O roubo do hidromel marcador

Hidromel, a bebida dos deuses, teve uma origem um tanto curiosa. Segundo a lenda, tudo começou com Kvasir, um deus obscuro, cuja personalidade e atributos perderam-se nas brumas do tempo. Sabe-se, apenas, que nasceu de uma forma um tanto extravagante, quando Aesires e Vanires, deuses adversários, fizeram uma trégua em sua disputa e se reuniram para selar um pacto de paz. Cada qual, nesta ocasião, cuspiu dentro de um vaso cerimonial e, da reunião de todas as salivas, surgiu Kvasir.

Este deus, contudo, acabou morto por dois anões chamados Fialar e Galar, que cobiçavam a sua sabedoria, seu atributo principal. Durante a noite, enquanto dormia, o deus foi apunhalado pelos dois perversos irmãos, tendo seu sangue sido recolhido por eles e colocado num caldeirão. Depois, tão logo chegaram em rasa, misturaram-no a uma porção de mel e o fermentaram até obter o saboroso hidromel, bebida mágica que confere o dom da poesia a todo aquele que a bebe.

Durante muitos anos, os dois perversos anões gozaram das delícias desta bebida, a qual, infelizmente, se tivera o dom de torná-los poetas, não tivera o de torná-los melhores, pois continuaram a cometer, alegremente, as suas torpezas até que numa delas, mataram, por um motivo incerto, um casal de gigantes. Suttung, o filho destes, entretanto, descobriu os autores do crime e foi logo tirar satisfações, exigiu, sob pena de morte, que lhe entregassem, como reparação, o precioso caldeirão, o que eles tiveram o juízo de fazer sem pestanejar. Desde então, foi o gigante quem passou a saborear este néctar – e podemos, perfeitamente, imaginar que lenha se tornado também, senão um grande poeta, ao menos um poeta grande.

Ora, estando Indo entendido, é preciso dizer, agora, que este gigante tinha uma bela filha chamada Gunnlod. Era ela a guardiã do caldeirão, passando o dia e a noite inteiros a cozinhar e a provar a aromática bebida – o que, por conseqüência, deve tê-la tornado a maior poetisa de todos os tempos. Todos os dias seu pai, Suttung, passava pela caverna, onde Gunnlod morava para provar um pouco do hidromel.

– Ó linda guardiã do hidromel, isto está cada dia mais delicioso! – dizia ele, dando um beijo na filha e saindo, em seguida, para os seus afazeres.

Era este o melhor momento do dia, quando Gunnlod tinha a consciência de estar livre das companhias indesejadas, tendo pela frente apenas o seu delicioso ofício, o qual exercia na mais perfeita solidão das profundezas de sua caverna -um magnífico salão recoberto de estalactites vermelhos e iluminado por tochas e quartzos que esplendiam por todas as concavidades como milhares de vaga-lumes prateados engastados nas rochas.

Esta sensação enchia a jovem de tamanha alegria, que ela se punha, imediatamente, a pular descalça, feito uma menina, pelos corredores e salões de pedra de seu paraíso subterrâneo, sabendo que estava livre dos problemas relesmente mundanos que afligiam ao povo da superfície.

Esta afeição de Gunnlod por subterrâneos – que destoava um pouco da sua condição de giganta – levava, muitas vezes, o pai a chamá-la, afetuosamente, de minha duendezinha. Isto, contudo, ao invés de aborrecê-la, a enchia ainda mais de orgulho: –

Tenho, realmente, a alma de um duende! – dizia sempre, satisfeita.

***

Por esta época, entretanto, já andava pelo mundo um deus, ainda muito jovem, mas que já era sábio e dinâmico o bastante para ter criado muitas coisas. Seu nome era Odin e poucos desconheciam o seu poder e inteligência. Por muito tempo, intrigara-o o caso do infeliz deus Kvasir, morto pelos anões. Todos, em Asgard, sabiam da tragédia e a grande especulação estava voltada para o fato de se saber onde andaria o tal caldeirão do hidromel, pois todos queriam provar desta maravilhosa bebida.

– Odin, somente você poderá nos trazer este deleite supremo! – diziam-lhe todos, confiando no seu gênio e na sua capacidade de conseguir o que queria.

Depois de tanto ser aborrecido com esta história, Odin decidiu-se, afinal, a ir procurar pela tal bebida. O deus seguiu a pista dos anões e, após havê-los encontrado, conseguira arrancar deles a história dos seus crimes.

