A aposta de Loki

Sif era a encantadora esposa de Thor, embora este não fosse o seu primeiro marido; antes, ela já fora casada com um gigante anônimo, cujo nome se perdeu na noite dos tempos. Sif era dona de muitos encantos, mas, de todos eles, nenhum impressionava mais do que a sua dourada cabeleira. De fato, descendo do alto como uma ondulante cascata de ouro, os fios resplandecentes percorriam os vales, montanhas e planícies do seu corpo inteiro até alcançar-lhe os pés num desaguar majestoso.

Certa manhã, entretanto, a deusa acordou, sentindo uma ausência inquietante em sua cabeça. Suas próprias idéias pareciam ter se evaporado, pois não conseguia perceber o que a afligia. Então, após ter-se erguido, levou, instintivamente, as mãos à sua cabeleira para jogá-la para trás. Mas seus dedos encontraram apenas o vazio, deslizando por uma superfície inteiramente lisa, sensação inédita que ela não soube interpretar direito.

– Mas, o que é isto? – disse, horrorizada, ao tomar rapidamente um espelho.

– Oh, não!… Onde estão os meus lindos cabelos?!

Um grito de terror atroou o palácio de Thor, que, até então, não havia percebido nada, uma vez que ainda dormia profundamente. Acordado, entretanto, pelo grito da esposa, abriu os olhos e se deparou com uma estranha dentro do seu próprio quarto.

– Quem é você, bruxa careca? – disse ele, como se ainda estivesse imerso em seus pesadelos. – Desapareça já da minha frente!…

Thor já ia dar um tremendo murro naquela diaba calva, quando percebeu que se tratava de sua pobre esposa.

– S-s-sif… é você? – perguntou o deus, sem crer no que seus olhos viam.

– Não, não sou eu…! -exclamou a pobre, com o rosto lavado em lágrimas. – Como posso ser Sif, sem meu maior atributo?! Como posso ser Sif, sem minha querida cabeleira? Oh, Thor querido, ajude-me, por favor!

O deus do trovão não precisou pensar muito para entender que o dedo de Loki estava metido naquilo. Loki era um ser insaciável em armar confusões para os deuses de Asgard e, sempre que podia, não perdia uma oportunidade de prejudicá-los.

– Vou procurar aquele pilantra! – disse o deus, tomando a sua carruagem.

Dali a instantes trouxe de arrasto o perverso Loki, que pelo aspecto maltratado parecia já ter recebido, por antecipação, uma boa dose do castigo.

– O maldito canalha já confessou! – disse Thor à chorosa Sif, que não tinha nem forças para odiar o seu algoz.

Depois de dar mais alguns safanões no desgraçado, Thor arrancou dele a promessa de que iria arranjar, fosse onde fosse, uma nova cabeleira para sua esposa.

– Uma de verdade, já sabe! – disse o deus, brandindo, ameaçadoramente, o seu cabeludo punho na cara de Loki. – Se me aparecer com uma peruca, vou arrancar todos os pêlos do seu corpo, entendeu bem? Todos!…

Quem poderia confeccionar uma cabeleira nova, tão bela e dourada quanto a da deusa e que crescesse naturalmente como aquela? Somente os anões, c claro, os artífices mais talentosos do universo poderiam ser capazes desta tarefa, pensou Loki, partindo imediatamente para Svartalfheim, o reino dos anões.

Depois de fazer uma rápida viagem, chegou finalmente à forja de Dvalin, um mestre artífice, e lhe encomendou a cabeleira, dizendo que o pedido era feito em nome de Thor e que uma chuva de recompensas desabaria sobre a sua cabeça caso conseguisse, ao menos, igualar a magnífica obra da natureza.

– Está bem, verei o que posso fazer – disse o anão, pondo logo mãos à obra.

