A batalha de Ragnarok

Aquele inverno tinha sido o mais gelado de quantos os deuses podiam ter lembrança. Para começar, não fora um só, mas três invernos encadeados. A neve caíra sem cessar dia e noite, com flocos imensos, congelando rios e mares. Mas, quando a terceira estação de frio consecutivo se anunciou, os deuses em Asgard começaram verdadeiramente a se preocupar.

– Já vamos para o terceiro inverno, Odin…! – disse-lhe Frigga, sua esposa, toda recoberta por peles. – Isto não é normal! – Sua voz traía um terror inconfesso, embora sua alma ainda relutasse em admitir que aquele pudesse ser o primeiro e temido prenuncio de Ragnarok, o Crepúsculo dos Deuses.

– É um inverno excepcionalmente frio, apenas isto; coloque mais roupas e trate de sossegar – disse o velho deus, com o cenho carregado.

Odin na verdade passara a vida toda se preparando para este pavoroso dia; não por acaso mandara construir o majestoso Valhalla, o palácio onde abrigava o exército de seus melhores combatentes mortos trazidos dos campos de batalha pelas valquírias, suas filhas guerreiras. Mas, nem por isto, a palavra fatal fora pronunciada, lá ou em Asgard, uma única vez, a não ser por alusões ou eufemismos, pois todos sabiam que aquela guerra seria a ruína não só dos deuses, como do mundo todo.

O terceiro inverno prosseguiu cada vez mais frio e apavorante. Mas isto mio era tudo: rumores de uma guerra iminente surgiam a todo instante, ou então, do guerras que já estavam em pleno andamento. Guerras de homens contra gigantes, de anões contra elfos, de homens contra homens, de todos contra todos. Nunca os anões haviam trabalhado tanto como nos últimos tempos: avisados de algo, ou simplesmente premidos pelas circunstâncias, suas forjas há muito tempo não se apagavam, produzindo, noite e dia, milhares de espadas, lanças e escudos de Iodos os tipos e feitios. Rios de ouro desaguavam às portas de suas cavernas em pagamento pelos artefatos, pois todas as raças sabiam que, muito em breve, pilhas de ouro não teriam valor algum diante de uma boa espada ou de um escudo razoavelmente sólido.

O Galo de Ouro cantou, como fazia todos os dias no topo do portão de Asgard. Sua saudação ao sol, entretanto, soou inútil, pois naquele dia o sol não nasceu. Corriam rumores horríveis pelo mundo acerca dos filhos de Fenris, o lobo gigantesco. Diziam estas vozes apavoradas que um deles, finalmente, conseguira engolir o sol, enquanto que o outro, a lua.

– Já não há mais sol nem lua pelos céus, Odin supremo! – disse um mensageiro, após atravessar Bifrost, a ponte do arco-íris que levava a Asgard. – É o começo do fim!

Uma escuridão espectral espalhara-se pelo mundo e, agora, a noite era a soberana do universo. Odin aproximou-se da janela e tentou escutar os rumores que chegavam do mundo lá embaixo. Algo como o ruído surdo e contínuo de um terremoto rolava da escuridão até chegar aos portões de Asgard como um rosnar ameaçador. O deus, tomando de sua lança Gungnir, correu até o seu trono mágico, de onde podia observar tudo quanto se passava nos nove mundos.

Nada podia ser mais aterrador: em todos eles, reinava a mais negra escuridão e somente se podia enxergar algo graças aos clarões das tochas e dos incêndios que lavravam por toda parte, Incêndios provocados por vulcões – que irrompiam do chão, violentamente, e sem aviso, engolindo populações inteiras – e das guerras de pilhagem promovidas por vândalos e seus exércitos arregimentados unicamente pelo caos.

– Então, finalmente, chegou o dia… – disse Odin, abaixando a cabeça como quem espera a iminente realização de uma funesta profecia. – Thor, mande reunir todos os deuses capazes de empunhar uma lança e os avise de que todos devemos rumar para o Valhalla – disse o velho deus, recuperando aos poucos a altivez. -Chegou a hora de unir nossos exércitos e nos preparar para a última batalha.

***

Os tremores de terra não haviam somente destruído casas e matado populações inteiras. Haviam também conseguido deslocar as pedras de duas cavernas onde estavam presos, há muito tempo, dois personagens que o destino escolhera para protagonizar o começo da ruína dos deuses.

