que trazer até aqui, lá das montanhas. Cavar um fosso é uma coisa. Transportar pedras por vários quilômetros sem ajuda e empilhá-las uma sobre a outra de um jeito tão bem encaixado que nem uma formiga consiga passar entre elas, em uma construção tão alta que nem o mais alto dos gigantes consiga passar, é outra bem diferente. Freya olhou enojada para Loki, mas nada disse. Quando o sol se pôs, o construtor montou em seu cavalo e partiu para as montanhas a m de recolher as primeiras pedras. O cavalo levava um trenó de carga vazio atrás de si, que ia arrastando na terra macia. Os deuses os observaram partir. A lua estava alta e pálida no céu do primeiro dia de inverno.

— Ele vai voltar daqui a uma semana — previu Loki. — Quero ver quantas pedras seu cavalo pode carregar. Parece ser um animal forte.

Os deuses foram para o salão de banquetes, onde houve muita alegria e risos, mas Freya não ria. Nevou antes do amanhecer, ocos de neve frágeis, um prenúncio da nevasca intensa do inverno que tinham pela frente. Heimdall, que via tudo que se aproximava de Asgard, sem nada deixar passar, despertou os deuses ainda no escuro. Todos se reuniram diante da vala que o estranho cavara no dia anterior. Sob a luz que surgia pouco a pouco, os deuses viram o construtor ao lado de seu cavalo, ambos caminhando na direção de Asgard. O cavalo arrastava uma pilha de blocos de granito tão pesados que criavam sulcos profundos na terra negra.

Quando o construtor viu os deuses, acenou alegremente e lhes desejou um ótimo dia. Ele apontou para o sol nascente e deu uma piscadela. Então desatrelou o cavalo do trenó e o deixou pastar enquanto carregava o primeiro bloco de granito para a vala destinada a abrigá-lo.

— O cavalo é mesmo forte — constatou Balder, o mais belo de todos os Aesir. — Nenhum cavalo normal conseguiria arrastar rochas tão pesadas.

— É mais forte do que pensávamos — concordou Kvásir, o Sábio.

— Ah! — retrucou Loki. — Não vai demorar para o cavalo se cansar. Esse foi só o primeiro dia de trabalho. O animal não vai conseguir arrastar tantas pedras todas as noites. E o inverno está chegando. A neve vai se acumular e cará espessa, haverá nevascas cegantes, e o caminho para as montanhas cará mais difícil. Não há nada com que se preocupar. Tudo está seguindo de acordo com o plano.

— Odeio muito você — declarou Freya, de cara fechada ao lado de Loki.

A deusa voltou caminhando para Asgard sob a luz do amanhecer, pois não queria ficar para ver o estranho construir as fundações do muro. Toda noite, construtor e cavalo partiam para as montanhas levando o trenó. Toda manhã, eles retornavam com o cavalo arrastando mais vinte blocos de granito, cada bloco maior que o homem mais alto. A cada dia o muro crescia, e a cada anoitecer parecia maior e mais imponente do que antes. Odin convocou os deuses.

— O muro está subindo rápido — anunciou. — E fizemos um juramento inquebrável, um juramento sobre o bracelete e um juramento sobre a lança. Juramos que, se ele terminar de construir o muro a tempo, vamos dar a ele o Sol, a Lua e a mão da bela Freya em casamento.

— Homem nenhum pode fazer o que esse mestre construtor está fazendo — disse Kvásir, o Sábio. — Desconfio que ele não seja um homem.

— Um gigante, quem sabe — sugeriu Odin.

— Se ao menos Thor estivesse aqui — comentou Balder, com um suspiro.

— Thor está martelando trolls no leste — retrucou o Pai de Todos. — E, mesmo que estivesse prestes a retornar, os juramentos são poderosos e nos deixam de mãos atadas.

Loki tentou tranquilizá-los.

— Estamos agindo como velhas, nos preocupando à toa. O construtor não tem como terminar o muro antes do primeiro dia de verão, mesmo que seja o gigante mais poderoso que já existiu. É impossível.

— Queria que Thor estivesse aqui conosco — comentou Heimdall. — Ele saberia o que fazer.

A neve caiu, mas nem mesmo a neve espessa deteve o construtor ou reduziu a velocidade do cavalo, Svadilfari. O garanhão cinza puxava o trenó com enormes pilhas de pedra, atravessando montes de neve e nevascas, subindo e descendo colinas íngremes, adentrando desfiladeiros congelados. Os dias foram ficando mais longos. O amanhecer chegava mais cedo a cada manhã. A neve começou a derreter, e a lama que sobrava era grossa e pesada, o tipo de lama na qual as botas afundavam.

