Balder, o mais amado dos deuses, havia morrido vítima de uma perversa armadilha de seu rival Loki, que armara a mão de Hoder, irmão cego de Balder, com uma seta fatal e o fizera arremessá-la ao peito da vítima, prostrando-a sem vida ao chão. Loki fugira, enquanto que Hoder, o assassino involuntário do próprio irmão, ficara entregue ao remorso e à espera do castigo que certamente lhe caberia.
Mas Balder era tão amado por todos, especialmente por seus pais Odin e Frigga, que esta decidiu, tão logo viu o corpo sem vida do filho diante de si, que tentaria uma última jogada para salvá-lo das garras de Hei, a deusa da morte.
Assim, antes mesmo que os restos de Balder fossem queimados em seu navio –
convertido numa enorme pira funerária, conforme o hábito viking -, ela ergueu uma proclamação entre os guerreiros presentes ao funeral, conclamando que algum deles se prontificasse a ir até os sombrios domínios da morte o tentasse convencer a deusa a devolvê-lo ao convívio dos deuses. Um longo silêncio pairou, expectante, no ar – pois, apesar de serem todos bravos guerreiros, jamais haviam pensado na idéia de enfrentar a própria deusa da morte -, até que Hermod, irmão de Balder, ergueu-se e pronunciou estas palavras: – Estou pronto a ir buscar meu irmão, esteja ele onde estiver.
Gritos de aclamação fizeram-se ouvir por toda parte – alguns, é certo, engrossados pelo sentimento do alívio -, enquanto Frigga dava suas últimas instruções ao voluntário: –
Não seja rude com Hei, pois ela não é uma deusa perversa – disse Frigga. – Antes, tente convencê-la, amigavelmente, fazendo com que veja o quanto Balder nos era querido e o quanto sentimos a dor da sua falia. Somente, assim, conseguirá mover o seu coração à piedade.
Hermod partiu, no mesmo instante, rumo a Niflheim, que era o local onde estava instalada a palha dos mortos. Montado em Sleipnir, o cavalo mais veloz do universo, que seu pai Odin lhe emprestara, ele percorreu as distâncias mais áridas em menos de um dia. Ainda assim, não foi fácil ter de transpor as montanhas cobertas de neve e os temporais, que a todo instante caíam sobre ele e a montaria. Mas Hermod tinha consciência da importância da missão que escolhera e não esperava falhar – pelo menos não por uma circunstância derivada de uma falha ou negligência suas.
Quando o dia começava a cair, ele viu que o céu também escurecera – só que não era um escurecimento natural, proveniente da mudança do dia para a noite, mas sim o produto de uma mudança sinistra de estado, de uma condição imutável e necessária, que ali vigorava para todo o sempre. Pois aquela noite que ele começava a adentrar era completamente distinta da dos deuses e dos homens: uma noite infinitamente triste e tristemente eterna.
Sleipnir refugou duas vezes antes de colocar a primeira de suas oito patas sobre o solo gélido e pantanoso do Niflheim. O sol já havia desaparecido de todo e ele sabia que não tornaria a vê-lo nunca mais, caso não conseguisse retornar daquele lugar maldito.
Sleipnir deu um forte assopro, que lhe dilatou as narinas escuras, o que deu a entender a Hermod que o cavalo queria lhe dizer que estava pronto para o que desse e viesse. –
Muito bem, companheiro, vamos lá! – disse ele, recobrando novo ânimo.
Havia uma ponte imensa, em arco, toda feita de pedra úmida e com estranhos musgos pendentes, que pareceram a Hermod serpentes esverdeadas e balouçantes.
Abaixo dela passava o rio Gioll, de águas espessas, escuras e lodosas. O odor nada agradável deste sinistro curso d’água podia ser sentido à distância e as narinas, tanto dele quanto de Sleipnir, não se sentiram nada lisonjeadas quando receberam o seu primeiro impacto. – O que você recomenda? – disse Hermod ao cavalo de Odin. – Prudência ou audácia?
O cavaleiro desconfiava que se fosse devagar inalaria por muito tempo aquele bafo mefítico, podendo acabar morto antes mesmo de ultrapassar a metade da ponte; por outro lado, se ousasse emplacar um galope veloz, poderia provocar o desmoronamento da ponte, a qual parecia tudo, menos segura. Uma voz interior disse-lhe, contudo: “Mas se for um galope mesmo veloz, antes mesmo que ela ruísse, você já estaria do outro lado!” Entretanto, urna outra voz, certamente ditada pela prudência, lhe contrapôs: “E
como faria, então, para retornar?”