Numa destas cavernas estava Loki, o perverso filho dos gigantes, preso às rochas, desde há muito tempo, por sólidas correntes. Entretanto, durante a noite, o prisioneiro barbudo vira cessar o seu tormento, o qual consistia em ter uma serpente a gotejar, permanentemente, sua baba pestilenta sobre o seu rosto. Por que ela teria cessado, espontaneamente, de o atormentar?, perguntara-se Loki a noite inteira. Teriam os deuses o perdoado? Cessara, afinal, a mágoa no peito de Odin pela morte de seu adorado filho Balder?

Estrondos sacudiram tudo a noite inteira até que um tremor mais forte deslocou as duas pedras que mantinham presas as suas correntes.

– Oh, será verdade? – disse ele, pondo-se em pé depois de muitos e muitos anos. –

Estou livre, finalmente, livre…!

Loki gritou e sapateou como uma criança até que uma idéia iluminou a sua mente: –

Se estou livre, isto só pode significar uma coisa… – disse ele, custando a crer que o seu dia chegara. – Soou a hora do grande confronto com os deuses!

De repente, porém, suas palavras foram cortadas por um terrível uivo: era Fenris, seu filho lobo, quem também se via livre de suas correias. Um exército de gigantes conseguira localizá-lo e libertá-lo das indestrutíveis cadeias forjadas pelos anões. O velho lobo ainda podia sentir na boca o gosto da mão de um deles, Tyr, o deus audaz, que ousara arriscá-la para garantir o sucesso da trapaça de seus companheiros.

– Vamos, Fenris! – bradou um dos gigantes, carregando uma pesada clava. – Chegou a hora de ajustar as contas com o velho deus!

O lobo, também sem poder acreditar, despedira, então, o seu pavoroso uivo, que prenunciava a sua vingança, o qual Loki escutara da sua caverna.

Lançando longe as suas cadeias, Loki tratou de rumar, logo, para a região sombria de Musspel, onde sabia que um poderoso exército de gigantes mortos o aguardava. Ele, Loki, teria a honra de ser o timoneiro do navio que conduziria o exército espectral para o confronto, enquanto Surt, o deus do fogo, guiaria também, com sua espada chamejante, os seus exércitos rumo a Asgard. Ao mesmo tempo, a terrível Iormungand, a Serpente do Mundo, provocava maremotos colossais ao lazer a sua marcha em direção a terrível batalha final.

Antes do fim do dia, estavam todos reunidos, prontos para galgar o último obstáculo que os separava dos deuses entrincheirados: a ponte Bifrost, guardada por Heimdall, inimigo figadal de Loki.

– Todos a Asgard! Morte aos Aesires! – bradava Loki, feito agora comandante supremos das forças destrutivas.

Os exércitos maciços começaram, então, a subir a ponte, num arremesso que escureceu e fez abalar inteiro o arco-íris, enquanto que, pela segunda vez naquele dia, o Galo de Ouro fazia ouvir a sua estridente voz.

***

Alertado pelo canto do galo, Heimdall, o guardião da ponte, acorreu logo à toda pressa para a trombeta gigante, instalada ao lado do portão de Asgard. Apesar de ter esperado por isto a vida inteira, Heimdall sentiu-se francamente surpreso com a reação que isto despertara nele: era um misto de terror, aflição e, ao mesmo tempo, de euforia.

Sim, de euforia, pois, agora, a angústia – aquele sentimento daninho que roía seu coração dia após dia – finalmente, acabara: chegara, afinal, a hora do confronto: de resolver, de uma vez, a pendenga que, durante milênios, opusera os deuses a seus inimigos mortais.

As forças de Odin – os melhores guerreiros que o universo já pudera produzir –

estavam prontas para o combate. Montado em seu cavalo Sleipnir, Odin, cercado por Thor e Freyr, aguardava apenas o momento certo para dar a ordem de ataque, quando escutou o ruído da trombeta. Durante alguns instantes, só se ouviu o soar, majestosamente aterrador, daquele instrumento poderoso, até que a fúria e a gana de combater começou a inflamar o peito dos guerreiros. Todos sabiam que iriam perecer, mas a eles bastava a consciência de saber que o fariam com coragem e altivez e que seus inimigos também iriam misturar o seu sangue ao dos heróis. Se tudo se resumia a uma grande batalha – a maior de quantas já houvera – e, se eles iriam ter a honra suprema de ser protagonistas dela, então estava tudo muito bem.

