Thor e o rapto de Loki

Loki, o deus das confusões, tinha uma predileção especial pelo casaco de falcão da deusa Freya – um casaco mágico que permitia àquele que o vestisse voar livremente feito aquela ave. Um dia, resolveu tomá-lo emprestado e saiu a viajar pelo mundo. Voou por tudo até chegar, finalmente, ao castelo do gigante Geirrod.

– Ufa!… Vou fazer uma parada… – disse ele, pousando na amurada.

Geirrod, no entanto, estava por perto e avistou aquela estranha ave pousada numa das torres do seu castelo.

– Que falcão estranho! – disse ele a um criado próximo.

De fato, nunca ambos haviam visto um falcão tão feio e desengonçado.

– Vá buscá-lo – disse Geirrod ao lacaio. – Deve ser um espião disfarçado. O criado cumpriu a tarefa com tanta eficiência que, em poucos instantes, estava de volta com a ave presa pelo pescoço.

– Veja seus olhos – disse o gigante – não são de uma ave, mas de uni homem.

Vamos, impostor, diga logo quem é e o que pretende!

Loki, surpreendido pela violência do gigante, preferiu calar, mesmo tendo o pescoço quase esganado pelos dedos de ferro do seu algoz.

– Ah, não vai falar? – disse Geirrod, voltando-se para o criado – Prenda-o em uma caixa e o deixe sem alimento até que resolva abrir o bico.

Três meses durou a agonia de Loki, até que um dia o gigante reapareceu c rolhou de dentro da caixa um falcão desmilingüido e com as penas todas amassadas.

– Es…tá bem…. – disse Loki, num fio de voz. – Vou con…tar… tudo…

Loki confessou a sua identidade, o que fez o gigante dar um sorriso tão satisfeito que lhe arreganhou os dentes até o siso.

– Vejam só: é o companheiro do Thor, o nosso maior inimigo! – disse Geirrod, esfregando as mãos. – Muito bem, franguinho, tenho uma proposta a lhe fazer.

Geirrod expôs, então, os termos do seu acordo: Loki seria liberto somente se conseguisse atrair Thor para o seu castelo.

– Mas, atenção: deverá vir sem o martelo ou o cinto de força – acrescentou o gigante, pois sabia perfeitamente que se o deus do trovão viesse com suas armas, promoveria ali um verdadeiro massacre.

Loki partiu sem o casaco de Freya – que ficara em garantia – e, após implorar muito, conseguiu convencer Thor a fazer o que o gigante queria.

– Com ou sem martelo, gigante nenhum é páreo pra mim! – disse Thor, confiante.

Os dois partiram numa manhã clara, porém, muito fria – como de hábito, naquelas regiões. Andaram, andaram, andaram até que chegaram à casa de uma giganta – o que significava que já estavam nas proximidades do castelo de Geirrod.

– Bom dia, senhora – disse Thor, gentilmente. – Estamos indo até o castelo de Geirrod e gostaríamos de renovar nossas forças antes do encontro, pois é quase certo que o tempo vai fechar por lá…

– O castelo de Geirrod? – exclamou a giganta, arregalando dois olhos enormes como duas luas. – Oh, pobrezinhos, serão mortos com toda a certeza!

Loki sentiu um calafrio quanto à parte que lhe tocava.

– Thor é forte o bastante para salvar a nós dois – disse o ladino, reforçando as duas últimas palavras.

– Não, não! – retrucou a giganta, sem convencer-se disto. – Não devem se fiar em suas próprias forças. – Ela correu até seus aposentos e retornou de lá com um cinto de força, um pesado porrete e umas luvas de ferro. – Aqui está: leve tudo isto, valente peregrino, para que possa se safar das ciladas do perverso Geirrod.

Thor aceitou os presentes e logo os dois estavam de volta à estrada. Depois de andar mais um longo trecho, chegaram às margens do rio Vimur, com águas não muito profundas, mas que tinha uma forte correnteza.

– Vamos atravessá-lo a pé – disse Thor.

Dito isto, o deus do trovão meteu-se logo na água, segurando numa das mãos o porrete e tendo ao lado Loki, que agarrava a todo instante o seu cinto com medo de ser levado pela correnteza.

Iam já a meio do trajeto quando Loki – que, como bom medroso, tinha um faro apurado para o perigo – alertou o companheiro:

– Não lhe parece que as águas estão subindo rapidamente?

Thor nada havia percebido até então, importunado que estava pelos agarra-mentos constantes do cauteloso colega. Mas, avisado do fato, olhou para baixo e percebeu que, realmente, a água, que antes dava-lhe com folga pela cintura, agora já lhe ia pelo peito sem nunca parar de subir.

