Sigurd e o anel do dragão

Sigurd era filho do guerreiro Sigmund e de sua esposa Hiordi. Sigmund morrera, já velho, em pleno campo de batalha, depois que Odin quebrara sua espada momentos antes do combate.

Tão logo Sigmund expirara, sua esposa fora levada embora por um viking de nome Elf, que era filho do rei da Dinamarca. Hiordi, grata pela generosa acolhida, acabou por se casar com Elf e, ali mesmo, em terra estrangeira, deu à luz a seu filho, que se chamou Sigurd3. O pequeno garoto, entretanto, foi entregue aos cuidados de Regnir, um anão feiticeiro, irmão de Fafnir, cuja ambição o transformara em um repelente dragão.

Sob a orientação deste ser sábio – e, ao mesmo tempo, de uma moralidade dúbia –

Sigurd foi criado, recebendo muitos dos privilégios que mereceria um filho do próprio rei.

Ainda assim, seu preceptor não cansou nunca de lhe incutir o sentimento da revolta.

– Oh, Sigurd… Por que se contenta em ser um personagem secundário nesta corte medíocre, quando poderia ser o primeiro entre todos? – dizia-lhe Regnir todos os dias, enquanto lhe ia ministrando os muitos segredos que conhecia. – E a sua herança, a qual faz jus por ser filho de uma rainha, onde está? Alguém já lhe falou do assunto? Você já é um homem feito, e, no entanto, ainda não tem meios de exercer a sua liberdade. Sigurd, creia-me: um homem sem ouro, não vale nada em lugar algum!

Furioso com a nula receptividade de seu discurso, Regnir disse-lhe com uma nota de escárnio na voz:

– Sigurd, como pode aceitar o fato de ser o único homem da corte a não ter seu próprio cavalo?

O jovem, entretanto, acostumado a correr com os cavalos que escolhia livremente na coudelaria do próprio rei, jamais tinha pensado no assunto.

– Um cavalo só para mim…? – disse ele, com o ar surpreso.

– Claro, seu tonto! – respondeu Regnir, sapateando no pó. – Você tem direito a ter sua própria montaria!

Sigurd resolveu, então, procurar o rei e fazer seu pedido.

Ao contrário do que se poderia esperar, foi atendido pelo rei, que o autorizou a escolher um de seus melhores cavalos. Quando chegou à coudelaria, porém, encontrou um velho caolho envolto num manto, que parecia ser o cavalariço real.

– Jovem Sigurd, vem, finalmente, escolher sua própria montaria? – disse o velho, como se já estivesse informado há muito do fato.

– Sim, mas como sabe disto? – disse Sigurd, intrigado.

– A melhor maneira de escolher um cavalo, é montando-o. Pode parecer óbvio, mas poucos tem a lucidez para percebê-lo!

Sigurd deu ao velho um sorriso de assentimento.

– Muito bem, vamos montá-los, então, um a um!

3 Este Sigurd da saga nórdica é o mesmo Siegfried dos alemães, que se tornou mais popular sob esta denominação graças, em boa parte, a duas obras que tratam de suas aventuras. A primeira. A Canção dos Nibelungos, é um poema germânico medieval, e a segunda, O Anel dos Nilbelungos, é a famosa tetralogia opetística de Richard Wagner. As duas variantes germânica diferem em muitos pontos da versão nórdica que aqui apresentamos. (N. dos A.)

– Não, não aqui!… – disse o velho, abanando a mão. – Leve-os até o rio e entre com eles no vau da correnteza; aquele que segurar melhor as patas dentro da água, será o escolhido.

Sigurd fez o que o velho sugerira e, depois de estar dentro do rio o dia inteiro, chegou, finalmente, a uma conclusão:

– É este! – disse ele, acariciando as crinas de um belo e lustroso cavalo negro.

– Greyfell! – exclamou o velho caolho, satisfeito. – Tal é o nome deste belo cavalo. –

Depois, voltando-se para o jovem, acrescentou: – Sabe de quem descende?

– Não faço a menor idéia – respondeu o jovem Sigurd.