– Odin, as forças inimigas já sobem por Bifrost…! – exclamou Heimdall, montado em seu cavalo branco e de lança enristada.

– Aguardaremos que rompam o portão; então, atacaremos sem nenhum medo ou piedade – disse o líder dos deuses sem demonstrar qualquer vestígio de receio.

Entretanto, quando os gigantes e as outras criaturas sinistras estavam quase para chegar aos portões de Asgard, escutou-se o ruído pavoroso de algo que ruía. ‘Iodas as cabeças voltaram-se para a direção do ruído estrepitoso, mas somente Heimdall pôde observar um espetáculo digno dos deuses: a ponte Bifrost ruíra, lançando para baixo todos os exércitos numa confusão de braços e pernas humanos misturados a patas de cavalos e de outros seres repulsivos.

Um estrépito de vivas! sacudiu as colunas de Asgard. Inflamados por aquele breve triunfo inicial, todos comemoravam, menos Odin, que parecia mergulhado num supremo devaneio: – Thor, não sei se, para você, a sensação é a mesma – disse ele, cochichando ao ouvido do filho as suas últimas palavras -, mas estou me sentindo leve, agora… muito leve! – Um sorriso, quase de êxtase, brilhava por baixo de suas barbas esbranquiçadas.

– Sim, meu pai, sinto o mesmo – disse Thor, empunhando com ainda mais força Miollnir, o seu inseparável martelo. – Parece que vai começar, agora, a melhor de todas as brincadeiras!

– Sim… a melhor de todas as brincadeiras…! – repetiu Odin e, antes que pudesse retomar o fôlego, despediu um grande grito: – Adiante, guerreiros de Odin! Pela honra dos Aesires, empunhemos as espadas!

Os portões de Asgard foram abertos pela última vez. Numa gigantesca cavalgada, os exércitos divinos desceram pelo que restava da ponte do arco-íris indo, diretamente, de encontro às forças inimigas que já estavam reorganizadas nos campos de Vigrid, local, agora, do último e apocalíptico combate.

***

Os exércitos engalfinharam-se num choque de espantosa brutalidade, que tirou, imediatamente, a vida de milhares de combatentes. As espadas e as lanças começaram a retinir, enquanto verdadeiros rios de sangue escorriam pelos pés dos guerreiros. Os inimigos declarados procuravam-se por entre as hordas anônimas e parecia que cada qual sabia, exatamente, o papel que deveria executar, pois, um a um, os inimigos pessoais foram se encontrando para seus ajustes e desforras pessoais.

Freyr, o deus que viera a Asgard como um intruso e acabara caindo nas graças de Odin, foi o primeiro a se defrontar com seu inimigo, o gigante Surt.

Segurando sua espada flamejante, o gigante avançara impávido na direção do deus.

Nenhum disse qualquer palavra, mas Freyr soube, desde o primeiro instante, que marchava para a morte. Sem portar a sua espada mágica – que tivera a desventura de entregar há muito tempo a seu descuidado servo Skirnir -, Freyr ergueu a sua lança e tentou aparar o golpe da terrível arma de seu oponente. Mas, foi tudo em vão: a lança partiu-se e o deus caiu morto sob o golpe certeiro do gigante em chamas.

Um pouco mais adiante, Tyr, o deus maneta, após ter matado centenas de inimigos, perecia nos dentes de Garm, o cão de guarda infernal, parecendo ser sua sina ser sempre alvo dos dentes de algum animal de poderosas mandíbulas. Mas, antes de morrer, enterrara no coração da fera o aço escaldante de sua espada, vingando, assim, a morte do mais valente dos deuses.

Loki e Heimdall, que tantas disputas travaram anteriormente, estão agora frente a frente. Seus dentes estão cerrados, mas, curiosamente, parecem sorrir ao mesmo tempo.

Em seguida, os dois atiram-se um ao outro com suas espadas afiadas, mas são logo engolfados por uma multidão de combatentes que atiram às cegas as suas cutiladas.

Quando a multidão se desfaz – em sua maioria caída e morta ao chão – vê-se que Loki e Heimdall estão ambos caídos também lado a lado. Nenhum registro se fez da maneira como ambos deram um fim à vida do outro e à rivalidade que sempre os uniu.

