O Hidromel da Poesia

O HIDROMEL DA POESIA

Você já se perguntou de onde vem a poesia? De onde tiramos as canções que cantamos e as histórias que contamos? Alguma vez imaginou como é que algumas pessoas têm sonhos tão belos e sábios e são capazes de transmiti-los para o mundo como poesia, para serem cantados e recontados enquanto o sol continuar nascendo e se pondo, enquanto a lua crescer e minguar? Já se perguntou por que algumas pessoas criam belas canções, poemas e contos, e outras, não?

É uma longa história, uma que não é creditada a ninguém. Nela há assassinato, trapaças, mentiras, tolices, sedução e perseguição. Preste atenção.

Esta história começa pouco depois da aurora do tempo, em uma guerra entre os deuses Aesir e Vanir. Os Aesir eram deuses da guerra, da batalha e da conquista; já os Vanir eram mais delicados — irmãos e irmãs que tornavam o solo fértil e faziam as plantas crescerem —, porém não menos perigosos.

Os Vanir e os Aesir eram iguais em força. Nenhum lado venceria a guerra. E mais: ao longo da disputa, ambos perceberam que precisavam um do outro, que não há satisfação nas corajosas batalhas sem os belos campos e fazendas para suprir os banquetes de comemoração.

Os deuses se reuniram para firmar a paz, e, depois de concluídas as negociações, marcaram a trégua com cada um dos Aesir e dos Vanir cuspindo em uma tina. A saliva se misturava, e o acordo era selado.

Depois, os deuses fizeram um banquete. Comeram, beberam hidromel e festejaram, contando piadas, conversando, se vangloriando e rindo enquanto as fogueiras se reduziam a carvões reluzentes. A festança durou até o sol surgir no horizonte, e quando os Aesir e os Vanir se levantaram para ir embora, cobrindo-se com peles e mantos para sair na neve fria e na névoa matinal, Odin falou:

— Seria uma pena deixar nossas salivas misturadas para trás.

Frey e Freya, irmão e irmã, eram os líderes dos Vanir e, pelos termos do acordo de trégua, passariam a morar com os Aesir em Asgard. Eles concordaram.

— Poderíamos transformá-la em alguma coisa — propôs Frey.

— Deveríamos criar um homem — sugeriu Freya, enfiando a mão na tina.

A saliva se transformou, tomando forma com o movimento dos dedos de Freya, e, em pouco tempo, um homem desnudo estava de pé diante dos deuses.

— Você é Kvásir — anunciou Odin. — Sabe quem eu sou?

— Você é Odin, o supremo — respondeu Kvásir. — Você é Grímnir, e é o Terceiro. Você tem outros nomes, são muitos para listar, mas conheço todos. E também conheço os poemas, os cânticos e os kennings que os acompanham.

Kvásir, criado a partir da união dos Aesir com os Vanir, era o mais sábio dos deuses: combinava cabeça e coração. Os deuses brigavam entre si para serem os próximos a lhe fazer perguntas, e suas respostas eram sempre sensatas. Kvásir analisava com atenção e interpretava corretamente o que ouvia.

Após um tempo, ele se dirigiu aos deuses e anunciou:

— Vou viajar. Vou visitar os nove mundos, conhecer Midgard. Há perguntas que precisam de respostas, mas que ainda não foram feitas.

— Mas você voltará para nós? — perguntaram os deuses.

— Voltarei — respondeu Kvásir. — Afinal, ainda há o mistério da rede, que um dia terá que ser desvendado.

— O mistério do quê? — perguntou Thor.

Mas Kvásir apenas sorriu e se afastou dos deuses, deixando-os intrigados. Ele vestiu o manto de viagem e deixou Asgard pela ponte arco-íris.

Kvásir foi de cidade em cidade, de aldeia em aldeia. Conheceu todo tipo de gente, tratava bem a todos e respondia suas perguntas. E todo lugar se beneficiou com a presença de Kvásir.

Naquele tempo, havia dois elfos negros que viviam em uma fortaleza à beira-mar. Lá, eles faziam mágica e feitos de alquimia. Como todos os anões, eles criavam coisas — itens maravilhosos e impressionantes — em sua oficina e em sua forja. Mas havia muitas coisas que ainda não tinham criado, e os dois eram obcecados pela ideia de criá-las. Os anões eram irmãos, e se chamavam Fjalar e Galar.

Quando souberam que Kvásir estava visitando uma cidade próxima, os dois saíram para encontrá-lo. Fjalar e Galar encontraram Kvásir no grande salão, respondendo as perguntas dos moradores da cidade, impressionando a todos que ouviam. Ele ensinou como purificar a água e como tecer roupas com urtigas. Revelou a uma mulher quem roubara sua faca e por quê. Quando terminara de falar e de comer a refeição oferecida pelos moradores, os anões se aproximaram.