– Ele é filho de Sleipnir, o maior de todos os cavalos! – disse o velho, com orgulho. E

ele podia sentir-se, de fato, orgulhoso, pois era o próprio Odin, o dono do célebre cavalo de oito patas. Porém, o velho deus não revelou a Sigurd a sua identidade, desaparecendo logo em seguida.

De posse de seu novo cavalo, Sigurd aprendeu as artes da cavalaria, que o anão Regnir lhe ensinou com todo o empenho. Mas, na cabeça deste ainda estava fixa a idéia de fazer com que o herói se tornasse tão ambicioso quanto ele próprio.

Pois, a verdade é que havia uma riqueza que o anão ambicionava mais que tudo neste mundo e que estava guardada por seu irmão Fafnir, o qual se convertera em um temível dragão para melhor protegê-la.

“Está chegando a hora, astuto Regnir, de você pôr as suas mãos naquele belíssimo tesouro”, dizia ele todos os dias para si mesmo. “E também naquela encantadora preciosidade!” (O anão referia-se ao anel que fora forjado pelo também anão e mago Andvari, e que acabara, depois de muitas peripécias, por cair em poder de Fafnir.) Mas, agora, Regnir estava prestes a se apoderar das riquezas, pois havia treinado um guerreiro especialmente para isto: Sigurd, o nobre filho de Sigmund.

O jovem mataria o dragão, segundo os planos do anão e, então, ele próprio mataria o herói, apoderando-se afinal do seu precioso anel.

Regnir esperou o dia seguinte para ir conversar com Sigurd sobre o assunto. Ele combinou um encontro na forja, onde o rei dinamarquês fabricava as espadas suas e as de seu exército. Tão logo avistou o herói, que recém voltara com seu cavalo Greyfell de uma alucinante cavalgada pelas florestas, chamou-o até si.

– Rápido, Sigurd, precisamos ter uma conversa muito séria.

– Que ar grave é este, mestre anão? – disse o jovem, que ofegava ainda da excitante cavalgada.

– O mesmo que verei em seu rosto, ao ouvir uma espantosa revelação.

Regnir contou, então, a Sigurd toda a história a respeito do anel de Andvari até o momento em que ele fora parar nas mãos de seu irmão, Fafnir.

– Um dragão? – exclamou Sigurd, excitadíssimo. – Um dragão de verdade?

– Sim, um terrível e sanguinário dragão. Caberá a você a honra de abatê-lo – disse Regnir, com a mais sedutora das vozes.

A cabeça de Sigurd verdadeiramente girava: “Combater contra um dra-gflo!”, pensou ele. De repente, porém, um ricto de raiva enrijeceu seus lábios.

– Mas como o enfrentarei, anão maldito? – disse o jovem, tornando-se rude. – Com estas espadinhas de brinquedo que você forja todos os dias?

Regnir ocultou um sorriso de satisfação. “Começa a cair na cilada!”, pensou.

– Vou tentar forjar a melhor espada que puder – disse ele, tomando do martelo. –

Enquanto isto, vá testando estas outras que fabriquei durante a noite.

Sigurd voltou os olhos para uma mesa, onde estavam amontoadas várias espadas recém forjadas. Um sopro de desdém partiu dos lábios do jovem.

– Dou o meu pescoço a qualquer delas se resistirem a um único golpe! -disse ele, tomando da primeira e brandindo-a no ar com pouco entusiasmo.

– Vá testando-as, vá testando-as…! – disse o anão, enquanto malhava a nova, sem qualquer convicção, pois ele sabia que aquela ainda não seria a arma ideal.

Uma a uma as espadas foram sendo quebradas pelos golpes poderosos que Sigurd desferia contra a bigorna.

– Veja só, que bela porcaria! – dizia o jovem, a cada nova frustração. Finalmente, depois que o jovem havia espatifado todas as espadas, Regnir estendeu-lhe a nova, recém forjada.

– Vamos, tente esta! – disse o anão, fingindo uma confiança que não sentia.

Sigurd tomou a espada em suas mãos e, após tomar-lhe o peso, vibrou-a com toda a força sobre a bigorna. Uma chuva de cacos de metal esvoaçou por toda a forja, enquanto a bigorna permanecia intacta.