— De jeito nenhum o cavalo vai conseguir arrastar essas pedras pela lama — constatou Loki. — O trenó vai afundar, e o bicho vai perder o equilíbrio.

Mas Svadilfari era implacável, com passos firmes mesmo na lama mais grossa e úmida, e levou as pedras para Asgard, apesar de o trenó de carga estar tão pesado que abria sulcos profundos nas encostas dos morros. Agora o construtor erguia as pedras por dezenas de metros para assentá-las, bloco a bloco, em seu lugar. A lama secou, e as ores da primavera brotaram, uma profusão de tussilagens amarelas e anêmonas brancas despontando, e o muro ao redor de Asgard aos poucos se tornava uma coisa gloriosa, impossível. Quando estivesse terminado, seria inexpugnável: nenhum gigante ou troll, anão ou mortal, seria capaz de transpor sua proteção. E o estranho continuava trabalhando com o bom humor de sempre. Não parecia se importar se chovia ou nevava, nem seu cavalo. A cada manhã, os dois traziam pedras das montanhas, e a cada dia o construtor assentava os blocos de granito em camadas cada vez mais altas. Era o último dia de inverno, e o muro estava praticamente pronto. Os deuses sentaram em seus tronos, em Asgard, e conversaram.

— O Sol — constatou Balder.

— Nós abrimos mão do Sol. — Nós pusemos a Lua no céu para marcar os dias e as semanas do ano — comentou Bragi, o deus da poesia, melancólico. — Agora não haverá mais Lua.

— E Freya, o que será de nós sem Freya? — perguntou Tyr.

— Se o construtor for mesmo um gigante — disse Freya, com gelo na voz —, eu me casarei com ele e irei para Jötunheim. Será muito interessante descobrir quem odeio mais: se ele, que me levou embora, ou se todos vocês, que prometeram minha mão em casamento.

— Ora, não que assim… — começou Loki, mas Freya o interrompeu:

— Se esse gigante me levar junto com o Sol e a Lua, só tenho um pedido aos deuses de Asgard.

— Peça o que quiser — disse Odin, o Pai de Todos, que não se pronunciara até então.

— Gostaria que o responsável por esta calamidade fosse morto antes da minha partida — anunciou Freya. — É apenas justo. Se eu tiver que ir para a terra dos gigantes do gelo, se a Lua e o Sol forem tirados de nós, e o mundo for mergulhado em escuridão eterna, então a vida daquele que nos levou a isso deve ter um fim.

— Ah… — interveio Loki. — Mas apontar culpados é difícil em uma situação como esta. Quem consegue lembrar exatamente quem sugeriu o quê? Se não me falha a memória, todos os deuses compartilham igualmente a culpa por este erro desafortunado. Todos nós sugerimos, todos nós concordamos…

— Você sugeriu — disse Freya. — Você convenceu esses tolos a isso. E quero vê-lo morto antes de deixar Asgard.

— Mas todos nós… — começou Loki, então notou a expressão nos rostos de todos os deuses no salão e ficou em silêncio.

— Loki, filho de Laufey — anunciou Odin. — Isto é resultado de seu péssimo conselho.

— Que foi tão ruim quanto todos os outros conselhos — acrescentou Balder.

Loki lhe lançou um olhar ressentido.

— Precisamos que o construtor perca a aposta — constatou Odin. — E sem violar o juramento. Ele deve fracassar.

— Não sei o que você espera que eu faça a esse respeito — retrucou o deus da trapaça.

— Não espero nada de você, Loki — declarou Odin. — Mas se o construtor for bem-sucedido e terminar o muro até o m do dia de amanhã, sua morte será lenta e dolorosa, além de indigna e vergonhosa.

Loki olhava de um deus para outro, vendo em cada um dos rostos a própria morte, vendo raiva e ressentimento. Não via piedade ou perdão. Seria mesmo uma morte indigna. Mas quais eram as alternativas? O que ele podia fazer? Não ousava atacar o construtor. Por outro lado… Loki assentiu.

— Vou dar um jeito nisso.