— Temos uma pergunta que nunca lhe fizeram antes — disseram os irmãos. — Mas é uma que deve ser feita em particular. Pode vir conosco?

— Eu vou — concordou Kvásir.

Os três caminharam até a fortaleza. As gaivotas gritavam, e as sombrias nuvens cinzentas eram do mesmo tom das ondas. Os anões levaram Kvásir para sua oficina, nas profundezas da fortaleza.

— O que são essas coisas? — perguntou Kvásir.

— São tonéis. Eles se chamam Son e Bodn.

— Entendo. E o que é aquilo ali?

— Como pode ser tão sábio se não conhece essas coisas? É uma caldeira. Nós a chamamos de Odrerir, a provocadora de êxtases.

— E aqui vejo baldes de mel que vocês colheram. Estão destampados, e o mel é líquido.

— Isso mesmo — concordou Fjalar.

Galar franziu a testa.

— Se você fosse tão sábio quanto dizem, saberia nossa pergunta antes mesmo que a perguntássemos. E saberia o que planejamos fazer com essas coisas.

Kvásir assentiu, resignado.

— Ao que me parece, sendo vocês ao mesmo tempo inteligentes e malignos, os dois talvez tenham decidido matar seu visitante e deixar o sangue dele escorrer para os tonéis Son e Bodn. Então vão aquecer o sangue aos poucos na caldeira, Odrerir. Depois, vão adicionar mel recém-extraído à mistura e deixá-la fermentar até se transformar em hidromel. Seria o melhor hidromel já criado, uma bebida capaz de intoxicar quem quer que a prove, mas também capaz de dar o dom da poesia e da sabedoria a quem a bebe.

— Nós somos mesmo inteligentes — admitiu Galar. — E deve haver quem nos considere malignos.

E, com isso, cortou a garganta de Kvásir. Os irmãos penduraram Kvásir pelos pés acima dos tonéis e drenaram até a última gota de seu sangue. Eles aqueceram o sangue e o mel na caldeira Odrerir e fizeram outras coisas de sua própria invenção. Acrescentaram frutinhas silvestres e mexeram com uma vara. A mistura borbulhou, então parou de borbulhar, e os dois a provaram e riram. Os anões encontraram dentro de si o verso e a poesia que jamais tinham conseguido expressar.

Os deuses apareceram na manhã seguinte.

— Kvásir foi visto pela última vez na sua companhia — explicaram.

— É verdade — responderam os irmãos. — Ele veio para cá conosco, mas, quando percebeu que somos apenas anões tolos e desprovidos de sabedoria, se engasgou com o próprio conhecimento. Se tivéssemos conseguido lhe fazer perguntas…

— Ele morreu?

— Sim — responderam Fjalar e Galar, e entregaram aos deuses o corpo exangue de Kvásir.

Ele seria levado de volta a Asgard para ter o funeral de um deus e talvez (porque os deuses não são como os outros, e a morte deles nem sempre é permanente) para reviver como um deus.

E foi assim que os anões obtiveram o hidromel da sabedoria e da poesia, e quem desejasse prová-lo precisava implorar a eles por um gole. Mas Galar e Fjalar só davam o hidromel para quem gostavam, e não gostavam de ninguém além de si mesmos.

Ainda assim, havia aqueles com quem os dois tinham dívidas. O gigante Gilling e sua esposa, por exemplo. Os anões os convidaram a visitar a fortaleza, e a visita aconteceu em um dia de inverno.

— Vamos passear no nosso barco — sugeriram os anões.

O peso de Gilling fazia o barco navegar bem baixo na água, e as remadas dos anões os conduziram a uma área com rochas sob a superfície. Em todas as viagens anteriores o barco flutuara serenamente acima das pedras. Mas não dessa vez. O casco colidiu nas pedras e o barco virou, jogando o gigante no mar.

— Nade de volta para o barco! — gritaram os irmãos.

— Eu não sei nadar! — respondeu o gigante, e foi a última coisa que disse, pois uma onda encheu sua boca aberta de água salgada, sua cabeça bateu nas rochas, e, em instantes, ele afundou e sumiu de vista.

Fjalar e Galar desviraram o barco e voltaram para casa.

A esposa de Gilling esperava por eles.

— Onde está meu marido?

— Gilling? — indagou Galar. — Ah, ele morreu.

— Se afogou — acrescentou Fjalar, prestativo.

Ouvindo isso, a esposa do gigante gritou e chorou como se alguém estivesse arrancando sua alma. Ela gritou pelo marido morto e jurou que o amaria para sempre, e ela berrou, gemeu e chorou.

