Tudo começou com a chegada a Asgard de uma jovem giganta chamada Skadi, vinda do país gelado de Thrymheim, para vingar a morte de seu pai, o gigante Thiassi – o mesmo que seqüestrara a deusa Idun para se apossar das maçãs da juventude. Os deuses haviam-no queimado em uma gigantesca fogueira, que o consumiu inteiramente, a exceção dos olhos, que viraram duas estrelas.
Sua filha, entretanto, não ficara nem um pouco consolada com a homenagem, partindo do mesmo jeito em direção a Asgard para reclamar a sua indenização. Os deuses receberam-na com cordialidade, tentando, de alguma forma, aplacar a fúria que lhe chispava dos olhos negros como a noite.
– Diga-nos o seu preço e nós a indenizaremos de bom grado pela perda do seu pai –
disse Odin, de maneira gentil e conciliatória. – Reconhecemos que a sua pretensão a uma recompensa é válida e estamos dispostos a negociar. Dê-nos, apenas, um ponto de partida.
Odin estava ao lado daquele que, certamente, seria o ponto de chegada: um enorme baú abarrotado de ouro. Por cima dele, como numa irresistível cobertura de sorvete, esparramavam-se até cair pelas bordas colares, anéis e pulseiras divinamente confeccionados pelos mais hábeis anões do universo.
A giganta inclinou a sua enorme cabeça até o baú e, depois de tomar o seu peso, emborcou-o inteiro na mão. Todo o ouro e as pedrarias couberam na sua palma.
– Quero a vida de um Aesir pela vida de meu pai e não, ninharias! – disse ela, dando um chute no baú, que voou de balão pela janela do palácio onde estavam. (Mas, nas tais ninharias, ninguém em Asgard nunca mais pôs os olhos.) – Escolham: ou a vida de um deus, agora, ou a invasão de todos os gigantes de Thrymheim, mais tarde! -concluiu Skadi, num derradeiro ultimato.
O salão de Odin esvaziara-se, repentinamente, diante da fúria da explosiva giganta.
Mas, o imprevisível Loki decidira ficar e tentar acalmar a irascível jovem.
“Talvez isto sirva para apaziguá-la um pouco!”, pensou, começando a executar, em seguida, os passos da mais extravagante das danças, intercalando-a com saltos e acrobacias; chegou mesmo ao extremo de incluir alguns números de franco mau gosto, como amarrar-se a um bode pela parte mais inesperada (e sensível) do seu corpo e se deixar arrastar desta forma grotesca por todo o salão.
Mas, como geralmente os extremos entendem-se, Skadi passou aos poucos da ira à alegria, não podendo mais conter o riso diante de tantas loucuras.
– Basta, basta…! – exclamava ela, em meio às gargalhadas.
– Basta, besta…! Basta, besta…! – repetia Loki, que parecia um verdadeiro demônio, ainda preso ao bode. – Depois, aproveitando a descontração da giganta, deu-lhe ainda uma outra sugestão: – Antes de matar um de nós, por que não martirizá-lo um pouco?
Com um ar de incompreensão desenhado no rosto, ela indagou:
– Martirizá-lo? Como assim?
– Ora, casando-se com um de nós…! – disse Loki, afetando um ar de falsa seriedade.
– Por um momento, temeu-se que Loki pudesse ter posto tudo a perder com aquele gracejo de gosto duvidoso; mas seu ar era tão diabolicamente maroto, que a jovem Skadi caiu no riso outra vez.
“Casar-me com um deus?”, pensou, indecisa, com os olhos ainda úmidos da hilaridade. “Nunca havia pensado nisto!”
Entretanto, não eram nada incomuns as uniões entre deuses e gigantes desde o começo dos tempos. Bor, um dos ancestrais mais antigos dos deuses, por exemplo, casara-se no alvorecer do mundo com a giganta Bestla, embora a disputa entre as duas raças tivesse recém começado.
– Está bem – disse ela -, aceito a sugestão, desde que eu mesma possa escolher meu futuro marido.
Os deuses ficaram paralisados; Odin achava que, se assim fosse, certamente ela acabaria por escolher Balder, o mais belo dos deuses. De fato, desde sua chegada a Asgard, os olhos da giganta haviam pousado sobre ele e não era preciso ser mago ou vidente para prever qual seria a sua escolha.
Loki, entretanto, veio em auxílio com mais uma de suas idéias. Mas, mesmo depois de tê-la explicado a Odin, este ainda pareceu cético quanto à sua aplicação.