Sigurd, furioso, agarrou o anão pelo colete e o suspendeu até o seu rosto.

– Muito bem, tratante, era só isto que tinha para me mostrar? – Suas faces estavam congestas e uma decepção profunda lançava uma sombra terrível em seu olhar. – É com estas porcarias que pretende me enviar para enfrentar Fafnir? – disse ele, cujos lábios espumavam. – Será que deseja, por algum motivo que ignoro, a minha própria morte?

Desta vez, Regnir assustou-se com a reação do jovem aprendiz.

– Calma, jovem, ponha-me no chão! – disse ele, pedalando suas minúsculas pernas no ar.

– Antes, você me dirá o que pretende com esta história de dragão! – disse Sigurd, dando mais uma sacudida no pobre anão.

– Há uma espada… uma espada mais poderosa… do que qualquer outra!

Ao escutar isto, Sigurd largou o anão, que foi se estatelar no chão numa posição pouco honrosa. Recompondo-se, imediatamente, ele declarou:

– Seu pai, meu irascível jovem, possuía uma espada forjada pelo próprio Odin! E, então, que tal lhe parece?

Sigurd ficou mudo de espanto. Seria mais uma mentira do pérfido anão?

– Ela se quebrou no dia da morte de seu pai – disse o anão, revelando o segredo há tanto tempo escondido. – O próprio Odin a reduziu em pedaços com sua lança, Gungnir, num duelo que manteve com Sigmund.

– Quebrada?! – exclamou o jovem, incrédulo. – Mas, então, para que me servirá, anão maldito?

– Ora, e eu não sou um forjador? – respondeu Regin, assumindo uma postura altiva. –

Sua mãe tem guardados ainda os restos da velha Notung; basta que peça a ela os fragmentos e prometo que a forjarei outra vez, de tal modo que terá a mesma resistência da antiga!

Sigurd, enlouquecido pela maravilhosa perspectiva, saiu correndo da forja e foi até o palácio onde sua mãe Hiordi estava. Depois de lhe implorar que lhe cedesse os pedaços da antiga relíquia, retornou às pressas para a presença do anão.

– Pronto, aqui está! – disse ele, desenrolando os fragmentos diante dos olhos fascinados de Regnir. – Faça-me, agora, uma nova Notung ou partirei seu pescoço com minhas próprias mãos!

O anão não esperou duas vezes e, saltando para a forja, começou a derreter os pedaços da espada, pronto a formar com eles uma nova e poderosa liga.

Sigurd acompanhava os movimentos do anão e ficou de tal modo impaciente que se agarrou ao grande fole e se pôs a manejá-lo com grande empenho.

“Uma criança!”, pensava o anão, deliciado.

Regnir mergulhou o gume da espada, que estava de um vermelho quase incandescido, dentro da tina de água; um chiado feroz levantou-se dela, como se uma serpente em brasa tivesse sido lançada dentro do tonel. Logo em seguida, Regnir pôs-se a martelar o aço sobre a bigorna com golpes precisos e viris.

Mais alguns instantes e a velha Notung estava outra vez reconstituída.

Regnir levou-a, então, com amoroso cuidado até a roda de polir, onde lhe deu o acabamento final, dotando-a de um brilho verdadeiramente ofuscante.

– Eis Notung, a espada de Sigmund! – disse Regnir, erguendo-a e a ofertando a Sigurd. – Agora, ela é toda sua!

Os olhos do jovem brilhavam, quando suas duas mãos cerraram-se em torno do cabo prateado e repleto de lavores. Dando as costas a Regnir, Sigurd dirigiu-se até a bigorna e vibrou um golpe com toda a sua força.

Um estrondo terrível abalou a forja inteira, lançando para o chão o anão c os instrumentos todos. A bigorna jazia partida ao meio, com um pedaço caído para cada lado. Notung, a espada maravilhosa, entretanto, jazia inteira e intocada. Nem sequer uma ranhura ficara em seu gume afiadíssimo.