Ele deixou o salão, e nenhum dos deuses tentou impedi-lo. O construtor terminou de pôr a última leva de pedras no muro. No dia seguinte, o primeiro dia do verão, quando o sol estivesse se pondo, ele terminaria o muro e deixaria Asgard com seus prêmios. Restavam apenas vinte blocos de granito. Ele desceu pelos rústicos andaimes de madeira e assoviou para chamar o cavalo. Svadilfari estava pastando, como de costume, na grama alta nos limites da floresta, a pouco menos de um quilômetro do muro, mas sempre vinha quando o mestre assoviava. O construtor agarrou as cordas do trenó vazio e se preparou para atrelá-las ao grande garanhão cinza. O sol estava baixo no céu, mas ainda demoraria várias horas até o anoitecer, e a lua parecia pálida, mas também estava ali, bem alta no céu. Logo os dois seriam dele, a maior e a menor luz, assim como Freya, ainda mais bela que o Sol e a Lua. Mas o construtor não cantaria vitória antes da hora. Tinha trabalhado tão duro e por tanto tempo, durante todo o inverno… Ele assoviou outra vez para o cavalo. Estranho: nunca precisara assoviar duas vezes. Via Svadilfari sacudindo a cabeça, quase empinando em meio às ores silvestres da campina primaveril. O cavalo dava um passo para a frente, depois um passo para trás, como se pudesse sentir um aroma sedutor no ar morno da tarde de primavera, mas não conseguisse identicar que cheiro era aquele.

— Svadilfari! — chamou o construtor, e o garanhão ergueu as orelhas e seguiu a galope constante pela campina.

O homem observou, satisfeito, o cavalo seguir em sua direção. O bater dos cascos na terra soava pela campina, dobrando e redobrando-se com os ecos que se propagavam do grande muro de granito, fazendo com que, por um instante, o construtor imaginasse que uma cavalaria inteira avançava em sua direção.

Não, pensou o construtor, é apenas um cavalo.

Ele balançou a cabeça, percebendo seu erro. Não era um cavalo. Não era apenas um conjunto de cascos. Eram dois… O outro cavalo era uma égua castanha. Ele a reconheceu como uma égua imediatamente, nem precisou olhar entre suas pernas. Cada linha, cada centímetro de torso, tudo naquele animal era feminino. Svadilfari deu meia-volta, correndo pela campina, então reduziu a velocidade, empinou e relinchou alto. A égua o ignorou. Parou de correr como se ele não estivesse ali, então baixou a cabeça e pareceu pastar enquanto Svadilfari se aproximava. Mas, quando o garanhão estava a cerca de dez metros, a égua começou a correr, um trote que se transformou em galope; e o cavalo cinza foi atrás, tentando alcançá-la, sempre com um ou dois corpos de desvantagem, tentando mordiscar seu traseiro e sua cauda, e sempre errando. Eles correram juntos pela campina à luz suave do m da tarde, o garanhão cinza e a égua castanha, o suor reluzindo em seus flancos. Era quase uma dança.

O construtor bateu palmas alto, assoviou e chamou o nome de Svadilfari, mas foi ignorado. Então o homem saiu correndo, querendo agarrar o cavalo e fazê-lo voltar à razão, mas a égua parecia saber o que ele pretendia: ela reduziu a velocidade e esfregou as orelhas e a crina contra a cabeça do garanhão, então correu para a orla da floresta como se lobos estivessem em seu encalço. Svadilfari foi atrás dela, e em questão de segundos os dois desapareceram em meio às sombras da mata. O construtor praguejou e cuspiu, e ficou esperando o cavalo retornar. As sombras se alongaram, e Svadilfari não voltou. O construtor voltou para o trenó de carga. Olhou para o interior da floresta. Então cuspiu nas mãos, segurou as cordas e começou a puxar o trenó pela campina coberta de capim e ores da primavera, encaminhando-se para a pedreira nas montanhas. Ele não retornou ao amanhecer.

O sol já estava alto no céu quando chegou a Asgard, arrastando o trenó de carga atrás de si. Tinha dez blocos de pedra no trenó, tudo que aguentava carregar, e ele puxava e arrastava a carga, amaldiçoando as pedras. Mas a cada passo cava mais perto do muro.

A bela Freya estava parada junto ao portão, observando o homem.

— Você só tem dez blocos de pedra — disse a deusa. — E precisa do dobro para terminar o muro.

O construtor não respondeu. Continuou puxando os blocos na direção do muro inacabado, implacável, o rosto inexpressivo. Não havia sorrisos nem piscadelas… não mais.

— Thor está voltando do leste — comentou Freya. — Ele vai chegar em breve.