Normalmente os anões precisam recorrer apenas à sua própria arte para confeccionar as suas maravilhas; mas há casos bem mais difíceis, diante dos quais têm de buscar auxílio também na magia. Por isto, Dvalin não hesitou em recorrer ao feitiço das runas, de tal forma que, dentro de pouco tempo, tinha em suas mãos, absolutamente perfeita, uma nova cabeleira. Os fios escorriam de seus dedos como raios sedosos de sol e o feito provocou tamanho espanto e admiração cm seus colegas anões que ele se empolgou e resolveu fazer mais algumas maravilhas, enquanto Loki não retornava.

De suas mãos mágicas e operosas surgiram ainda Skidbladnir – um navio mágico, que tinha o dom de navegar até o seu destino sob qualquer tempo e ainda o de ser portátil, podendo ser dobrado e colocado no bolso tão logo terminasse a viagem – e a lança Gungnir, que mais tarde viria a ser o principal atributo de Odin, o mais poderoso dos deuses.

Quando Loki retornou para pegar a cabeleira de Sif, ficou espantado diante de tamanha perfeição. E, como se isto não bastasse, ainda levou de quebra o navio e a lança, para fazer uma média com Odin, que já andava farto de suas trapaças. O deus apoderou-se logo da lança, deixando o navio mágico para o deus Freyr, irmão de Freya, a deusa do amor.

O sucesso foi tão grande que Loki, empolgado pelo triunfo, resolveu fazer com os anões a única coisa que sabia realmente fazer: passar-lhes a perna. Procurou, então, outros dois, chamados Brock e Sindri.

– Bom dia, meus amigos! – disse ele, chegando à forja deles.

Os dois mal e mal responderam, ocupados que estavam com seu trabalho.

Loki comentou acerca dos três trabalhos que seu colega Dvalin havia feito, tentando levar a inveja a seus corações.

– Nada de mais perfeito, tenho absoluta certeza, poderá sair das mãos de qualquer anão em qualquer tempo! – disse o intrigante, com um sorriso confiante.

Brock e Sindri tentaram manter-se impassíveis diante da provocação; afinal, ainda havia muito trabalho a ser feito para que fossem se meter com outras encomendas: bastava observar o metal acumulado no chão e as lanças e espadas, que ainda estavam quentes dos golpes da forja e do martelo. Mas Loki era incansável e jamais desistia de um pilhéria depois de havê-la começado.

– Eu seria capaz até de apostar a minha própria cabeça como anão algum jamais será capaz de superar os trabalhos de Dvalin, o mestre inigualável! – disse Loki, que desta vez cometera a imprudência de, no arroubo, exagerar na bazófia.

– Trato feito! – disse Brock, decidido a ver a cabeça de Loki rolando no pó.

Sindri pensou o mesmo, admitindo que valia a pena um esforço extra para se ver livre para sempre daquela criatura irritante. – Vamos, Brock, jogue mais lenha nesta forja! –

disse ele, expulsando o intruso da caverna.

Imediatamente, começaram a trabalhar no primeiro objeto, pois sabiam que teriam de fazer algo realmente impressionante. Sindri começou a murmurar alguns encantamentos rúnicos, enquanto seu irmão, Brock, suava na forja.

O trabalho já ia adiantado quando uma mosca entrou por uma fresta e se pôs a sobrevoar o anão. Sem dar por isto, Brock continuou o seu trabalho até que a mosca pousou sobre a sua mão e lhe deu uma dolorida picada.

– Ai! – disse o anão, dando um grande berro. Mas decidido a não permitir que aquele pequenino incidente atrapalhasse a feitura da sua obra, continuou a malhar, sem retirar por um único instante a sua mão do trabalho. Tanto esforço e dedicação foram, afinal, recompensados: algumas horas depois, a obra estava terminada.

– Sindri, veja que maravilha! – gritou o irmão, retirando da forja um maravilhoso javali de cerdas de ouro.

Era Gullinbursti, o grande javali voador, que viria a ser a montaria predileta do deus Freyr. Os dois anões congratulavam-se, satisfeitos, enquanto Loki, pousado sobre o teto, observava, angustiado, aquela verdadeira maravilha que era o javali.

– Vamos produzir outro prodígio, pois um só, certamente, será insuficiente para que vençamos a competição! – disse Sindri a Brock.