Mais uma vez o meio-termo triunfou e prevaleceu nas considerações do irmão de Balder. Por isso, ele resolveu seguir num passo firme, porém, atento e cauteloso. O
cavalo adiantou-se e começou a galgar o plano inclinado da ponte. Mas nem bem colocara a primeira pata e o ruído do casco do animal em contato com a pedra dura reboou por todo o vale sinistro. Era uma ponte relativamente larga, aquela, e por isto Hermod preferiu manter-se sempre no meio num passo seguro. Para piorar, o primeiro de uma série de relâmpagos iluminou todo o cenário diante dos seus olhos: uma chuva espessa desabou ao mesmo tempo, de uma só vez, e foi o bastante para que Hermod compreendesse por que razão tudo ali estava sempre coberto por musgos, parecendo que uma maré repentina houvesse baixado há poucos instantes, deixando grudadas às rochas maços inteiros de algas e heras.
– Em frente, Hermod, em frente! – disse o cavaleiro, mas com tal inconsciência que ele chegou a se voltar para os lados, como se um outro alguém lhe tivesse dado esta ordem. Viu, então, que as rochas recobertas de saliências, como grandes e grotescos narizes, assumiam cada vez mais a forma de faces – hediondas faces, cujos musgos pendentes lembravam cabelos revoltos e a água, que escorria pelas protuberâncias, fosse um rio caudaloso de lágrimas a descer pelos narizes. Então, um novo resfolegar, agora impaciente, de Sleipnir acordou-o para um outro fato, muito mais grave: o de que um rio caudaloso, produzido pela tempestade, descia da parte alta da ponte, engolfando a ele e o cavalo numa correnteza feroz, subindo já pelas oito patas de Sleipnir. – Em frente, Hermod. – disse ele, como se acordasse de um sonho, e o cavalo arremeteu com toda a força até alcançar o alto da ponte encurvada.
Os relâmpagos iluminavam aquelas hediondas trevas, agora, quase que de segundo a segundo, o que possibilitava ao cavaleiro contemplar o vasto panorama dos dois lados do ermo. Dos paredões enormes, escorria uma miríade de minúsculos córregos, descendo pelas paredes fraturadas e serpenteando como delgadas e cristalinas cobras d’água, até se perderem no abismo, mergulhando, por certo, nas águas escuras que gorgolejavam abaixo. Adiante, ele via apenas uma íngreme descida – quase um mergulho vertiginoso, a que dificilmente o seu cavalo poderia enfrentar sem resvalar e tombar, com todo aquele aguaceiro que caía dos céus de Niflheim. As quatro patas dianteiras de Sleipnir firmaram-se ã Imite e assim o cavalo desceu, recebendo por Irás a água, que agora descia naturalmente, junto com eles. Felizmente, não houve nenhum outro incidente e ambos chegaram, afinal, do outro lado da ponte incólumes. Mas, antes que o cavalo desse mais um passo, uma voz fina – e ao mesmo tempo surpreendentemente cavernosa – soou do alto: – Onde pensam que vão, habitantes do reino dos vivos?
Hermod ergueu a cabeça e nada avistou (seria um espectro alado quem proferia aquelas palavras?). Mas, depois de forçar a vista, viu uma criatura sentada ao alto de uma grande saliência. De tão magra e esquelética, não fora possível percebê-la num primeiro momento. – E você, criatura sinistra, quem é? – perguntou Hermod, num assomo de coragem.
– Sou Modgud, guardiã da ponte que atravessa o rio Gioll! – bradou a criatura, estendendo os braços recobertos por tiras de uma carne delgada e estraçalhada, que agitaram-se ao vento. Sem dúvida, eram os restos esfarrapados de antigas e já inúteis asas, pensou Hermod numa fração de segundo. O vento passava por aqueles tristes molambos de carne como passa pelos restos de uma velha cortina ou pelos trapos furados de uma abjeta mendiga. Em compensação, os seus pés e as suas mãos – ou, simplesmente, as suas garras – eram extraordinariamente desenvolvidos, como se estivessem assumindo, indubitavelmente, as funções de conduzir aquela mulher repulsiva pelos caminhos íngremes dos paredões. – Bem sei que não são de vivos as patas de seu cavalo ou o seu próprio corpo, pois nem mesmo um exército de mortos faria tanto ruído quanto a sua passagem! – disse a velha asquerosa, que parecia ter ainda algum resquício de vaidade, pois, num gesto involuntário, arrepanhou os restos de sua cabeleira –
composta de alguns fios delgados como teias de aranha – e a repuxou toda para trás, deixando descoberta uma grande caveira azulada.