– E então?… – disse, timidamente, o anão. – Está pronto para a demanda do dragão?

***

Na madrugada do dia seguinte, Sigurd partiu com o anão em direção à caverna onde morava Fafnir, o terrível dragão. O jovem filho de Sigmund levava consigo a poderosa espada numa fina bainha lavrada a ouro. Já o anão trazia uma velha pá enferrujada presa ao ombro por uma correia gasta e esfiapada.

– Vai enterrar o dragão depois que o tiver liquidado com uma pazada? – disse Sigurd, dando uma gostosa gargalhada.

O anão preferiu ignorar o gracejo, dizendo simplesmente:

– Melhor que o aguardemos no rio, onde ele costuma ir, logo cedo, para beber água.

Regnir, ao contrário de Sigurd, falava baixinho, com medo de que as grandes orelhas de Fafnir pudessem captar o som de suas vozes. Sigurd seguiu o conselho do anão, sentindo que seu riso fora mais de puro nervosismo, uma vez que seu coração batia furiosamente dentro do peito.

– Agora, é preciso que entenda que nem só a força poderá lhe ajudar – disse Regnir ao seu protegido -, senão toda a astúcia que também puder empregar.

Estiveram um longo tempo a observar a margem do rio, enquanto uma luz levemente acinzentada iam descorando o grande teto enegrecido do céu. As estrelas também foram adquirindo um brilho diferente, refulgindo ainda mais, como pedacinhos de carvão, que, estando prestes a apagar, lançam ainda um último brilho de surpreendente intensidade. De repente, porém, escutaram, vindo de dentro da mata espessa, um ruído de algo que se arrasta com decisão.

– Regnir, acorde! – exclamou Sigurd, sacudindo o ombrinho do anão.

Regnir acordou num pulo e ficou atento aos ruídos produzidos pelo animal. Algumas árvores sacudiram, derrubando uma chuva de folhas, que esvoaçaram pelo ar junto com uma coleção de passarinhos de várias espécies.

Fafnir, o dragão que protegia o anel e o tesouro de Andvari, aproximou do leito do rio a sua imensa cabeçorra azulada, que despendia, ao mesmo tempo,reflexos de suas escamas avermelhadas. Sigurd levou, instintivamente, a mão à espada, mas foi detido com rapidez pelo anão, que exclamou num sussurro irado:

– Ainda não! Ainda não!

Sigurd devolveu o olhar furioso para o anão, mas este não se intimidou.

– Chegou a hora da astúcia, meu jovem! – disse Regnir. – Vamos, arrastemo-nos, fazendo a volta até o rastro do dragão.

E, assim fizeram, coleando-se pela relva como duas serpentes, com as faces voltadas para a o chão.

– Agora, vamos esperá-lo – disse Regnir.

– Como? Vamos esperá-lo aqui, em pé?

– Em pé, não; enterrados.

– O quê…?

Regnir não se deu ao trabalho de explicar. Simplesmente, ordenou a Sigurd que cavasse uma grande fossa com a pequena pá que trouxera consigo.

Sigurd, sem querer discutir, tomou a pá das mãozinhas do anão e começou a cavar com decisão.

– Sem ruído, rapaz, sem ruído! – dizia o anão, modulando ao mínimo a sua voz fina e estridente.

Depois que Sigurd havia cavado um grande buraco, suficiente para conter a si próprio e ao anão, viu a pá ser retirada, abruptamente, de suas mãos.

– Por que cavar outra? – disse ele, ao ver que o anão cavava furiosamente.

Mas, o anão era realmente muito astucioso e, por isso, resolveu cavar uma pequena fossazinha só para si, pois sabia que ali não haveria encrenca.

– E agora? – disse Sigurd. – Vamos deitar aqui e esperar a volta do dragão?

– Ora, rapazinho! – exclamou Regnir, perdendo a paciência com a falta de perspicácia do afilhado. – Você ainda não entendeu o meu plano?

Ao ver que Sigurd, de fato, nada entendera, completou:

– Dragões são invulneráveis em sua carapaça e, por isto, o melhor que você fará é esconder-se embaixo dele, pois, só assim, poderá atingir o seu ventre, cuja a carne é infinitamente mais vulnerável. Entendeu agora?