Ambos correram, outra vez, para a forja e recomeçaram o seu trabalho. Sindri voltou a entoar as suas runas mágicas, enquanto as barbas de Brock quase chamuscavam na forja, tal o ímpeto em produzir uma nova obra-prima. Visto de costas, podia-se mesmo observar que um ligeiro vapor subia dele, o que não passava de seu suor, que ao lhe escorrer do rosto evaporava, no mesmo instante, por força do calor das chamas. Loki, amedrontado com o que pudesse surgir, desta vez, mergulhou em novo ataque.

– Ai! – exclamou o anão Brock, sem, no entanto, levar a mão à bochecha, local que a mosca escolhera para enterrar o seu ferrão.

Novamente, sua dedicação foi recompensada: dali a instantes, Brock retirou da forja, sob o olhar maravilhado de Sindri, um esplendoroso anel.

– Eis Draupnir, o mais precioso de todos os anéis! – disse o anão, orgulhoso de sua obra. – Será tão perfeito que dele brotarão, a cada nove noites, outros oito anéis tão perfeitos quanto ele!

Este maravilhoso anel acabaria sendo de propriedade de Odin e era tão belo que Loki teve a certeza de que agora tudo estava perdido. Mesmo assim, teve que escutar com indizível terror a voz fanhosa do anão Sindri dizer outra vez:

– Acho que ainda há tempo de fazer mais uma maravilha antes que aquele fanfarrão idiota retorne; o que você acha, Brock?

O anão concordou imediatamente e ambos se puseram, mais uma vez, a serviço do seu talento e da magia das runas. Antes, porém, Brock esteve a pensar um pouco sobre o que fariam desta vez.

– Terá de ser algo espetacular! – disse ele, puxando com as duas mãos suas longas barbas, que se desprendiam aos punhados, chamuscadas que já estavam. – Temos de terminar este dia proveitoso com um fecho de ouro!

– Fecho de ouro? – perguntou Sindri, com uma luz de euforia no olhar. – E, por que não, um martelo de ouro?

Não foi preciso mais nada para que o outro anão arrojasse para longe as suas vestes, ficando quase nu diante da forja, pois queria ter inteira liberdade em seus movimentos.

– Vamos a ele! – esbravejou Brock, enquanto Sindri recomeçava a taramelar as suas runas encantatórias.

A noite já caía sobre Svartalfheim. O anão, quase montado sobre o imenso fole, espertava as chamas com tanta gana, que, ao longe, dava a impressão que a gruta, onde ambos viviam, estava tomada por um terrível incêndio, ou que, lá dentro, estivesse a rugir uma tempestade com relâmpagos e trovões incessantes.

A mosca Loki, quase assada pelo calor infernal que reinava naquele lugar, decidiu, entretanto, tentar uma última investida.

– Desta vez, vou picar para valer! – anunciou o endiabrado deus, lançando-se do alto como uma águia de quatro patas.

A mosca veio zunindo e empinando o seu ferrão, como se fosse uma lança, até cravá-la com toda a força sobre a pálpebra do anão.

– Aaaiiii! – fez o anão e, desta vez, não só deu um grito tremendo como também levou uma das mãos ao olho ferido, pois o sangue que escorria da ferida perturbava-lhe a visão. Mas, logo em seguida, retomou o seu ofício com o mesmo ardor.

– Aqui está, Sindri! – disse ele, retirando da forja um martelo de ouro, que refulgiu como um pequeno sol, iluminando a caverna inteira.

O outro anão correu até ele e se pôs também a admirar a preciosidade. Apenas lhe pareceu, contudo, que Brock falhara ao confeccionar o cabo, que ficou um pouco curto demais. Mas, nada obstante, aplaudiu, entusiasticamente, este novo feito da arte e da magia conjugadas.

– Aqui, está o martelo Miollnir! – disse o anão Brock, regozijando-se. -Que outra arma melhor poderia caber a Thor para defender Asgard inteira do ataque dos gigantes? –

perguntou, sabendo que aquele deus não pensaria duas vezes antes de se apropriar daquela magnífica arma e adorno.