– Apressemos o passo – disse ele.

Neste mesmo instante, Loki avistou alguém na outra margem um pouco mais acima de onde estavam.

– Veja, Thor! – gritou Loki, apontando naquela direção. – Seguramente que aquela criatura tem algo a ver com tudo isto!

Thor ergueu a cabeça e avistou uma enorme mulher agachada na água com as saias arregaçadas até a cintura. Como se tratava de uma giganta, a água sequer lhe batia nos joelhos e, por isso, ambos puderam ver perfeitamente o que ela fazia.

– Maldição! – esbravejou Thor. – O que está fazendo?

– Ora, não está vendo, boboca?… – gritou a rotunda giganta, sem ruborizar-se ou interromper a sua tarefa.

Ela era Gialp, uma das filhas de Geirrod, e, certamente, não estava ali à toa.

– O que faremos, agora? – disse Loki, que já estava trepado nos ombros do deus.

– Só há um meio de represar um rio – disse Thor, com segurança – é estancando-lhe a fonte. Arremessou, então, o seu porrete, acertando em cheio o crânio da giganta, que foi cair morta dentro da água. Infelizmente, a solução trouxera um novo problema, pois o sangue que jorrava da cabeça rachada vertia cm ondas, aumentando a enchente e tornando escarlate o leito do rio.

Thor apertou o passo – a esta altura já inteiramente submerso -, enquanto Loki permanecia acavalado em seus ombros, trazendo apenas a cabeça para Cora da água, como se ele próprio fosse um gigante. Por sorte, ambos já estavam bem próximos da margem e conseguiram se safar a tempo.

Depois que recuperaram o fôlego, os dois tomaram uma íngreme encosta o galgaram-na, penosamente, até chegar ao castelo do temível gigante.

– Cá estamos – disse Thor. – Vamos ver, agora, o tal Geirrod!

Loki sentiu um tremor afrouxar-lhe os joelhos, pois estava de volta ao cenário de seus padecimentos. “Sabem as Nornas, o que mais me espera!”, pensou ele, referindo-se as deusas que tramam o destino.

No entanto, ao se apresentar, foram surpreendidos por uma amável recepção prodigalizada pelo solerte gigante. Ele estava sentado a uma mesa gigantesca repleta de iguarias, que ocupava quase todo o salão.

– Ora, sejam bem-vindos! – disse Geirrod, erguendo-se e batendo com estrondo as palmas das mãos em suas nádegas gigantescas, que era a sua maneira ímpia de se regozijar. Um som cavo reboou pelas paredes e, somente quando o último eco se perdeu nos confins gelados do castelo, é que ele recomeçou:

– Thor, quero que saiba que é uma honra imensa tê-lo em minha casa; quanto a você – disse, piscando um olho matreiro para um Loki apavorado -, já nos conhecemos bem, não é? Afinal, desfrutou por três meses da minha generosa hospitalidade!

Loki balbuciou algo inaudível, enquanto Geirrod ria e malhava outra vez, à toda força, as suas nádegas descomunais. Depois se sentou e convidou os visitantes a lhe fazer companhia. Infelizmente a segunda parte da sua hospitalidade esteve longe de condizer com a primeira, pois Geirrod acomodou-os no mesmo estábulo onde ficavam as cabras.

Ao centro do aposento havia apenas uma única cama, cujos pés não se enxergavam, ocultos pela armação. Thor, exausto da viagem, atirou-se ao leito para descansar. Loki, mais cauteloso, preferiu dormir em pé, pois aquela cama solitária lhe parecera de mau agouro; além do mais, suas suspeitas aumentaram quando percebeu no teto um renque inteiro de lanças com as pontas afiadas apontadas para baixo, bem na direção do suspeitoso leito.

Thor, é claro, não era tão tonto que não houvesse percebido também aquele enfeite bizarro; porém, depois de se certificar bem, chegara à conclusão que não havia perigo algum, pois as lanças estavam solidamente presas ao teto. Deixando de lado, então, as preocupações, Thor ajeitou-se no leito para dormir – ou antes, para roncar. Roncou, de fato, um bom pedaço, como um perfeito deus do trovão, até acordar, de repente, pois sentira um ligeiro solavanco sacudir o seu leito. Entreabriu um olho (ele dormira de barriga para cima, por precaução) e viu que as lanças ainda estavam lá, solidamente presas ao teto. Entretanto, pareciam estar – ou seria apenas impressão? – ligeiramente mais próximas.