– Entendi que você não passa de um grande covarde, e nem é tão inteligente quanto imagina ser – disse Sigurd, triunfante. – Se minha espada é capaz de partir ao meio uma bigorna, por que não poderia fender a pele de um dragão qualquer?

O anão encolheu-se para dentro do seu buraco e resmungou algo inaudível acerca da “prudência”, antes de cobrir a abertura com grandes folhas arrancadas das árvores.

“Atrevido!”, rosnou no interior da sua cova. “Verá, em seguida, a falta que faz uma bela prudenciazinha!”

Sigurd fez o mesmo e ambos ficaram a esperar o regresso do dragão. Um longo tempo passou até que a terra começou a tremer acima de suas cabeças.

“É ele!”, pensou Sigurd, empunhando com gosto a sua espada. “Que venha de uma vez!”

Já o anão limitou-se a se encolher ainda mais no buraco como uma toupeira e, sem dúvida, teria entrado terra adentro se tivesse as garras poderosas daquele animal.

O primeiro a perceber a chegada do dragão foi, justamente, ele. A luz, que até momentos antes iluminava sua cova, bruscamente, desapareceu; uma treva espessa e malcheirosa desceu sobre si durante um longo tempo.

Quando, porém, tudo estava prestes a se acabar, o pobre anão sentiu que algo mole e incrivelmente quente caíra sobre si, queimando-lhe o lombo. Então, mandou às favas a prudência e começou a berrar como um bebê:

– Socorro, Sigurd…! Socorro todos os deuses…!

Não podia ser outra coisa, pensou ele, atarantado: o dragão havia descoberto o seu esconderijo e agora lhe arremessava um jato de seu bafo incandescido!

Mas descobriu que não era nada disto quando a luz retornou e ele pôde ver a cauda do dragão deslizando acima, num movimento pendular, tornando-se cada vez mais fininha até terminar num pequeno triângulo azulado.

Só, aí, percebeu que estava mergulhado num mar de excremento.

Enquanto isto, Sigurd, mais adiante, não estava em melhor situação: com o movimento que o dragão fizera ao se arrastar, a cova, onde o herói estava, aluíra alguns metros e, agora, ele estava no fundo, sem possibilidade alguma de atingir o monstro com sua espada. Mas, foi somente quando a escuridão desceu completamente sobre si que compreendeu que o “plano perfeito” do anão tinha dois furos colossais: como poderia saber, em primeiro lugar, com aquela escuridão completa, o momento exato em que estaria passando sobre a sua cabeça a parte do dragão que abrigava o seu coração? E o pior de tudo: se o animal morresse em cima do buraco, como faria para sair daquela sepultura hedionda?

“Irra! Maldito imbecil!”, pensou Sigurd, enquanto as trevas o envolviam.

Mas agora era tarde para recuar e ele sabia que, se esperasse mais um pouco, seria tarde demais. Então, iluminado por uma idéia repentina, fincou as duas pernas nas paredes estreitas de sua cova e foi galgando-as como uma aranha até quase encostar a cabeça no ser asqueroso, que deslizava acima de si. Descobriu, então, que seus ouvidos podiam captar perfeitamente os batimentos cardíacos do dragão.

Um ruído semelhante àquele produzido por um batedor de tambor, que marca o ritmo nas navegações vikings, soava nitidamente acima de sua cabeça: Tum-tum!… Tum-tum!… Tum-tum!…, tornando-se cada vez mais intenso.

Sigurd fixou bem a atenção e suas pernas já estavam no último limite da resistência quando ele escutou o martelar cavo assumir o seu tom mais ensurdecedor: TUM-TUM…!

TUM-TUM!… TUM-TUM…!

– É agora! – gritou o jovem, agarrando com as duas as mãos o cabo da espada e permanecendo preso ao ar apenas por suas maltratadas pernas. Num impulso que lhe arrancou do peito um grito selvagem, ele arremessou, finalmente, para cima, com todas as suas forças, a ponta da sua espada.