De posse de seus objetos, Brock e Sindri partiram, na mesma hora, para levar os presentes até a morada dos deuses. Ao chegar lá, encontraram Dvalin, o outro anão artífice, que também trouxera seus presentes. Uma comissão julgadora foi formada para analisar quais seriam os presentes mais valiosos, composta pelos deuses Odin, Thor e Freyr.

Depois de avaliar todas as obras e de as elogiar com muita ênfase, Odin ficou encarregado de proclamar o veredicto:

– São todos magníficos presentes – disse o velho deus, assumindo a postura de árbitro supremo, que tanto adorava -, mas, como se trata de uma disputa, e disputas pedem um vencedor, elejo os irmãos Brock e Sindri como os melhores!

Os dois anões pularam de alegria, sendo abraçados pelo concorrente, que admitira elegantemente a derrota. Logo em seguida, Brock puxou da bainha de sua cintura uma espada – a mais afiada de quantas pôde produzir em sua forja -e a entregou a Thor.

– Cumpra-se agora a aposta! – disse ele, olhando de esguelha para Loki, que estava branco feito a neve.

Thor tomou a espada com gosto e já ia arrancar fora a cabeça do desafortunado deus, quando este, caindo de joelhos, resmungou um último argumento, que estivera compondo, enquanto os outros se divertiam com o julgamento:

– Perdão, deuses poderosos, mas isto não pode ser assim! – disse ele, pondo toda a convicção em sua voz. – É verdade que devo a minha cabeça aos cruéis anões; mas não o meu pescoço!

Ninguém pareceu compreender direito.

– O que está dizendo, tratante miserável? – disse Thor, abaixando a espada.

– Sim, pensem comigo – implorou Loki, de joelhos -: Os anões têm todo o direito a cortar fora a minha cabeça, desde que isto não provoque danos ao meu pescoço, uma vez que ele não faz parte da aposta!

Uma gritaria ergueu-se na assistência – pois havia um grande público ao redor, disposto a ver rolar a cabeça do nefando deus – e estiveram todos a debater o argumento de Loki, até que Odin, árbitro supremo, viu-se obrigado a dar razão a ele.

– Está bem, você tem razão – disse ele ao réu, meio contra à vontade. – Mas como uma aposta é uma aposta – e vocês todos sabem o quanto nós, os nórdicos, apreciamos uma bela jogatina -, decido que os anões escolham uma outra punição no perdedor, sem que, no entanto, lhe tirem a vida.

Loki deu um grande suspiro de alívio e foi beijar, de maneira subalterna, a mão de Odin – claro, escondendo, ao mesmo tempo, um pérfido sorriso em seus lábios -, enquanto os anões confabulavam entre si para encontrar um castigo digno daquele patife.

– Já que ele nos engambelou pela boca, que sua punição recaia também sobre ela –

disse Brock, sendo apoiado, imediatamente, pelo irmão.

– Queremos que este linguarudo tenha a sua boca costurada! – disse Brock, com um sorriso de escárnio.

Imediatamente o pobre Loki foi agarrado e Sindri costurou os lábios do perverso deus, que urrava de dor pelo nariz – uma verdadeira tortura! Tão logo concluiu-se a punição, Loki saiu correndo com as mãos postas à boca ensangüentada, arrancando um a um os fios de cobre que uniam os seus maltratados lábios. E, durante muito tempo, um cavanhaque de sangue enfeitou o seu pobre rosto, pois as feridas profundas custariam ainda muito a sarar.

De toda esta brincadeira, resultou, afinal, que os deuses ganharam alguns brinquedinhos novos para se divertir, enquanto Loki, com uma ferida nova e inestancável na alma, tornara-se ainda mais pérfido, decidido, cada vez mais, a planejar a ruína definitiva dos deuses – e, sem saber, a sua própria.

Odin na corte do Rei Geirrod

Havia, outrora, dois irmãos, filhos do rei Hrauding. O mais velho chamava-se Agnar e tinha dez anos de idade, enquanto o outro tinha oito anos e se chamava Geirrod.