– Modgud, guardiã dos sombrios domínios de Hei! – disse Hermod, dando uma entonação vigorosa à voz. – Não tenho tempo para apresentações, eis que venho a este lugar detestável a mando de Odin para solicitar um grande favor a Hei, deusa suprema do Niflheim. – Hermod explicou, então, em detalhes, os motivos que o traziam ao mundo dos mortos. Modgud, após escutar, deu-lhe passagem, ainda que com uma indisfarçada má-vontade, pois não lhe agradava nada aquela mistura de mortos e de vivos.
Hermod, sempre cavalgando seu fiel Sleipnir, chegou, finalmente, aos gigantescos portões de Hei. Como não houvesse, porém, ninguém para abri-los, Hermod os transpôs com um pulo fantástico de sua montaria, de modo que logo estava do lado de dentro. A deusa recebeu-o em sua casa escura e gelada e o levou até a sala de banquetes – o Eljudnir -, onde Hermod teve a grata satisfação de avistar seu irmão Balder e a esposa Nanna, sentados à mesa. Imediatamente correu a abraçá-lo e, assim, estiveram unidos um longo tempo, misturando as suas lágrimas, até que libertando-se dos braços do irmão deu a conhecer a Hei os motivos de sua viagem.
A deusa da morte relutou muito e não queria, a princípio, nem ouvir falar em devolver Balder ao mundo dos vivos. Mas Hermod, alertado que fora por Frigga, insistiu nos seus argumentos, sempre empregando a cordialidade. Por fim, tanto fez que conseguiu arrancar da renitente deusa a promessa de que permitiria a volta de Balder sob uma única condição: a de que todas as criaturas do mundo chorassem e implorassem por sua volta. – Se houver uma única criatura a não desejar a sua volta, será tudo em vão –
disse Hei, com sua voz mortiça, porém determinada.
Hermod achou que poderia cumprir, perfeitamente, aquela condição – afinal, qual criatura deixaria de chorar a morte de Balder? Munido de coragem, despediu-se da deusa e de seu irmão com um brilho de esperança nos olhos, sem saber, contudo, que era a última vez que punha os olhos em seu infausto irmão.
Hermod voltou para Asgard com tal velocidade que, em menos de um dia, estava diante de Frigga para lhe dar aquela que julgava ser a melhor notícia que poderia trazer. –
É simples: basta que todas as coisas animadas e inanimadas chorem a morte de Balder e clamem por seu retorno! – disse ele, repleto de esperanças.
Frigga, nem bem escutou estas palavras, mandou chamar todos os mensageiros possíveis para que fossem aos quatro cantos do mundo recolher os preciosos testemunhos. Em pouco tempo, o mundo todo – deuses, homens, anões, gigantes, animais, plantas e até as pedras choravam e imploravam pelo retorno de Balder.
Entretanto, faltava ainda o depoimento e as lágrimas de uma giganta chamada Thok, que vivia retirada nas montanhas de Jotunheim, a terra dos gigantes.
– Pode deixar, eu mesmo me encarregarei de colher pessoal mente as suas lágrimas
– disse Hermod, feliz de poder completar a obra de salvação de seu irmão.
Mais uma vez, ele partiu com a alma repleta de esperança e coragem. Assim que esteve diante da giganta, no entanto, teve uma desagradável surpresa. A criatura, uma giganta gorda e rabugenta, recusou-se terminantemente a derramar uma única lágrima pela morte de Halder. – Por que, bolotas, deveria chorara morte de uma criatura que nada significava para mim? – disse ela, com sua voz gutural amortecida pelas bochechas acolchoadas. – Por que, bolotas, deveria fingir um sentimento que não sinto?
– Mas todos, sem exceção, lamentam a morte de Balder e pedem a sua volta! –
exclamou Hermod, cuja vontade era enterrar os dedos nas três camadas de gordura do pescoço da repulsiva giganta até estrangulá-la.
– Eu não sou todos – disse a intransigente criatura -, sou Thok. Se lamentasse, de verdade, a morte deste sujeito derramaria até uma ou duas lágrimas – e não ia além, porque nunca vi alguém que merecesse mais. Mas, como não me vale uma bolota, pouco se me dá que permaneça para sempre na casa de Hei ou de quem quer que seja, desde que não seja na minha. Adeus! Vamos comer, que o resto é sofrer. – E encerrou-se num tal mutismo, que nem o próprio Odin teria sido capaz de lhe arrancar mais uma única palavra.
Assim, Hermod voltou para Asgard com a péssima notícia e Balder, o mais amado dos deuses, teve de se conformar em permanecer em Hei até a consumação dos tempos, quando, então, ele e seu irmão cego, Hoder, deverão renascer. Quanto a Loki, cedo descobriu-se que a giganta insensível não era outra senão o nefando deus, que desta vez ultrapassara todos os limites de perversidade. Por isso, os deuses, reunidos em conselho, decidiram que era hora de preparar uma terrível e definitiva punição a Loki.
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