— Quieta! — ralhou Galar. — Seu choro e seus gemidos machucam meus ouvidos. São altos demais! Espero que seja porque você é uma gigante.

Mas a mulher só fez chorar mais alto.

— Calma — pediu Fjalar. — Você se sentiria melhor se lhe mostrássemos o lugar onde seu marido morreu?

A gigante fungou e assentiu, então chorou, gemeu e lamentou a morte do marido, que nunca voltaria para ela.

— Fique parada ali que vamos apontar o lugar para você — instruiu Fjalar, mostrando exatamente onde a gigante devia ficar, explicando que ela precisava passar pelo portal e ficar próxima à muralha da fortaleza. E balançou a cabeça para o irmão, que subiu correndo para o alto da muralha.

Enquanto a esposa de Gilling atravessava o portal, Galar jogou um pedregulho em sua cabeça. A gigante caiu, o crânio esmagado.

— Bom trabalho — elogiou Fjalar. — Eu já estava cansado daquela barulheira horrível.

Os dois empurraram o corpo sem vida da gigante para o mar. Os dedos das ondas cinzentas arrastaram o corpo para longe da fortaleza, e a esposa de Gilling e Gilling se reuniram após a morte.

Os anões deram de ombros, se julgando extremamente espertos em sua fortaleza junto ao mar.

Eles bebiam o hidromel da poesia toda noite, então declamavam belos e grandiosos versos um para o outro e criavam narrativas épicas sobre a morte de Gilling e de sua esposa, que declamavam do alto da fortaleza. No fim de cada noite, dormiam um sono pesado e acordavam onde tinham se sentado ou caído na noite anterior.

Certo dia, os dois acordaram como sempre, mas não despertaram na fortaleza.

Acordaram no fundo do barco, e um gigante que eles não reconheceram remava por entre as ondas. O céu estava escuro, com nuvens de tempestade, e o mar era negro. As ondas eram altas e fortes, e água salgada respingava pelas laterais do barco dos anões, encharcando-os.

— Quem é você? — perguntaram os irmãos.

— Eu sou Suttung — respondeu o Gigante. — Ouvi dizer que vocês andam se gabando para o vento, para as ondas e para todo o mundo de terem matado meu pai e minha mãe.

— Ah — disse Galar. — E isso explica por que estamos amarrados?

— Explica.

— Talvez você esteja nos levando para um lugar glorioso — sugeriu Fjalar, esperançoso. — Onde vai nos desamarrar, e lá comeremos e beberemos e riremos juntos. Então vamos nos tornar melhores amigos.

— Acho que não — retrucou Suttung.

A maré estava baixa. Rochas se projetavam acima da água. Eram as mesmas rochas nas quais, na maré alta, o barco dos anões virara, o local onde Gilling se afogara. Suttung agarrou os anões, tirando-os do fundo do barco, e os largou sobre as rochas.

— Na maré alta, o mar cobrirá estas rochas — disse Fjalar. — Nossas mãos estão amarradas às costas. Não podemos nadar. Se você nos deixar aqui, com certeza vamos nos afogar.

— E essa é a intenção — explicou Suttung, sorrindo pela primeira vez. — E, enquanto vocês se afogam, vou ficar aqui sentado, em seu barco, e assistir ao mar levar os dois. Aí voltarei para Jötunheim e contarei a meu irmão, Baugi, e a minha filha, Gunnlod, como foi que vocês morreram. E nós três vamos ficar satisfeitos, pois minha mãe e meu pai serão vingados.

A maré começou a subir. Cobriu os pés dos anões, depois chegou aos umbigos. Em pouco tempo, suas barbas flutuavam na espuma, e havia pânico em seus olhos.

— Piedade! — imploraram.

— Piedade igual à que vocês tiveram por minha mãe e meu pai?

— Vamos compensá-lo pelas mortes! Vamos compensá-lo! Podemos pagar.

— Acho que vocês, anões, não possuem nada que poderia compensar a morte de meus pais. Sou um gigante rico. Tenho muitos servos em minha fortaleza nas montanhas, e tenho todas as riquezas com que posso sonhar. Tenho ouro, e tenho pedras preciosas, e ferro suficiente para fazer mil espadas. Sou versado em magia. O que vocês poderiam me dar que eu já não tenha?

Os anões nada responderam.

As ondas continuaram a subir.

— Nós temos hidromel, temos o hidromel da poesia! — disparou Galar, desesperado, quando a água roçou seus lábios.

— Feito com o sangue de Kvásir, o mais sábio de todos os deuses! — gritou Fjalar. — São dois tonéis e uma caldeira, cheios dele! Ninguém tem isso, só nós, ninguém no mundo inteiro!

