O anel de Andvari

Odin, Loki e Honir (um deus menor do panteão nórdico) estavam, certa feita, fazendo mais uma de suas viagens exploratórias pelo mundo, quando, ao passar pela beira de um rio, avistaram uma lontra a saborear um dourado salmão.

– Ora, vejam! – exclamou Loki, esfregando as mãos. – Temos, ao mesmo tempo, duas presas à nossa disposição!

Antes que alguém pudesse fazer qualquer objeção, Loki tomou, rapidamente, uma pedra aguçada nas mãos e a arremessou, acertando em cheio a cabeça do pobre animal.

A lontra caiu morta, instantaneamente, às margens do rio, com o peixe ainda entre os dentes.

Logo, uma fogueira ardia debaixo de uma árvore. Enquanto Honir assava o salmão num espeto, Loki retirava com amoroso cuidado a pele da lontra.

– Dará um belo casaco! – disse ele. – E, de certa forma, será cumprido o seu desejo, minha pobre amiguinha: dentro de instantes, vestido em sua pele, estarei ingerindo a refeição que seu estômago esperava…!

– Basta de gracejos – disse Odin, cuja intuição o alertava de que alguma coisa má iria resultar daquela refeição. – Comam logo e vamos embora.

Loki e Honir comeram o salmão até deixar somente as espinhas sobre a relva.

(Odin, contudo, nada comeu, pois se alimentava somente de hidromel, o néctar divino.) Saciado o estômago, partiram todos outra vez; Loki ia à frente, faceiro, para que ninguém empanasse o brilho do seu novo casaco. Até o fim do dia, não pararam mais até que, já ao crepúsculo, Honir avistou uma pequena casa.

– Que tal fazermos uma parada ali? – sugeriu, pois tinha os pés em brasa. Ninguém se opôs e, logo estavam lá dentro, recebidos pela cordialidade de Hreidmar, um velho senhor que pertencia a raça dos Anões.

– É uma honra tê-lo em minha casa – disse ele a Odin, relanceando também um olhar aos demais, incluindo-os tacitamente nas boas-vindas.

Outra vez, Loki e Honir viram-se diante de uma bela refeição até que, de repente, a vistosa pele de Loki atraiu a atenção do dono da casa.

– Estranho, parece-me que já a conheço… – disse o velho anão, sentindo uma angústia oprimir-lhe o peito.

Não demorou muito para que Hreidmar fizesse uma dolorosa descoberta.

– Oh, deuses! – exclamou ele, com um grito de dor. – Um crime hediondo! Odin e os demais entreolharam-se abismados, sem nada entender; pediram, então, explicações ao anão.

– Como? – rugiu ele, colérico. – Dar-lhes explicações? Não, meus senhores, é a mim que as devem, pois este, que aí está, é meu filho Otter!

– Seu filho? – perguntou Honir, atônito.

– Sim, Otter usava o disfarce de uma lontra para realizar as suas pescarias!

– disse Hreidmar, tomando o casaco das mãos de Loki e abraçando-o em prantos.

Odin voltou-se feroz para Loki, que quase sumiu debaixo da mesa. “Outra confusão que nos arma!”, disse o velho deus com o olhar.

– Que ninguém saia desta casa sem antes pagar pelo assassinato de Otter!

– bradou o irado anão.

No mesmo instante, surgiram Fafnir e Regnir, seus dois outros filhos, armados de lanças e machados, os quais, apesar da pouca estatura, mostravam-se dispostos a dar cumprimento à determinação de seu pai.

O velho anão exigiu dos três deuses que lhe efetuassem um ressarcimento pela morte do filho, ou então, que entregassem o pescoço à sua espada. Como todo bom anão, Hreidmar exigiu que o pagamento fosse feito em ouro.

– Loki, o assassino, ficará encarregado de arrumar o ouro, que deverá ser suficiente para encher a pele da lontra, empilhando-o ainda por cima até cobri-la totalmente – disse o anão de modo terminativo.

Depois de estudar a questão, Odin decidiu acatar as exigências de Hreidmar, mais por pena do velho pai do que por receio das armas de seus minúsculos filhos.