Nem bem a lâmina havia sido enterrada no ventre do dragão, Sigurd caiu ao solo, exaurido. Ao mesmo tempo, um urro colossal partido do peito do dragão atroou toda a sua minúscula caverna. O jovem cobriu os ouvidos com as duas mãos, mas, mesmo assim, quase desmaiou sob o impacto do urro selvagem e, certamente, teria sido destroçado caso o animal tivesse enfiado sua pata imensa dentro do buraco para esmagá-lo.

Mas, felizmente, sua pontaria fora certeira: o monstro ergueu-se sobre as patas traseiras, com as duas patas azuis dianteiras a tatear freneticamente o ar c depois caiu para trás (para sorte dos dois caçadores, bem longe de seus improvisados refúgios), provocando um tal abalo ao trombar contra o solo que o anão foi catapultado de dentro da cova para o ar — livrando-se assim, ao menos, daquele mar de excremento que o envolvia -, e indo se pendurar nos galhos de um imenso carvalho. O dragão, por sua vez, tão logo caíra ao chão deitara pela boca um dilúvio de sangue escarlate, que mais parecia a lava de um vulcão, a escapar por uma cratera cheia de dentes.

Regnir tratou logo de descer da árvore e com a espada de Sigurd arrancou de mesmo o coração do dragão.

– Tome! – disse ele, estendendo a Sigurd o grande músculo, ainda palpitante. – Arme uma fogueira e vamos comê-lo; estou louco de fome.

O coração de Fafnir foi assado até ficar tostado. Então, Sigurd mergulhou nele o seu dedo para ver se o interior estava também cozido.

Quando levou-o à boca, entretanto, sentiu algo estranho em sua cabeça, pois no mesmo instante começou a entender o que os pássaros diziam uns aos outros.

– Pobre rapaz! – dizia um pequeno pica-pau a um tordo, ambos empoleirados em um galho acima da cabeça do herói. – Mal sabe que está prestes a ser alvo de uma odiosa cilada!

Sigurd, ainda incrédulo, voltou sua cabeça para os dois pássaros.

– O pérfido anão está com a espada de Sigurd – disse o tordo, abrindo e fechando o afiado bico com rapidez. – Usará a própria arma do herói para matá-lo!

Este parecia ser o assunto dominante das aves que cruzavam os ares por cima da cabeça do jovem, mais até do que o próprio assassinato do dragão.

Sigurd, alarmado, virou-se para trás assim que percebeu o retorno do anão, que fora até o rio para se banhar e tirar do corpo a terrível catinga do dragão.

– Sigurd não poderá, então, tomar para si as riquezas de Fafnir, nem despertar a bela Brunhilde, que jaz adormecida na montanha de Hind Fell! – lamentou-se o pica-pau.

Então, compreendendo todo o plano do pérfido Regnir, Sigurd aproximou-se do anão e lhe pediu a espada, sob o pretexto de cortar um pedaço do coração. O anão, a contragosto, cedeu, pensando interiormente: “Irra! Que faça antes, então, a sua última refeição!”

Mas assim que Sigurd esteve de posse da espada leu nos olhos do anão toda a sua intenção, e isto bastou para que vibrasse um único e certeiro golpe no pescoço do infeliz.

A cabeça do anão voou de balão e foi cair na relva. Um brilho de estupor e incredulidade iluminou os seus últimos instantes de lucidez.

– Aí está, perverso, o preço da traição! – disse Sigurd, limpando na relva o aço manchado de sangue.

***

Depois de haver matado Regnir, Sigurd resolveu seguir o rastro do dragão morto para descobrir onde ficava o seu esconderijo. Não foi difícil seguir suas pegadas imensas e, num instante, o jovem herói estava diante da caverna.

Ao entrar lá não foi preciso iluminação alguma para descobrir onde estava o tesouro, pois as jóias e o ouro acumulado faiscavam tanto que era só se aproximar e pegá-los aos punhados. Mas, de todas as preciosidades a que mais brilhava, sem dúvida alguma, era o anel de Andvari. Sigurd tomou-o e, após colocar a preciosidade em seu dedo, resolveu ir até sua casa e buscar o seu cavalo Greyfell, que ficaria encarregado de levar o tesouro numa grande arca.