Certa feita, ambos haviam saído para pescar, com a autorização do pai, mas como o vento estivesse muito forte, acabaram por se perder e sua embarcação foi parar numa distante ilha.

– E agora, Agnar? – disse o frágil Geirrod, tentando manter a embarcação acima das águas junto com o irmão.

Mas todos os seus esforços resultaram inúteis: depois de dois ou três arremessos mais violentos, a frágil embarcação desfez-se nos penedos que recortavam a ilha. Agnar e Geirrod puderam dar-se por muito felizes por ter escapado com vida do terrível naufrágio.

Nem bem chegaram às areias da praia, mais mortos do que vivos, foram recolhidos por um pescador e sua mulher. Como o inverno recém tivesse começado – e fosse, conseqüentemente, época de muitos temporais, o que lhes impossibilitava o retorno à sua pátria -, Agnar e Geirrod viram-se obrigados a permanecer na ilha na companhia do casal.

O pescador e sua mulher mostraram-se muito amáveis com os dois jovens, mas, desde logo, ficou claro que ele tinha uma especial predileção por Geirrod, enquanto ela não disfarçava uma maior afeição por Agnar. Embora isto, viveram Iodos em paz e harmonia durante todo o período em que permaneceram na ilha até que a primavera deu os seus primeiros sinais.

– Agnar, meu irmão – disse o caçula Geirrod -, acho que chegou a época de voltar para a casa de nosso pai.

– Estou de acordo – respondeu o outro. – Vamos pedir aos nossos protetores que nos ajudem a construir uma nova embarcação.

E assim se fez. O pescador e sua esposa não se furtaram a ajudá-los, embora sentissem um aperto no coração por ter que se separar, tão cedo, daqueles dois jovens, que já lhes pareciam, de certa maneira, seus próprios filhos.

Agnar e Geirrod partiram, afinal, num belo dia de sol. Antes de embarcar, foram se despedir dos seus benfeitores e o pescador aproveitou para murmurar algo ao ouvido de Geirrod. Uma vez embarcados, tomaram com segurança o rumo de casa, enquanto que Odin e Frigga – pois não eram outros o pescador e sua mulher, senão, as duas principais divindades nórdicas, que ali estavam a passeio – começaram a debater entre si sobre qual dos irmãos seria o mais justo e correto.

– Não resta a menor dúvida que Agnar tem o coração mais puro – disse Frigga, convicta de suas palavras. – Somente a sua obtusa teimosia poderia levá-lo a pensar o contrário.

– Asneiras! – disse Odin, abanando a cabeça com desdém. – Qualquer idiota pode ver, perfeitamente, que o jovem Geirrod é, infinitamente, melhor que o irmão.

E a esta discussão entregaram-se com tanto gosto, que, em breve, já estavam a um passo de se engalfinhar. Odin decidiu, então, retornar para Asgard antes que o tempo fechasse de uma vez.

Mas lá foi pior, pois Frigga, que se julgava uma deusa muito virtuosa – e por isto mesmo muito rabugenta – retomou a discussão no ponto em que parará.

– Agnar é que é o tal! – corneteava ela o dia inteiro no ouvido do marido, que se fazia de desentendido. – Geirrod não é de nada! Viva Agnar! Viva Agnar!

Não restava dúvida alguma de que ela queria uma boa briga: em casa, no conforto do lar, enxergando todos os seus objetos e conhecendo o ambiente com a palma da mão, Frigga estava em seu território. Odin não tardou a perder a paciência e saiu em defesa de Geirrod e nesta chateação ficaram os dois por muito tempo, atazanando a paciência dos demais deuses com os gritos da luta conjugai.

Enquanto isto, em alto-mar, e já perto da costa onde ficava seu reino, os dois irmãos não viam a hora de desembarcar.

– Finalmente, caro Geirrod, estamos quase em casa! – gritava Agnar, sem conter a euforia.