Suttung coçou a cabeça.

— Preciso pensar a respeito. Tenho que meditar. Tenho que refletir.

— Não há tempo para pensar! Se você pensar, nós dois vamos nos afogar! — gritou Fjalar, acima do rugido das ondas.

A maré subia mais e mais. Ondas quebravam na cabeça dos anões, impedindo-os de respirar, e os dois já estavam com os olhos arregalados de medo quando o gigante Suttung estendeu a mão e puxou, primeiro Fjalar, depois Galar, da água.

— O hidromel da poesia será uma compensação adequada. É um preço justo, se incluírem mais algumas coisas, e tenho certeza de que vocês, anões, têm mais algumas coisas para incluir. Pouparei suas vidas.

O gigante os jogou, ainda amarrados e encharcados, no fundo do barco. Os dois se remexeram, desconfortáveis, como duas lagostas barbadas, enquanto Suttung remava de volta à praia.

Suttung tomou para si o hidromel que os anões tinham feito com o sangue de Kvásir. E tomou outras coisas, também, deixando para trás aquele lugar e aqueles anões; que ficaram, considerando tudo, bem felizes por terem escapado com vida.

Fjalar e Galar contavam a todos que passavam por sua fortaleza a história de como tinham sido maltratados por Suttung. Contaram no mercado, logo que foram negociar. Contaram quando os corvos estavam por perto.

Em Asgard, Odin estava sentado em seu grande trono quando seus corvos, Hugin e Munin, sussurraram-lhe tudo o que tinham visto e ouvido enquanto viajavam pelo mundo. O único olho de Odin brilhou quando ele ouviu a história do hidromel de Suttung.

Todos que ouviram a história chamavam o hidromel da poesia de “barco dos anões”, pois tinha sido ele quem levara Fjalar e Galar em segurança para casa. Ele também era chamado de hidromel de Suttung, e de líquido de Odrerir, ou de Bodn, ou de Son.

Odin ouviu as palavras de seus corvos. Mandou buscarem seu manto e chapéu. Chamou os deuses, ordenou que preparassem três enormes barris de madeira — os maiores que conseguissem construir — e que os deixassem prontos junto aos portões de Asgard. Contou aos deuses que os deixaria para viajar pelo mundo, e que poderia demorar algum tempo para voltar.

— Levarei duas coisas comigo — anunciou Odin. — Preciso de uma pedra de amolar, para afiar uma lâmina. A melhor que tivermos. E desejo levar o trado chamado Rati.

Rati significa “perfuradeira”, e Rati era o melhor instrumento de perfuração que os deuses possuíam. Era capaz de abrir furos profundos e de penetrar a rocha mais dura.

Odin jogou a pedra de amolar para o alto e a pegou de volta, então a guardou na bolsa junto com o trado. Em seguida, foi embora.

— Queria saber o que ele está pretendendo — comentou Thor.

— Kvásir saberia — disse Frigga. — Ele sabia tudo.

— Kvásir está morto — retrucou Loki. — E, de minha parte, não me importa para onde o Pai de Todos vai, nem por quê.

— Vou ajudar a construir os barris de madeira que o Pai de Todos nos pediu — afirmou Thor.

Suttung deixara o precioso hidromel aos cuidados da filha, Gunnlod, para que ela o vigiasse no interior da montanha Hnitbjorg, no coração da terra dos gigantes. Odin não foi para a montanha. Em vez disso, foi direto à fazenda que pertencia ao irmão de Suttung, Baugi.

Era primavera, e os campos estavam cobertos de capim alto pronto para ser cortado para servir de feno. Baugi tinha nove escravos, gigantes como ele, que usavam grandes foices para cortar o capim. Cada foice tinha a altura de uma árvore pequena.

Odin ficou observando. Quando o sol atingiu seu ápice e os escravos pararam de trabalhar para comer as provisões, o Pai de Todos se aproximou deles e disse:

— Fiquei observando vocês trabalharem. Digam-me, por que seu mestre deixa que cortem a grama com foices tão cegas?

— Nossas lâminas não estão cegas — retrucou um dos trabalhadores.

— Por que acha isso? — perguntou outro gigante. — Temos as lâminas mais afiadas que há.

— Deixem eu lhes mostrar o que uma lâmina afiada pode fazer — retrucou Odin.

Ele pegou a pedra de amolar do bolso e a passou na lâmina de uma das foices, depois na de outra, até cada lâmina reluzir ao sol. Os gigantes ficaram parados em volta dele, meio sem jeito, assistindo ao trabalho.

— Podem experimentar agora — disse Odin.