E assim fez. No mesmo dia ele estava rumando com seu tesouro para o castelo de Hindarfiall, ao encontro da misteriosa Brunhilde, que lá jazia adormecida.

Somente quando o crepúsculo já havia descido é que ele chegou à montanha, sendo surpreendido por uma muralha de chamas que a envolvia. Sem temer nada, Sigurd apertou os joelhos nos flancos do cavalo e disse ao animal, dando um sonoro grito:

– Adiante, Greyfell, à fama e à glória!

Com uma velocidade espantosa o cavalo arremessou-se às labaredas e o fez com tanta decisão que antes que o fogo pudesse causar qualquer prejuízo a ambos, estavam os dois já do outro lado, sãos e salvos.

– Bravos, fiel companheiro! – disse Sigurd, acariciando as crinas do cavalo.

O jovem tinha agora à sua frente um palácio majestoso, mas que parecia inteiramente abandonado. Empunhando a sua Notung afiada, ele avançou e adentrou o grande salão deserto, que não tinha qualquer outra decoração em suas elevadas e majestosas paredes, senão verdadeiras cortinas de uma hera espessa, cujos galhos subiam como serpentes até cobrir o teto de um tapete de ramas e folhas entrelaçadas.

Seu olhar, contudo, logo foi atraído para o centro do salão, onde num grande estrado estava deitada uma jovem, vestida numa vistosa e brilhante armadura dourada.

Sigurd viu a si mesmo avançando, através de seu reflexo na armadura espelhada, até chegar ao magnífico estrado. Ali estava a bela Brunhilde enfeitiçada.

Ele tentou avistar o rosto da jovem, mas este estava quase que completamente oculto pelo capacete. Retirando-o com cuidado, ele descobriu que tinha diante de si uma linda mulher – a mais bela que seus olhos já haviam visto…!

Então, sem pensar em mais nada, cortou a parte frontal da armadura com sua espada, como quem corta uma finíssima cota de seda dourada, e libertou o peito jovem da opressão daquela camisa de aço.

Neste momento, os olhos de Brunhilde abriram-se, lentamente, como quem dcspi-rla do um sono profundo.

– Quem é você? – disseram seus lábios, que, instantaneamente, começaram a se tornar rubros outra vez.

– Aquele que a despertou novamente para a vida – disse o jovem, fascinado com tanta beleza.

Aos poucos, a jovem foi recuperando a memória e contou a ele a sua triste história: ela era uma valquíria – filha do próprio Odin – e fora colocada ali por ter desobedecido a uma ordem do pai.

– Somente um herói que desconhecesse o medo poderia ter me libertado! –

exclamou ela, já apaixonada pelo seu jovem libertador.

E, assim, ambos tiveram uma longa noite de amor no castelo abandonado, protegidos pela imensa cortina de fogo, que manteve afastados todos os olhos do mundo.

Começava o romance que acabaria por unir de maneira trágica os destinos dos dois jovens amantes.

Veja outros posts sobre a Mitologia Nórdica:


QUER VIRAR ESCRITOR?
PARTICIPE DO UNIVERSO ANTHARESSAIBA COMO CLICANDO AQUI.

As maçãs da imortalidade - Universo Anthares

As maçãs da imortalidade - Universo Anthares

[…] Sigurd e o anel do dragão […]

O castigo de Loki - Universo Anthares

O castigo de Loki - Universo Anthares

[…] Sigurd e o anel do dragão […]

Thor na terra dos gigantes - Universo Anthares

Thor na terra dos gigantes - Universo Anthares

[…] Sigurd e o anel do dragão […]

A Cabeça de Mímir e o Olho de Odin - Universo Anthares

A Cabeça de Mímir e o Olho de Odin - Universo Anthares

[…] Sigurd e o anel do dragão […]

A história de Gerda e Frey - Universo Anthares

A história de Gerda e Frey - Universo Anthares

[…] Sigurd e o anel do dragão […]

Comments are closed.