Geirrod, no entanto, tinha o olhar voltado para a praia. Seus olhos vasculhavam a costa inteira para se certificar de que ninguém os enxergava.

– O que houve? – disse Agnar, intrigado com o mutismo do irmão.

– Nada, nada… – disse o outro, procurando disfarçar. – Estou tentando avistar algum conhecido na beira da praia.

O barco aproximou-se da costa. Geirrod pediu, então, que Agnar fosse buscar algo no fundo da embarcação e, tão logo este lhe deu as costas, golpeou-o com um pesado bastão.

– Pronto, agora fique quietinho aí!… – disse ele, com um sorriso perverso.

Tomando do remo, ele aproximou a embarcação da praia, desembarcou num pulo e devolveu às águas o barco, o qual, engolfado rapidamente numa corrente marinha, foi levado para bem longe do reino. Geirrod tinha certeza que o irmão pereceria de fome e sede antes de chegar a qualquer lugar habitado.

– Adeus, importuno! – disse Geirrod, abanando para a embarcação. – A partir de agora, o herdeiro da coroa passa a ser eu!

Geirrod apresentou-se no mesmo dia diante do pai, o velho e quase decrépito rei Hrauding, e lhe contou a história à sua maneira, repetindo-a tal como ocorrera, mudando apenas o final.

– Oh, papai…! – disse ele, engasgando fingidamente. – Não sei como lhe diga…! O

seu adorado Agnar morreu em alto-mar e nossos olhos nunca mais o avistarão!

O adorado Agnar, entretanto, fora parar muitos dias depois, com as roupas em tiras e virado em um esqueleto semi-morto, numa ilha habitada por gigantes, onde ficaria ainda por muitos anos até se restabelecer da ferida provocada pelo traiçoeiro golpe, bem como das seqüelas da inanição.

Mas tudo isto deveria servir, pelo menos, para resolver, de uma vez, a pendenga em Asgard: o canalha era mesmo Geirrod.

***

Infelizmente, não serviu: a partir daí mesmo é que a discussão pegou fogo na morada dos deuses. Odin, sem querer dar o braço a torcer – mesmo após o ato abominável perpetrado pelo seu favorito -, teimava, como um pai cego pelo amor, em declarar o perverso Geirrod melhor que o irmão Frigga, a seu turno, possuída pela ira e repleta de argumentos, investia contra o esposo como uma valquíria enfurecida.

– Vai teimar ainda, depois de tudo o que seu queridinho fez? – disse ela, com as mãos na cintura. – Então, ficou cego dos dois olhos de uma vez…!

– Geirrod é que é o tal – só dizia o deus, sem encontrar outro argumento.

Os anos passaram e Odin resolveu recorrer ao deboche, uma vez que Frigga não cessava de tripudiá-lo. Um dia, então, estando sentado em seu trono mágico, de onde podia avistar tudo o que se passava em qualquer parte do universo, chamou sua irritante esposa.

– Está vendo os dois? – disse ele, com uma indisfarçada nota de presunção na voz. –

Geirrod é, hoje, um rei em seu país; já seu protegido não passa do afilhadinho efeminado de uma giganta qualquer numa ilha perdida no fim do mundo!

Não adiantava Frigga retorquir que Geirrod era um patife e que adquirira sua posição à custa de um odioso crime: ela bem sabia que um passado vil se dilui, facilmente, diante de um presente magnífico. Geirrod era agora um rei inconteste, sólido em seu trono, tal como Odin no seu – e, para a ralé mundana, era isto o que contava.

Então Frigga, cuja virtude neurastênica a tornava extremamente hábil na invenção de tormentos e castigos, decidiu fazer com que seu obtuso esposo provasse um pouco da perversidade de seu protegido. “Infelizmente, somente desta maneira dolorosa meu pobre esposo chegará a reconhecer a verdade…!”, pensou Frigga, sentindo-se tão nobre e piedosa que chegou a converter a pena fingida que sentia por seu marido numa pena sincera por si mesma.

– Seu queridinho é tão mesquinho e egoísta – disse Frigga – que tem o péssimo hábito de torturar os próprios hóspedes, desde que não lhe caiam no agrado!