– Vá, Loki – disse ele, fazendo um gesto com a mão. – Já que nos meteu nesta enrascada, dê agora um jeito de nos livrar dela também.

***

Loki partiu ainda noite fechada. Um teto branco de nuvens recobria sua cabeça, enquanto um vento frio arremessava flocos pesados de neve em todas as direções. Sem poder, naturalmente, levar seu novo casaco, o desastrado deus tinha motivos de sobra para maldizer a sua sorte.

– Por que estas coisas só acontecem comigo? – perguntava-se ele, parecendo um fiambre, enrolado três vezes em seu manto fino e insuficiente.

Loki deveria ir até o país dos Anões, também chamados de Duendes ou Elfos Sombrios, pois viviam em cavernas ocultas sob a terra.

Apesar da nevasca, estava-se já em pleno período do degelo, o que não tornava nada incomum que Loki metesse, de vez em quando, o pé até as canelas, numa profunda poça de água, coberta apenas por uma enganosa casquinha de gelo. Graças, porém, aos bons fados, conseguiu chegar lá com certa rapidez.

O dia amanhecia e Loki, na pressa, esquecera de levar suprimentos de modo que seu café da manhã esteve em sério risco de não se realizar. Porém, mais uma vez, surgiu à sua frente um rio salvador – ou antes, mais um rio problemático, como logo se verá. Loki chegou até a margem e observou diversos salmões, vagando de lá para cá sobre o espelho gelado da água. Advertido que fora pelo primeiro incidente, deveria ter preferido ignorar os peixes; mas, como sua fome era maior do que qualquer raciocínio, Loki não hesitou em se servir, mais uma vez, de um daqueles apetitosos peixes.

– Este é o mais gordinho…! – disse ele, agarrando um salmão rechonchudo.

Entretanto, quando se preparava para meter o desgraçado no espeto, escutou um ruído semelhante a uma voz escapar de sua boca redonda.

– Largue-me, imbecil! – disse o salmão, numa voz ofegante. Suas escamas estavam todas eriçadas e suas douradas barbatanas agitavam-se freneticamente.

– Maldição…! – exclamou Loki, indignado. – Não há mais salmões ou lontras de verdade neste mundo? – Depois, encarou bem o peixe nos olhos, que arfava miseravelmente, e disse: – Quem é você, afinal…?

– Sou Andvari, o mais poderoso de todos os duendes! – gritou o peixe.

– Oh, não é!, pelo menos neste momento! – escarneceu Loki perversamente.

– Deixe-me ir embora, ordinário!

– Posso saber o que fazia dentro da água a estas horas?

– Pescava, já se vê!

– Como assim?

– Que meio melhor de pescar um salmão do que se fingir um deles?

– E por que disse que é o mais poderoso de todos os duendes?

– Porque sou, já se vê!

– Não vejo poder algum num salmão quase morto!

– Quer o quê, imbecil?, que eu ande por aí com minhas fabulosas riquezas?

– Fabulosas riquezas…? Então, o salmãozinho guarda ouro em casa? Desta vez, Andvari teve ódio de si mesmo: abrira demais a sua boca de peixe!

– Quem é o imbecil, agora, espertalhão? – disse Loki triunfante.

O deus havia achado o que procurava: muito ouro para resgatar os seus companheiros da enrascada que arrumara com o outro anão.

– Leve-me já à sua casa! – disse ele, ameaçando atravessar o salmão de lado a lado num graveto afiado.

Sem meios de opor resistência, Andvari levou Loki até sua residência, que estava situada abaixo da terra. Não havia tocha alguma pelos corredores estreitos cavados na própria rocha, pois o brilho intenso que irradiava das janelas da casa de Andvari bastava para iluminá-los perfeitamente.

Loki sorriu, satisfeito, como poucas vezes sorrira.

Quando ambos entraram na bela casinha, Loki permitiu a Andvari, que retornasse à sua forma normal, uma vez que o duende estava preso ao compromisso de pagar a liberdade com suas riquezas.

– Quanto quer?, não muito, espero! – disse o nanico, contrariado.