Os escravos gigantes passaram as foices pelo capim da campina e exclamaram de prazer, muito surpresos. As lâminas estavam tão afiadas que não era preciso qualquer esforço para cortar o capim. As lâminas atravessavam os caules mais grossos sem resistência.

— Isto é maravilhoso! — disseram a Odin. — Quer nos vender sua pedra de amolar?

— Vender? — indagou o Pai de Todos. — Nada disso. Há um jeito mais justo e divertido. Todos vocês, venham aqui. Fiquem parados um do lado do outro, e segurem as foices bem firme. Mais perto.

— Não podemos nos aproximar mais um do outro — retrucou um dos escravos gigantes. — As foices estão muito afiadas.

— Você é muito inteligente — disse Odin, erguendo a pedra de amolar. — Então vamos fazer o seguinte: quem conseguir pegar a pedra de amolar, seu único dono será!

E a jogou para o alto.

Nove gigantes saltaram na direção da pedra de amolar, cada um tentando pegá-la com a mão livre, sem prestar atenção às foices (e todas haviam sido afiadas pelo Pai de Todos com sua pedra de amolar, criando um fio perfeito).

Eles saltaram e estenderam os braços, e as lâminas reluziram ao sol.

Borrifos e esguichos rubros se espalharam pelo ar, então os corpos dos escravos se dobraram e retorceram, e, um a um, eles caíram na grama recém-cortada. Odin passou por cima dos corpos dos gigantes, recuperou a pedra de amolar dos deuses e guardou-a no bolso.

Cada um dos nove escravos tinha morrido com a garganta cortada pela lâmina de seu companheiro.

Odin foi até o salão de Baugi, irmão de Suttung, e pediu abrigo para a noite.

— Eu me chamo Bolverkr — disse Odin.

— Bolverkr — repetiu Baugi. — Um nome funesto. Significa “aquele que faz coisas terríveis”.

— Só para meus inimigos — retrucou aquele que se chamava Bolverkr. — Meus amigos gostam das coisas que faço. Sou capaz de fazer o trabalho de nove homens. E trabalho incansavelmente e sem reclamar.

— Você terá abrigo para a noite — disse Baugi, soltando um suspiro. — Mas apareceu em um dia sombrio. Ontem eu era um homem rico, com muitos campos e nove escravos para plantar e colher, para trabalhar e construir. Esta noite, ainda possuo meus campos e animais, mas todos os meus servos morreram. Mataram uns aos outros. E não sei por quê.

— É mesmo um dia sombrio — concordou Bolverkr, que era Odin. — Não há uma forma de conseguir mais trabalhadores?

— Não este ano — respondeu Baugi. — Já é primavera. Os bons trabalhadores estão nos campos de meu irmão, Suttung, e pouca gente vem aqui de passagem. Você é o primeiro viajante que me pede abrigo e hospitalidade em muitos anos.

— Sorte sua, pois posso fazer o trabalho de nove homens.

— Você não é um gigante — retrucou Baugi. — É um homenzinho minúsculo. Não conseguiria fazer o trabalho de um de meus servos, que dirá de nove.

— Se eu não conseguir fazer o trabalho de seus nove homens, então não precisa me pagar — disse Bolverkr. — Mas, se eu conseguir…

— Se você conseguir…?

— Histórias sobre o hidromel extraordinário de seu irmão, Suttung, chegaram até os lugares mais remotos. Dizem que a bebida concede o dom da poesia para qualquer um que a beba.

— É verdade. Suttung nunca foi dado à poesia quando éramos jovens. Eu era o poeta da família. Mas, desde que voltou com o hidromel dos anões, se tornou um poeta e um sonhador.

— Se eu trabalhar para você, plantar, construir e colher, e fizer o trabalho de seus servos mortos, gostaria de provar o hidromel de seu irmão, Suttung.

— Mas… — Baugi franziu a testa. — Ele não é meu, não posso oferecê-lo. É de Suttung.

— Que pena — retrucou Bolverkr. — Então lhe desejo boa sorte na colheita deste ano.

— Espere! Não é meu, é verdade. Mas, se você fizer o que diz, vou levá-lo até a fortaleza de meu irmão. E farei o possível para ajudá-lo a provar o hidromel.

— Então temos um acordo.

Nunca houve trabalhador mais dedicado que Bolverkr. Ele trabalhava a terra com mais afinco que vinte homens, que dirá nove servos. Sozinho, cuidava dos animais. Sozinho, fazia a colheita da safra. Trabalhou a terra, e a terra lhe pagou em dobro.

— Bolverkr — disse Baugi, quando as primeiras névoas do inverno desciam pela montanha. — Seu nome foi um erro. Você não fez nada além do bem.