Quanto Thor, teve, finalmente, a oportunidade de travar seu duelo com a Serpente do Mundo, duelo tão esperado que todos os combatentes que estavam por perto abaixaram as suas armas apenas para observá-lo. Era, afinal, um espetáculo único, que pouquíssimas criaturas poderiam ter o privilégio de assistir – e, quem sabe, um dia, contar em algum outro lugar, caso houvesse ainda um lugar para se ir depois daquele fim de mundo. Thor arremessou-se com seu martelo ao pescoço da serpente e, após abraçar-se a ela, desferiu com toda a força a sua arma sobre o crânio da fera que desfaleceu, em seguida com os miolos botados para fora.

– Thor, você venceu, afinal! – exclamou Odin, que vira tudo de longe.

Mas, infelizmente, à sua vitória seguiu-se, logo, a sua própria morte, pois após dar quatro passos para trás, Thor caíra morto ao chão, bafejado que fora pelo veneno da serpente. Sua mão, no entanto, não desgrudou do martelo Miollnir e nenhum outro combatente teve força bastante para fazê-lo abandonar, mesmo depois de morto, a sua querida arma, que diziam ter amado mais do que à sua própria esposa, a adorável Sif dos cabelos dourados.

Odin, então, cego de ódio, procurou por entre a multidão o seu inimigo, que não poderia ser outro, senão o grande lobo Fenris. – Aqui estou, fera assassina! – bradou o deus, ao avistar o lobo, procurando já a própria morte.

Esporeando seu cavalo de oito patas, Odin empunhou pela última vez sua lança Gungnir e se lançou ao encontro do terrível inimigo. O lobo, entretanto, com uma única bocada, engoliu o maior dos deuses. Um silêncio mortal caiu sobre o campo ensangüentado de Vigrid.

– Meu pai, não! – exclamou Vidar, um dos filhos do velho deus, desmontando de seu cavalo e indo em direção ao vitorioso lobo. Um sorriso parecia arreganhar ainda mais os dentes manchados de sangue de Fenris. Mas, desta vez, ele encontraria seu próprio fim, pois Vidar, enlouquecido pela fúria, ousou entrar dentro da própria boca do lobo para matá-lo e o fez da seguinte maneira: firmando bem os pés sobre a língua do animal, antes que este pudesse entender o que o agressor fazia, empurrou o maxilar superior do lobo para cima até rasgar o animal em dois. Este fato encheu de assombro deuses e gigantes, que viram no filho um legítimo sucessor do pai.

Mas a guerra ainda continuou por muito tempo, mesmo depois de mortos os seus protagonistas, até que Surt, vendo que tudo estava consumado, empunhou um imenso facho, que parecia um novo sol e saiu pelo mundo a colocar fogo em tudo.

O pânico estabeleceu-se nos dois exércitos, quando perceberam que, agora, não havia mais inimigo algum a combater, senão, a própria morte e que o melhor a fazer era tratar de salvar a vida.

Mas agora, definitivamente, já era tarde para pensar em salvação: o mar secara inteiramente; a terra abrasara-se num incêndio arrasador; e o próprio céu derreteu, caindo sobre a terra como uma imensa cortina em chamas.

***

O grande cataclismo terminara com a queda de Yggdrasil, a grande Árvore da Vida.

Após ter sido roída, dia após dia, pelos dentes afiados da serpente Nidhogg, ela não pudera suportar a grande catástrofe e ruíra, liquidando com todos os nove mundos e com quase todos os seus habitantes. Diz a lenda que, entre os homens, apenas um casal pôde sobreviver: ele se chamava Lif e ela Lifthrasir, e foi justamente graças à portentosa árvore, que puderam fazê-lo, pois esconderam-se dentro de sua espessa casca, como no ventre da natureza e da própria Vida.

Também alguns poucos deuses conseguiram escapar ao flagelo destrutivo -entre eles, Vidar, o filho que vingara a morte de Odin; e Magni, um dos filhos de Thor. Também Balder, o mais puro dos deuses, ressuscitara, junto com Hoder, o desastrado irmão cego que o matara, inadvertidamente, por uma astúcia de Loki.

E assim, Lif e Lifthrasir repovoarão o mundo, enquanto que, segundo os versos da Edda imortal, Os Aesir vão se encontrar novamente no Idavoll e relembrarão a poderosa Serpente do Mundo, lembrando também os decretos maravilhosos e os mistérios do antigo e poderoso deus.

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