– Oh, nada que vá reduzi-lo à miséria – disse Loki, cujos olhos reluziam mais que o próprio ouro ali ajuntado. De fato, montanhas de jóias e barras de ouro e de prata, além de enormes sacos de ouro em pó, estavam empilhados por toda parte, de sorte que Loki e Andvari só podiam se movimentar em fila indiana.

Por detrás de um verdadeiro muro de ouro, porém, ainda podia se percebei’ o pedaço de um antigo e pequeno quadro de parede, já sem o vidro protetor. Dele, somente podia-se ler duas palavras, que se destacavam bem nítidas, uma acima da outra: a de cima dizia “ouro”, e a de baixo, “dominá-lo”.

– É o seu lemazinho, hein? – disse Loki, fungando um riso de aprovação.

O duende abaixou os olhos e mandou, apressado, que seguissem adiante.

– Vamos aliviá-lo um pouco deste aperto danado! – disse Loki, esbarrando os joelhos em enormes baús e canastras atopetados de ouro – Verá como, após a minha saída, a sua casa vai se tornar bem mais arejada…!

O duende mordia o lábio inferior.

– Vamos, tenho mais o que fazer! – disse ele, com muito maus modos.

Loki começou a escolher as suas peças; com um carrinho de mão, foi amontoando tudo o que encontrava de mais valioso até deixá-lo abarrotado de riquezas verdadeiramente celestiais.

– Acho que isto basta – disse ele, voltando-se para o duende.

Neste instante, porém, percebeu que o pequeno ser ocultara algo dentro do seu bolso esquerdo.

– O que tem aí, sabichão? – disse Loki, intrigado.

– Nada que vá lhe fazer falta! – disse o duende, azedo.

– Vamos, deixe-me ver! – bradou Loki. – Se não me mostrar, não haverá acordo nenhum!

Andvari, com a morte na alma, retirou do bolso um pequeno anel. Desde o primeiro instante, ele exerceu uma atração formidável sobre os olhos – e principalmente o coração

– de Loki, bem como de todo aquele que o observasse. Era feito de um ouro puríssimo, porém, uma aura – também dourada, mas infinitamente sinistra – o envolvia, como se uma alma imaterial corrompida resguardasse um corpo absolutamente perfeito.

Loki aproximou-o do olho, mas não pôde contemplá-lo por muito tempo, tal o fulgor que despendia. Imediatamente, guardou-o em sua algibeira como o bem mais precioso de toda a casa.

– Deixe-o comigo, estou lhe avisando! – gritou o duende, com a voz rascante. – Ele trará males terríveis a todo aquele que o possuir!

– Oh, sim…! – disse Loki, dando-lhe as costas. – Estou vendo todo o mal que lhe trouxe!

– Trouxe você; não é mal o bastante? – disse Andvari, amargurado.

Mas, Loki não estava disposto a devolvê-lo por nada deste mundo. Por isso saiu porta afora com seu carrinho sem querer escutar mais unia palavra. Somente quando já estava inteiramente a salvo, voltou a cabeça para se despedir do anão com esta ironia:

– Volte para casa, velho avarento! E, agradeça a mim, pois além de ouro, agora sobra também espaço em sua bela casa…!

Andvari ainda lhe rogou algumas imprecações, mas este desapareceu, logo em seguida, tomando o atalho de uma escura floresta.

Quando retornou para a sua sala, entretanto, percebeu que, de fato, ela se tornara bem mais espaçosa: eleja podia até caminhar por tudo sem ter de arrastar os sapatos, como se eles estivessem amarrados um no outro.

Então, subitamente, seus olhos foram atraídos à parede onde antes havia a pilha de ouro. O quadrinho, que até então estivera tapado, voltara a se destacar. Ele o mandara fazer quando era ainda muito jovem – um alegre duende, cuja única riqueza era sair todas as manhãs para ir andar, despreocupadamente, pelos bosques. Desde aquele dia, ele o afixara em sua parede principal e ali esteve, gloriosamente, à vista de todos, durante o período áureo de sua vida. Ainda havia ouro suficiente na sala para iluminar os seus dizeres, cobertos apenas por uma fina camada de pó:

“Suas mãos vão se encher de ouro;

e, apesar disso, o ouro não vai dominá-lo. “

***

Loki retornou à casa do anão Hreidmar, onde estavam Odin e Honir como reféns, e despejou o conteúdo do carrinho diante do anão, que, mesmo assim, ordenou que Loki cumprisse à risca o combinado:

– Encha a pele da lontra e depois a cubra com todo o ouro que restar.