Odin enfureceu-se de verdade desta vez.

– Oh, mulher vil e caluniosa…! – disse Odin, expelindo, involuntariamente, alguns perdigotos divinos pela boca. – De onde tirou tal disparate?

– Todos sabem disto naquela corte infame! – retrucou Frigga, triunfante. – Só você, o grande patusco, é que desconhece o fato!

Odin fez, então, o que sua esposa já esperava que fizesse: prontificou-se a ir até a corte do seu protegido para provar que aquilo era uma calúnia baixa.

– Desta vez, você desceu demais e eu vou lhe provar isto!… – disse o deus, erguendo-se num ímpeto e indo logo buscar na estrebaria o seu magnífico cavalo, Sleipnir

– aquele de oito patas, que era o mais veloz do universo e tudo o mais.

– Espere, leve, ao menos, um agasalho para não apanhar um resfriado na viagem –

disse Frigga, demonstrando um súbito resquício de afeto, que chegou a embaraçar, por alguns instantes, o seu irado esposo. Enquanto Frigga esteve ausente – um bom tempo -, Odin chegou mesmo a sentir por ela um resquício de ternura.

“Ora, gostei disto…!”, pensou ele, com uma certa umidade no olhar. “Ela ainda preocupa-se comigo, afinal!” E chegou a dar graças a si mesmo por não lê-la chamado de Frigga frígida, ofensa medonha que só usava em último caso, por saber que nada a deixava mais enlouquecida.

Dali a muito tempo, ela retornou com a pele de urso predileta de Odin, dizendo:

– Pronto, vá lá e veja você mesmo com quem está lidando!

***

Odin chegou à noite à corte de Geirrod, incógnito, sob o nome falso de (irimnir.

– Deixem-me passar, lacaios! – disse ele, ao chegar ao portão do palácio tio novo rei, pois não fazia muito tempo que o velho havia morrido e o tratante assumido o seu lugar.

O que ele não sabia, no entanto, é que Frigga havia ordenado a um de seus mensageiros que fosse na frente levar um recado ao perverso rei (daí a demora em lhe trazer a pele de urso). Este recado dizia simplesmente:

“Magnífico rei: um canalha e traidor da pior espécie, que atende pelo nome de Grimnir, aproxima-se de sua morada para lhe trazer a desgraça e o infortúnio; se ainda quiser ter o pescoço em cima dos ombros no alvorecer do próximo dia, trate logo de aprisioná-lo e metê-lo nos tormentos, assim que ele ousar pôr os pés no mesmo chão que seus divinos pés abençoam. “

Ass.: “Uma Amiga.”

Odin foi recebido de maneira um tanto desleixada pelo rei, o qual estava mais deitado do que sentado em seu trono ordinário (pois aquele reino era, na verdade, bem miserável, comparado a outras cortes, infinitamente, mais ricas e brilhantes).

Um serviçal vil e careca, que parecia se regozijar, imensamente, com sua subalternidade, acabara de ler ao tirano o conteúdo do bilhete. As palavras sussurradas pelo verme calvo pareciam ter-lhe deliciado ao extremo, pois, logo em seguida, as duas tiras secas dos seus lábios se arreganharam num sorriso torpe.

– Ah! É você, então, o ilustre estrangeiro! – disse ele, escorregando mais um pouco no seu troninho de pau, pintado com uma casquinha de ouro tão fina que a unha poderia descascá-la.

Odin olhou para o alto, pois sabia que de algum lugar sua esposa o observava.

“Ilustre estrangeiro…!”, pensou ele, com a vitória na mão. “Aí está, linguaruda”, acrescentou, esquecendo o fiapo de ternura e assumindo, outra vez, a postura cruel do vencedor.

O estrondo de um escudo que caíra ao se desprender de uma das paredes encardidas, entretanto, atroou todo o recinto, dissolvendo o seu pequenino triunfo.

– Oh, o escudo magnífico de meu bisavô! – exclamou Geirrod, irado. -Quem foi o imbecil que o deixou cair?