— Fiz o trabalho de nove homens?

— Fez, e de mais nove.

— Então vai me ajudar a provar o hidromel de Suttung?

— Eu vou!

Na manhã seguinte, eles despertaram cedo e caminharam, caminharam e caminharam. À tarde, tinham deixado a terra de Baugi e chegado à de Suttung, na base das montanhas. À noite, chegaram ao grande salão do gigante.

— Saudações, irmão! Este é Bolverkr, meu servo durante o verão e meu amigo. — Baugi contou a Suttung sobre seu acordo com Bolverkr. — Por isso preciso lhe pedir que dê uma prova do hidromel da poesia a Bolverkr.

Os olhos de Suttung eram duros como lascas de gelo.

— Não — respondeu ele, sem rodeios.

— Não? — indagou Baugi.

— Não. Não abrirei mão de nem uma gota daquele hidromel. Nem uma única gota. Eu o mantenho em segurança em seus tonéis, Bodn e Son, e na caldeira Odrerir. Esses tonéis estão nas profundezas da montanha Hnitbjorg, que se abre apenas a meu comando. Minha filha, Gunnlod, as guarda. Seu servo não pode prová-lo. Você não pode prová-lo.

— Mas foi a compensação de sangue pela morte de nossos pais — retrucou Baugi. — Eu não mereço uma parte, para mostrar a Bolverkr, aqui, que sou um gigante honrado?

— Não — retrucou Suttung. — Não merece.

Os dois deixaram o salão.

Baugi estava inconsolável. Caminhava com os ombros curvados e os cantos da boca pendendo para baixo. A cada passo, ele pedia desculpas a Bolverkr.

— Eu não achei que meu irmão seria tão injusto.

— Ele é mesmo injusto — concordou Bolverkr, que era Odin disfarçado. — Mas você e eu podíamos pregar uma pequena peça nele, para que não fique se sentindo tão superior no futuro. Assim, na próxima vez, ele escutará o irmão.

— Podíamos mesmo fazer isso — disse o gigante Baugi, e se aprumou, e seus lábios formaram algo que quase lembrava um sorriso. — O que vamos fazer?

— Primeiro, vamos escalar Hnitbjorg, a montanha pulsante.

Juntos, os dois escalaram Hnitbjorg — o gigante à frente, e Bolverkr, parecendo um boneco em comparação, mas sem nunca ficar para trás. Seguiram as trilhas feitas pelos carneiros e pelas cabras das montanhas, então escalaram as rochas até o cume. As primeiras neves do inverno tinham caído sobre o gelo do inverno anterior que não derretera. Ouviram o vento que assoviava pela montanha. Ouviram os pios das aves bem abaixo. E ouviram outra coisa.

Era um som que lembrava muito a voz humana. Parecia vir das rochas, mas distante, como se viesse do interior da própria montanha.

— Que barulho é esse? — perguntou Bolverkr.

Baugi franziu a testa.

— Parece minha sobrinha, Gunnlod, cantando.

— Então vamos parar aqui.

Da bolsa de couro, Bolverkr tirou o trado chamado Rati.

— Aqui. Você é um gigante, é grande e forte. Por que não usa este trado para perfurar a encosta da montanha?

Baugi pegou o trado. Então o apoiou na encosta e começou a perfurar. A ponta penetrou a montanha como um parafuso em uma rolha macia. Baugi girou e girou, muitas e muitas vezes.

— Feito — anunciou o gigante, tirando o trado da pedra.

Bolverkr se debruçou sobre o buraco aberto e soprou lá dentro. Lascas e poeira das rochas voaram de volta para ele.

— Acabei de descobrir duas coisas — anunciou Bolverkr.

— O quê?

— Que ainda não perfuramos a montanha. Você precisa continuar o trabalho.

— Isso é uma coisa só — argumentou Baugi.

Mas Bolverkr não falou mais nada, parado naquela encosta elevada, onde os ventos congelantes os golpeavam com suas garras. Baugi empurrou o trado Rati no furo e começou a girá-lo outra vez.

Já estava ficando escuro quando o gigante puxou a furadeira do buraco.

— Agora atravessou a montanha — anunciou.

Bolverkr nada disse, apenas soprou delicadamente no interior do furo, e dessa vez viu as lascas de pedra serem levadas para dentro.

Enquanto soprava, estava ciente de que algo ia atacá-lo pelas costas. Então Bolverkr se transformou: virou uma cobra, e o trado afiado acertou o lugar onde antes estivera sua cabeça.

— A segunda coisa que descobri quando você mentiu para mim — sibilou a serpente para Baugi, que segurava Rati como uma arma, atônito — foi que me trairia.