Os deuses de Asgard foram ver o construtor, que puxava as pedras na direção do muro. Eles pararam ao lado de Freya, de forma protetora. Ficaram em silêncio por um tempo, depois começaram a rir e a sorrir, fazendo perguntas.

— Ei! — gritou Balder. — Você só vai levar o Sol se terminar esse muro. Acha mesmo que vai conseguir levar o Sol para casa com você

— E a lua — disse Bragi. — É uma pena que seu cavalo não esteja aqui. Ele podia ter carregado todas as pedras de que você precisa.

E os deuses riram.

O construtor soltou o trenó e encarou os deuses.

— Vocês trapacearam! — reclamou, e seu rosto estava rubro de esforço e de raiva.

— Nós não trapaceamos — retrucou Odin. — Não mais do que você. Acha que teríamos deixado que construísse o muro se soubéssemos que é um gigante?

O construtor agarrou um bloco de granito com uma das mãos e o bateu contra outro, partindo a pedra em duas. Ele se voltou para os deuses com metade da rocha em cada mão, e agora tinha dez, quinze, vinte metros de altura. Seu rosto mudou: ele não era mais o estranho que chegara a Asgard uma estação antes, plácido e bem-humorado. Seu rosto parecia a encosta de granito de um despenhadeiro, retorcida e esculpida pela raiva e pelo ódio.

— Sou um gigante das montanhas — anunciou o construtor. — E vocês, deuses, não passam de trapaceiros vis e quebradores de juramentos. Se eu ainda tivesse meu cavalo, teria terminado de construir o muro. Estaria levando a linda Freya e o Sol e a Lua como meus prêmios. E deixaria o restante de vocês aqui, na escuridão e no frio, sem nem mesmo a beleza para animá-los.

— Nenhum juramento foi quebrado — retrucou Odin. — Mas nenhum juramento pode protegê-lo de nós agora.

O gigante das montanhas urrou de raiva e avançou na direção dos deuses, carregando um grande pedaço de granito em cada mão, como se fossem clavas. Os deuses abriram caminho, e só então o gigante viu quem estava atrás deles. Um deus enorme e musculoso de barba ruiva, com luvas de ferro, segurando um martelo também de ferro, que ele girou uma vez. O homem ruivo apontou o martelo para o gigante e soltou. Houve um clarão de relâmpago nos céus claros, seguido pelo estrondo abafado de trovão, quando o martelo deixou a mão de Thor.

O gigante das montanhas viu a arma se aproximar depressa enquanto disparava em sua direção, e então não viu mais nada… nunca mais. Os próprios deuses terminaram de construir o muro, embora tenham levado mais dez semanas para cortar e extrair os últimos dez blocos das pedreiras de granito no alto das montanhas, levá-los até Asgard e colocá-los no lugar, no portão. Não eram tão bem-feitos, nem ficaram tão bem encaixados quanto os blocos que o mestre construtor produzira e assentara.

Alguns deuses se arrependeram de ter deixado Thor matar o gigante antes que ele terminasse de empilhar os blocos. O deus do trovão agradeceu aos outros deuses por terem planejado uma boa diversão para quando ele retornasse. Estranhamente, pois não era de seu feitio, Loki não estava por perto para ser elogiado por ter distraído Svadilfari com sucesso. Ninguém sabia onde ele estava, embora houvesse boatos de que uma égua castanha magnífica tinha sido vista nas campinas sob Asgard. Loki ficou ausente pela maior parte de um ano e, quando voltou, estava acompanhado de um potro cinza. Era um belo potro, embora tivesse oito patas em vez das costumeiras quatro. Ele seguia Loki aonde quer que ele fosse, o acariciava com o focinho e o tratava como se fosse sua mãe. O que, é claro, era o caso. O potro, batizado de Sleipnir, cresceu e se tornou um grande garanhão cinza, o cavalo mais veloz e mais forte que já existiu ou existirá, um cavalo capaz de correr mais rápido que o vento.

Loki presenteou Odin com Sleipnir, o melhor cavalo entre deuses e homens.

Muitas pessoas admiravam o cavalo de Odin, mas apenas um homem corajoso mencionaria sua linhagem na presença de Loki, e ninguém nunca ousou fazer isso mais de uma vez. Loki faria tudo a seu alcance para tornar um inferno a vida de quem quer que comentasse sobre como ele atraiu Svadilfari para longe de seu mestre e resgatou os deuses de sua própria má ideia. Loki acalentava seus ressentimentos.

E esta é a história de como os deuses construíram seu muro.

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