– Onde está o hidromel, vermezinhos? – disse ele, ameaçando-os com uma terrível punição.

Os anões confessaram que Suttung, o filho dos mortos, havia-o levado, o que bastou para Odin dar-lhes as costas e os deixar chacoalhando os joelhos em cima de duas pequenas poças amarelas. O deus dirigiu-se, imediatamente, para as terras de Suttung.

Já ia a meio do caminho, quando passou por um campo onde havia nove homens ceifando. Eram os lavradores de Baugi, o irmão de Suttung. Odin percebeu, logo, que as foices que eles usavam estavam completamente cegas.

– Ei, campônios, não querem amolar as suas foices? – disse ele, com um grito.

– Oh, sim! claro que queremos! – responderam, aliviados.

Odin não levou muito tempo para torná-las tão afiadas como eram no dia em que saíram da forja, graças à sua afiadíssima pedra de amolar.

– Esta sua pedra é mágica! Dê-a para nós! – exclamou um deles.

– Claro, aqui está – disse Odin, lançando-a para eles.

Imediatamente, todos se precipitaram para apanhá-la. Na confusão, entretanto, foram com tanta gana à pedra, que se engalfinharam numa briga tremenda, terminando todos estendidos no solo com as gargantas cortadas.

– Oh, deuses, que lástima! – disse Baugi, o senhor dos nove servos mortos.

– Não se aflija – disse Odin, adiantando-se. – Terminarei o serviço deles em troca, apenas, de uma deliciosa taça de hidromel.

– Quem é você, afinal, homem da pedra que mata? – disse Baugi, intrigado.

– Meu nome é Bolverk – respondeu Odin, começando a ceifar o campo.

(Bolverk quer dizer “perverso”, mas Baugi não foi atilado o bastante para se dar conta do perigo.)

– Infelizmente, o caldeirão onde ferve o hidromel está sob o controle do meu irmão –

disse Baugi, cocando a cabeça -, mas vou falar com ele e ver se consigo arranjar-lhe uma taça.

– Faça isto, meu amigo – disse Odin, de cabeça baixa e afetando indiferença.

Odin ceifou todo o campo – o que lhe custou um bocado de tempo – até que, finalmente, concluiu sua tarefa. Infelizmente, Baugi não conseguira nada com o irmão, que não queria ceder nem um único gole da preciosa bebida.

Odin e Baugi decidiram, então, recorrer à astúcia para que o primeiro pudesse se apoderar do seu justo prêmio.

– Mas me prometa que se servirá somente de uma pequena taça! – disse Maugi ao colega, que prometeu, prontamente, com um sorriso oculto nos lábios.

***

O irmão de Suttung conduziu Odin pelas regiões elevadas onde ficava a caverna de Gunnlod, a guardiã do hidromel. Era uma grande cordilheira que eles percorreram a custo até chegar ao seu objetivo, quase ao final do dia.

– É aqui, ceifador incansável – disse Baugi, apontando para uma pequena entrada escavada na rocha bruta. – No mesmo instante, começaram ambos a escavar com picaretas, pois a entrada estava bloqueada por um rochedo, que somente Gunnlod, de dentro, podia remover por um mecanismo especial. Depois de terem atravessado um paredão inteiro e muitos túneis, chegaram, afinal, à gruta subterrânea onde Gunnlod se refugiava.

– Agora, você segue sozinho – disse-lhe Baugi, temeroso de ser descoberto.

– Está bem, dono dos nove servos – disse Odin, sem nem lhe agradecer, pois o perfume inebriante da bebida já começava a lhe transtornar os sentidos. -Odin foi avançando até que sua cabeça brotou do alto por uma fenda, o que lhe possibilitou descortinar um panorama, verdadeiramente deslumbrante: a grande gruta do caldeirão, com seus estalactites vermelhos e as tochas a reverberar pelas paredes faiscantes. Bem ao centro, estava o caldeirão fumegando, embora a guardiã estivesse ausente.

“É agora a grande chance!”, pensou o jovem deus, começando a descer pelo paredão com a agilidade de um verdadeiro alpinista. Infelizmente, porém, quando recém havia posto o primeiro pé no chão, teve a desagradável – ou seria agradável? – surpresa de ver surgir Gunnlod por uma entrada lateral.

– Oh, quem é você, escalador de paredes? – gritou ela, fazendo sua voz ecoar pelos paredões escarpados.

– Nada tema, bela jovem – disse Odin, aproximando-se. – Só quero provar um pouco de sua divina bebida.