E, com um movimento da cauda, a serpente desapareceu pelo buraco no interior da montanha.

Baugi atacou outra vez com o trado, mas a serpente já havia desaparecido. Ele arremessou Rati para longe com raiva e o ouviu cair ruidosamente nas rochas abaixo. Pensou em voltar para o salão de Suttung e contar ao irmão que ajudara a levar um mago poderoso até o alto de Hnitbjorg. E que, além disso, também o ajudara a penetrar na montanha. Imaginou a reação de Suttung.

Então, com os ombros curvados e uma carranca, Baugi desceu a montanha e voltou andando para casa, para sua própria lareira e seu próprio salão. Fosse lá o que aconteceria com o irmão ou com seu precioso hidromel, aquilo não era da conta dele.

Bolverkr, na forma de cobra, deslizou pelo furo na montanha até o fim do buraco, que se abria em uma enorme caverna.

A caverna era iluminada por cristais, que emitiam uma luz fria. Odin voltou à forma de homem, mas não qualquer homem: um homem enorme, do tamanho de um gigante, e bem-apessoado. Então avançou, seguindo o som da canção.

Gunnlod, a filha de Suttung, estava parada diante de uma porta trancada, atrás da qual ficavam os tonéis chamados Son e Bodn e a caldeira Odrerir. Ela carregava uma espada afiada e cantava sozinha, de pé ali.

— É um prazer, brava donzela! — cumprimentou Odin.

Gunnlod o encarou.

— Não sei quem você é. Diga seu nome, estranho, e me conte por que eu deveria deixá-lo viver. Sou Gunnlod, a guardiã desta caverna.

— Sou Bolverkr — disse Odin. — E mereço a morte, eu sei, por ousar vir a este lugar. Mas baixe a espada e me deixe olhar para você.

— Meu pai, Suttung, me nomeou guardiã do hidromel da poesia.

Bolverkr deu de ombros.

— Por que eu me importaria com o hidromel da poesia? Vim aqui apenas porque ouvi falar da beleza, da coragem e da virtude de Gunnlod, filha de Suttung. Eu disse a mim mesmo: “Se Gunnlod me deixar apenas olhar para ela, vai valer a pena. Isso se ela for tão bela quanto dizem as histórias, claro.” Foi o que pensei.

Gunnlod encarava o belo gigante a sua frente.

— E valeu a pena, Bolverkr, que está prestes a morrer?

— Valeu muito mais. Você é ainda mais bela do que dá a entender qualquer história que já ouvi ou qualquer canção que bardos possam compor. Mais bela que o pico de uma montanha, mais bela que uma geleira, mais bela que um campo de neve ao amanhecer.

Gunnlod baixou os olhos, e seu rosto enrubesceu.

— Posso me sentar a seu lado? — perguntou Bolverkr.

Gunnlod assentiu, sem dizer nada.

A gigante tinha comida e bebida ali, na montanha, e eles comeram e beberam.

Depois de comerem, os dois se beijaram suavemente na escuridão.

Após fazerem amor, Bolverkr comentou, tristonho:

— Gostaria de poder tomar um gole do hidromel do tonel chamado Son. Aí poderia compor uma verdadeira canção sobre seus olhos, e todos os homens a cantariam quando quisessem cantar sobre beleza.

— Só um gole? — perguntou a gigante.

— Um gole tão pequeno que ninguém nunca saberia. Mas não tenho pressa. Você é mais importante. Deixe-me mostrar quanto é importante para mim.

Ele a puxou para perto.

Os dois fizeram amor no escuro. Quando terminaram, já deitados enroscados, as peles nuas se tocando, entre sussurros e palavras doces, Bolverkr soltou um suspiro triste.

— Qual é o problema? — perguntou Gunnlod.

— Queria ter a habilidade de cantar sobre seus lábios, sobre como são macios e muito mais bonitos que os lábios de qualquer outra mulher. Acho que isso daria uma excelente canção.

— Isso é mesmo uma lástima — concordou Gunnlod. — Pois meus lábios são muito atraentes. É o meu ponto forte.

— Talvez, mas você tem tantos traços perfeitos que escolher o melhor é muito difícil. Porém, se eu pudesse provar o menor dos goles do tonel chamado Bodn, a poesia entraria em minha alma, e eu conseguiria compor um poema sobre seus lábios que duraria até o Sol ser devorado por um lobo.

— Mas só um golinho. Meu pai ficaria muito irritado se achasse que eu dei o hidromel dele para o primeiro estranho bonito que penetrou a solidez desta montanha.