“Bobagens!”, pensou cruzando as mãos sobre o ventre e recomeçando a roncar.

Loki, a seu turno, também caíra num sono profundo, desabado no chão recoberto de palha. Mais um tempo passou e Thor acordou novamente, por causa de um novo sacolejão. Desta vez pareceu escutar, nitidamente, uma voz abafada que censurava alguém. Abriu os olhos e enxergou o teto outra vez. Só que, desta feita, as lanças pareciam estar ainda mais perto – ou seria mero efeito da sugestão?

– Ora bolas, disse ele, virando-se de lado.

Antes de cerrar os olhos, outra vez, viu Loki adormecido, que roncava também lá embaixo.

“Depois fala de mim, o porcalhão”, pensou, ajeitando-se melhor em seu leito. –

“Mesmo desta altura, ainda posso escutar a sua tuba perfeitamente!”

Então deu-se conta, afinal, de que algo errado ocorria com a cama. Abriu os olhos e viu seu companheiro bem pequenino lá embaixo. Num reflexo, virou-se para diante, somente para descobrir que as pontas das lanças que pendiam do teto estavam quase metidas no seu nariz. Descobriu também que, de pé, já nau podia mais ficar, mas que ainda podia voltar a cabeça para ver o que havia debaixo da cama. Ao fazê-lo, porém, verificou que um rosto enorme, balofo e horrendo o encarava, coberto por gotas de um suor espesso como o azeite. Virou-se, imediatamente, para o outro lado e viu outro rosto não menos pavoroso que o primeiro. Tratavam-se de duas gigantas, filhas de Geirrod, que o empurravam, com cama e tudo de encontro às lanças.

– Acorde, Loki, idiota! – bradou Thor, sem poder ver mais se ele o escutava. A ponta de uma das lanças já imprimia para o lado a ponta do seu nariz e Thor tateou, desesperadamente, à procura do seu porrete.

Ali estava ele!, pensou aliviado, ao encontrar sua arma. Imediatamente, enfiou-o entre as lanças e começou a empurrar de volta o leito para baixo, e o fez com tal força, que um ruído de algo que se parte, reverberou pelas paredes. No mesmo instante a cama veio com tudo para baixo, esmagando as duas gigantas – pois as suas colunas haviam se partido, quando Thor dera o empurrão prodigioso.

Loki acordara com o terrível estrondo apenas para se deparar com a visão horrenda do leito repousado sobre alguns braços e pernas esmagados que ainda se contorciam e uma piscina de sangue ao redor.

Thor ergueu-se de um pulo e, empunhando o seu porrete, dirigiu-se ate’ o custeio. O

dia amanhecia e o deus, com um chute, deitou abaixo a porta. Foi encontrar o perverso Geirrod sentado à mesa, como de hábito.

No cocho outra vez, besta insaciável? – bradou Thor ao gigante, julgando que ele fazia já o seu café da manhã.

– Outra vez? – disse o gigante, percebendo a luz do dia, que penetrava ainda de forma discreta pela porta. – Oh, não, está enganado! Estou ainda jantando…!

Thor, então, que trazia em cada uma das mãos as cabeças balofas das suas filhas, arremessou-as à mesa, com um grito feroz:

– Junte isto ao repasto…! – As duas cabeças rechonchudas rolaram pela mesa até irem colar as suas bocas numa montanha de purê de batatas, onde permaneceram quietas, parecendo bastante satisfeitas.

Geirrod, percebendo a má disposição de ânimo do seu hóspede, ergueu-se e correu até a lareira, rebolando o seu gigantesco traseiro. Ali, tomou um longo par de tenazes e com elas recolheu do fogo uma grande barra de ferro incandescida.

– Segura esta, bobão…! – disse ele, arremessando o terrível projétil.

Thor desviou-se, agilmente, e o lingote foi derrubar uma parede às suas costas; porém, como estivesse com suas luvas de ferro, pegou o lingote com as próprias mãos e o arremessou de volta para o gigante.

Apavorado, Geirrod correu a se esconder atrás de uma larguíssima coluna de pedra.

Mas, como o gigante fosse fantasticamente gordo, foi como se uma melancia tivesse ido se esconder atrás de um palito. O projétil, no final de tudo, atravessou a coluna, o crânio do gigante, e fendeu ainda a parede externa do castelo, indo perder-se pelo mundo, com os pedaços dos miolos do gigante aderidos a ele.

E, foi assim, se as crônicas não exageraram, que o poderoso Thor liquidou o temível gigante Geirrod.

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