Gunnlod sentiu-se, instantaneamente, atraída por aquele belo e esbelto intruso. Mas a sua missão de guardiã falou mais alto e ela, como que despertando de um transe, empertigou-se toda. Na sua mão direita havia um arco com uma flecha pronta para o disparo.

– Não acha que eu mereço ao menos um gole pela façanha de devassar o seu belo esconderijo? – disse ele, com um sorriso maroto.

– Fora daqui – gritou ela -, e não vou repetir duas vezes.

– Calma, bela guardiã; na verdade, estou aqui apenas para receber o pagamento por um trabalho feito a seu tio e, por extensão, a seu pai egoísta.

– Como ousa?…

– Sim, egoísta, pois trabalhei para seu tio pelo preço de uma taça de hidromel e, agora, o pérfido Suttung não quer cumprir a sua parte.

– Modere a sua língua, invasor de cavernas!

– Acalmemo-nos, bela Gunnlod – disse, então, Odin, dando um tom conciliatório à sua voz. – Se não quer me dar a bebida, pronto, não dê!… Não pretendo forçá-la a nada. –

Odin avançou ainda mais e estava já a ponto de encostar seu peito ao dela, quando Gunnlod ergueu de novo a sua seta. Mas a mão dele a impediu, suavemente, de realizar o disparo. – Já não lhe disse que não vou obrigá-la a nada? – disse ele, enfatizando a última palavra.

Os dois ficaram olhando-se durante um bom tempo, até que Odin colou os seus lábios aos de Gunnlod. O aroma do caldeirão envolvia a ambos numa fumaça avermelhada que dissipou qualquer resistência que pudesse haver no coração da jovem guardiã que, em momento algum, teve consciência do seu fracasso, senão, de que algo, infinitamente mais belo que uma simples missão apresentara-se em sua vida.

Depois de muito tempo, Odin, tendo ainda a jovem em seus braços – mas já deitados

-, reclamou que tinha muita sede.

– Deixe-me provar do hidromel – disse ele, com suavidade.

– Está bem, pode beber… – disse ela, preferindo, no entanto, dar as costas ao amado para não presenciar a derrocada final da sua missão. Mas, subitamente, sentiu sua voz repetir a autorização, agora, como se não fosse dela, com uma sombra estranha de euforia na voz: – Pode beber à vontade..A

Odin encontrou três enormes taças e as encheu a ponto de esvaziar completamente o caldeirão. Depois, emborcou-as pela boca como quem estivesse há iliv. anos sem beber uma única gota. Quando retornou para se despedir, percebeu, no entanto, que Gunnlod dormia.

– Adeus, guardiã do meu coração! – disse ele, baixinho, retirando-se com a mesma discrição com a qual entrara.

Mas ela não estivera nunca dormindo, nem nunca diriam dela que fora enganada.

Desta acusação, que ela julgava a pior, ela fazia questão de estar livre.

– Nada se fez sem a minha autorização – disse ela, como se já estivesse diante de seu pai irado. Gunnlod sabia, desde já, que nunca mais poderia ser a guardiã do caldeirão ou de qualquer outra coisa neste mundo.

– Ora, basta! – exclamou ela, tornando-se repentinamente altiva e serena outra vez. –

Serei, então, doravante, a guardiã de mim mesma!

***

Odin partiu à toda pressa, mas quando percebeu que Suttung vinha atrás dele transformado em uma águia sedenta de sangue – como ele descobrira o seu plano, jamais ficaria sabendo -, transformou-se também em outra velocíssima águia.

Principiou-se, então, uma perseguição alucinante pelos ares gelados da cordilheira que se estendeu por milhares de quilômetros até que, finalmente, viu brilhar ao longe as torres douradas de seu amado palácio Gladsheim, em Asgard.

Odin deu um grande grito de alerta, o que fez com que todos os habitantes da morada dos deuses corressem, logo, a espalhar pipas enormes e jarros de todos os feitios pelas ruas. Então, Odin-águia começou a regurgitar todo o hidromel que havia ingerido na caverna de Gunnlod sobre os recipientes, de tal sorte que em três voltas inteiras que deu sobre a cidade havia expelido de seu estômago até a última gota da saborosa bebida. Suttung, ao ver que os deuses recolhiam rapidamente os jarros e cubas, reconheceu-se vencido e, com um grande grito de ira, partiu de volta à sua terra.

E foi assim que, graças a uma sedução e a um traiçoeiro furto, o hidromel passou a ser a bebida predileta dos deuses.

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