Fora o Tempo, o imbecil que deixara o velho escudo cair, mas já outro imbecil – o lacaio da cabeça pelada – arremessara-se a ele sem perder um segundo.

– Aqui está, realíssima alteza!… – disse o serviçal, cuja careca estava es-carlate pela expectativa de uma recompensazinha.

– Idiota! – exclamou o tirano. – Deixou que ele amassasse!

De fato, o escudo maravilhoso – o melhor e mais rico objeto do palácio inteiro –

depois da queda, virará uma bacia velha e amassada. Na verdade, o metal do qual fora feito era tão ordinário que o ferrão de uma abelha poderia atravessá-lo de lado a lado.

Mas logo as atenções estavam voltadas, novamente, para o visitante.

– O seu nome…! – disse Geirrod a Odin, com secura na voz. – As coisas começavam a dar para trás e isto era o bastante para ele mandar às favas o verniz que recobria, mal e porcamente, a sua péssima educação.

– Grimnir é meu nome! – disse Odin, com altivez.

– Levem-no imediatamente! – bradou o rei. – E já sabem para onde!

Por que Geirrod usara daquele tom?, pensava Odin, desconfiando um pouco da fidalguia do seu anfitrião. Mas, quando os guardas agarraram-no pelos braços e o levaram de arrasto para dentro do palácio, Odin ficou mais branco que um coelho enterrado na neve. O deus foi lançado na mais fétida das masmorras, e ali esteve trancafiado a noite inteira até que, ao alvorecer, dois guardas vieram e o levaram, coberto de algemas e correntes até a presença do rei.

Quando chegou ao salão, viu que havia duas fogueiras armadas.

– Coloquem-no entre as duas fogueiras! – disse o rei, que estava com uma perna por cima da guarda do trono, como quem estivesse prestes a assistir a um espetáculo muito divertido. – Agora você ficará aí nos próximos oito dias, até confessar quais são seus nefandos propósitos!

Odin estava envolto num manto escuro de propriedades mágicas e, graças a ele, pôde suportar os primeiros dias daquela bárbara prova, o que lhe deu ânimo para inventar desculpas para o comportamento monstruoso de seu anfitrião.

– Afinal, está um frio dos diabos, mesmo!… – disse, mais para que sua esposa Frigga escutasse do que para si mesmo.

Mas, no quarto dia o suplício tornou-se a tal ponto insuportável que Odin teve de admitir, finalmente, que estava diante de um tremendo canalha.

– Muito bem, Frigga, você venceu! – exclamava ele, em meio às labaredas.

O manto de Odin tinha esquentado tanto que já aderira à sua pele, causando-lhe indizíveis dores. No oitavo dia, entretanto, o filho de Geirrod – que linha o mesmo nome de seu infeliz tio, Agnar, e também o seu bom coração – sentiu pena do hóspede maltratado e lhe levou um chifre repleto de hidromel.

Um pouco refeito dos seus padecimentos, Odin chegou à conclusão dique já era hora de acabar com sua teimosia.

– Muito bem, tirano maldito! – disse o deus, liberte-me já! Caso contrário será punido com a morte!

– Enlouqueceu de vez! – disse o rei, ainda mais deliciado.

Então Odin começou a entoar as suas runas mágicas e as cadeias foram caindo uma a uma a seus pés, ao mesmo tempo em que as duas fogueiras se extinguiam diante dos olhos do rei.

Liberto, o deus supremo pôs-se em pé, pronto para a desforra. Geirrod, aterrado, ergueu-se lambem, mas ao ver que seu inimigo avançava sobre ele, tomou de sua espada. Porém, ao descer de seu trono mambembe, meteu o pé num furo do tapete vermelho e caiu de cara na ponta da espada, morrendo no mesmo instante.

Agnar, o filho de Geirrod, sucedeu ao pai no trono e a primeira medida que tomou foi mandar trazer do exílio o seu tio, de modo que ambos viveram felizes para sempre naquele pobre, porém, decente reino.

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