Loki fez o que o anão ranzinza determinara; mas, tomara o cuidado de entregar o anel a Odin, que desde que pôs os olhos nele cobiçou-o terrivelmente.

A pele de lontra encheu-se das riquezas e foi toda coberta com o ouro -ou quase toda, pois o anão Hreidmar, após detida inspeção, encontrou um pedaço de fio a descoberto.

– Ponha, ali, o anel – disse ele friamente. Seu tom era de quem dissesse “pensam, então, que não o vi esconderem?”

Odin relutou muito, mas tal como Andvari, viu-se, afinal, obrigado a se desfazer de sua preciosidade. Hreidmar apoderou-se do anel, porém, sob as vistas dos dois filhos restantes, Regnir e Fafnir.

– Agora, já podem ir – disse ele, como quem desejasse ver-se livre de perigosos rivais.

Odin, Loki e Honir deixaram a casa e o fizeram em boa hora, pois a maldição do anel começou a fazer efeito tão logo os três puseram o pé fora da porta.

– Que anel magnífico é este? – disse Regnir, tentando se aproximar.

– Deixe-me experimentá-lo! – disse Fafnir, com os olhos arregalados.

Hreidmar ergueu o braço, ocultando o outro, onde estava o anel.

– Não se aproximem! – disse ele furioso. – Não há ouro bastante, aí no chão, para os dois?

Sem dúvida que todo aquele ouro era tentador e cada qual, à esta altura, já pensava no meio de ficar com a melhor parte. Otter, o irmão morto, havia desaparecido completamente de seus pensamentos.

– Dê-me logo a minha parte! – bradou Fafnir, que era o mais sedento.

– E a minha também! – secundou Regnir.

Hreidmar, que já havia escondido o anel nas profundezas do seu colete, percebia, agora, o verdadeiro montante da riqueza amealhada por Loki.

“Uma imensa fortuna!”, pensou ele. “Mas, uma imensa fortuna dividida em três partes, não passará nunca de três pequenas fortunas”, acrescentou. Este pequeno silogismo bastou para criar a convicção de que não poderia ser assim.

– Depois, veremos a partilha; por enquanto, vou calcular o valor real de todas estas preciosidades – disse ele, dispensando os dois filhos.

– Ei, que negócio é este? – disse Fafnir, voltando-se para o irmão em busca de um aliado.

– Calado, para fora os dois! – disse o velho, furioso.

Fafnir ainda empunhava seu machado. Desta feita, voltou-se para o irmão em busca de um cúmplice.

– Vai permitir que lhe passem a perna, imbecil? – disse, raivoso.

– Papai, seja razoável; vamos dividir este negócio agora mesmo! – disse Regnir, tentando contemporizar.

– Patifes…! Fora daqui…! – respondeu ele. – Como ousam me desafiar?

Fafnir, sem esperar mais nada, empunhou seu machado e num golpe repentino liquidou com Hreidmar. Regnir, apavorado, recuou até o fundo do aposento.

– Maricas! – disse seu irmão, metendo a mão no bolso do pai abatido e tomando para si o anel fabuloso.

– Esta preciosidade fica comigo! – disse ele, momentos antes de fugir com todo o ouro.

Regnir fez menção de impedi-lo, mas seu irmão olhou-o de um modo tão medonho que ele não teve a menor dúvida de que teria sido liquidado naquele mesmo instante caso tivesse ousado enfrentá-lo.

Fafnir colocou todo o tesouro dentro de uma carroça e partiu no mesmo dia para um local ignorado. Somente muito tempo depois, Regnir descobriu o local do seu esconderijo.

Seu irmão, entretanto, dominado pela cobiça e pelo anel, havia se transformado num terrível dragão.

Desde então, este dragão tornou-se o vigia perpétuo do seu tesouro, do qual a peça mais importante era um pequeno e dourado anel, em cujo círculo a morte girava, eternamente, à espera da próxima vítima.

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