Os dois caminharam pelas cavernas de mãos dadas, de vez enquanto tocando os lábios. Gunnlod mostrou a Bolverkr as portas e as janelas que podia abrir de dentro da montanha, através das quais Suttung lhe mandava comida e bebida, mas Bolverkr pareceu não prestar atenção. Ele explicou que não estava interessado em nada que não tivesse relação com Gunnlod, seus olhos, seus lábios, seus dedos e seu cabelo. Gunnlod riu e respondeu que ele não podia estar falando aquelas belas palavras a sério, que ele obviamente não podia querer fazer amor com ela outra vez.

Bolverkr silenciou seus lábios com os dele, e os dois fizeram amor outra vez.

Quando os dois estavam perfeitamente satisfeitos, Bolverkr começou a chorar no escuro.

— O que há, meu amor? — perguntou Gunnlod, preocupada.

— Ah, me mate — respondeu Bolverkr, entre soluços. — Me mate agora mesmo! Eu jamais conseguirei compor um poema sobre a perfeição de seus cabelos e sua pele, sobre o som de sua voz, o toque de seus dedos. A beleza de Gunnlod é impossível de descrever.

— Bem, imagino que não deve ser fácil fazer um poema desses. Mas duvido que seja impossível.

— Talvez…

— Sim?

— Talvez um gole minúsculo da caldeira Odrerir me desse a habilidade lírica necessária para cantar sua beleza para as gerações futuras — sugeriu, parando de chorar.

— Sim, talvez… Mas teria que ser o gole mais minúsculo de todos…

— Mostre-me a caldeira, e vou lhe mostrar como é pequeno o gole que posso tomar.

Gunnlod destrancou a porta, e logo ela e Bolverkr estavam diante da caldeira e dos dois tonéis. O cheiro embriagante do hidromel da poesia pairava no ar.

— Só um golinho — alertou a gigante. — Pelos três poemas sobre mim que vão ecoar pelas eras.

— É claro, minha querida.

Bolverkr abriu um sorriso no escuro. Se Gunnlod tivesse olhado para ele, teria percebido que havia algo errado.

Com o primeiro gole, ele bebeu até a última gota da caldeira Odrerir.

Com o segundo, esvaziou o tonel chamado Bodn.

Com o terceiro, esvaziou o tonel chamado Son.

Gunnlod não era tola. Percebeu que tinha sido traída e atacou. A gigante era forte e rápida, mas Odin não ficou para lutar. Saiu correndo da caverna. Fechou a porta e trancou Gunnlod lá dentro.

Em um piscar de olhos, Odin se transformou em uma grande águia. Ele guinchou ao bater as asas, e os portões das montanhas se abriram, então Odin se alçou aos céus.

Os gritos de Gunnlod encheram o amanhecer.

Em seu salão, Suttung acordou e saiu correndo para fora. Olhou para cima e viu a águia, e soube o que devia ter acontecido. Então Suttung também se transformou em águia.

As duas águias voavam tão alto que, do chão, eram apenas pontos minúsculos no céu. Voavam tão rápido que seu voo parecia o rugido de um furacão.

Em Asgard, Thor anunciou:

— Chegou a hora.

Ele ergueu os três grandes barris de madeira e os levou para o pátio.

Os deuses observaram as águias gritando nos céus, seguindo na direção de Asgard. Estavam próximas. Suttung era rápido e estava logo atrás de Odin. Seu bico quase tocava as penas da cauda dele quando chegaram ao salão dos Aesir.

Odin começou a cuspir: uma fonte de hidromel jorrou de seu bico para os barris, enchendo um de cada vez. Era como uma ave levando alimento para seus filhotes.

Desde aquele tempo, sabemos que todos aqueles capazes de fazer magia com as palavras, de compor poemas e narrativas épicas, de tecer histórias, provaram do hidromel da poesia. Quando ouvimos um bom poeta, dizemos que ele provou do presente de Odin.

Aqui está. Esta é a história do hidromel da poesia e de como ele foi criado. É uma história cheia de desonra e mentiras, assassinatos e trapaças. Mas esta não é a história completa. Resta uma coisa a contar. Os mais delicados devem tapar os ouvidos, ou parar de ler.

Eis o último detalhe, e é uma confissão vergonhosa. Quando o Pai de Todos, em sua forma de águia, estava quase chegando aos barris, com Suttung logo atrás, Odin expeliu um pouco do hidromel pelo traseiro, soltando um peido molhado que jorrou hidromel fedorento bem no rosto de Suttung, cegando o gigante e tirando-o de seu encalço.

Ninguém, nem naquela época nem agora, quis beber o hidromel que saiu do traseiro de Odin. Mas sempre que você ouvir poetas ruins declamando sua péssima poesia, cheios de sorrisos tolos e rimas feias, vai saber que hidromel eles provaram.

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