– Não se preocupe – disse Loki. – Antes, vamos regá-la a bastante hidromel.
Skadi foi convidada a se sentar à mesa com todos os Aesires. Após um banquete farto em comidas picantes, foi trazido o grande caldeirão de hidromel.
– Agora, bebamos à nossa futura irmã! – disse Odin, passando um grande chifre ornamentado de rubis e esmeraldas à convidada.
Skadi bebeu de um trago todo conteúdo, tal era a sua sede. Ato contínuo, foi enchido novamente o seu chifre e, assim, a noite inteira a bela giganta bebeu junto com os deuses até que, animada, ela deu à certa altura um grande grito:
– Quero escolher, agora, o meu marido!
Todos os deuses retiraram-se às pressas para uma outra sala, ficando naquela somente Odin e Loki. Este adiantou-se e disse, enfeitando as suas palavras com novos trejeitos e palhaçadas:
– Ótimo, ótimo! Skadi irá escolher seu marido! – Tomou-a pela mão e a levou até uma outra sala, onde os deuses já estavam preparados. – Pronto, adorável Skadi: aqui estão todos, apenas esperando que você faça a sua escolha!
Os deuses estavam todos postados atrás de uma grande cortina escura, deixando à mostra apenas os pés.
– Que brincadeira é esta…? – disse a giganta, com uma grande risada, ao ver aquela fileira ridícula de pés à sua frente.
– Um destes pés será o seu marido! – disse Loki, com um ar divertido. -Não é um modo original de escolha?
Skadi parou um pouco para pensar, mas acabou chegando à seguinte conclusão: se Balder era o mais belo dos deuses, conseqüentemente seus pés haveriam de ser também os mais belos.
– Está bem, vamos logo a isto! – disse ela, numa voz um tanto pastosa.
Um a um, ela foi analisando aqueles divinos pés (os quais, verdade seja dita, nem por serem divinos deixavam também de ter as suas imperfeições). Depois de tê-los estudado, detidamente, apontou o par, que estava à esquerda, no fim da fila.
– São os pés mais lindos que já vi em minha vida! – exclamou ela, segura de que Balder era o dono deles.
– Podem descer a cortina! – ordenou Odin.
Assim que o pano caiu foram todos tomados pela mais grata surpresa, pois o escolhido fora Niord, um deus marítimo. Ele era pai de Freyr e Freya, deuses da fertilidade, e fora enviado com eles para Asgard, há muito tempo, para selaras pazes entre Aesires e Vanires, as duas estirpes divinas que viviam em guerra desde o começo dos tempos. Niord vivia sozinho em Noatun, o seu palácio situado nas profundezas do mar, desde que deixara a distante pátria dos Vanires.
Quanto a Skadi, a sua noiva e futura esposa, sentira-se ludibriada num primeiro momento, mas, depois de estudar um pouco melhor a situação, acabara por se consolar, afinal, com a escolha; Niord não era um deus nada feio e era rebente de um grande império marítimo. Mas, acima de tudo, era obrigada a admitir que seus pés eram verdadeiramente sensacionais!
– Quero que ande sempre descalço – dissera ela, impondo apenas esta pequena condição para aceitar o ajuste matrimonial.
– Claro, minha querida…! – exclamara um Niord vibrante de felicidade, pois sabia que seus dias de solidão oceânica estavam prestes a acabar.
O casamento realizou-se em Asgard e, logo em seguida, o casal partiu em lua-de-mel para o palácio marítimo de Niord.
Infelizmente, porém, os desentendimentos começaram já nos primeiros dias. E, não foi nem pelo fato de Skadi ter sido obrigada a fazer uma pequenina modificação nos seus hábitos respiratórios (afinal, respirar debaixo d’água o tempo todo, demora um pouco para se acostumar), mas por uma mera questão de gosto pessoal: Skadi, acostumada à terra, simplesmente, não conseguia adaptar-se a vida marítima.
Beleza havia de sobra por lá, é verdade; ela mesma era obrigada a reconhecer isto, quando observava a dança uniforme dos corais e liquens ao redor das carcaças dos navios vikings afundados. O palácio de Niord, todo recoberto por um tapete de húmus esverdeado, também era uma coisa fantástica de se ver. E, mesmo a sua vistosa corte, com bandos de peixes de todas as cores a nadar de lá para cá (tal como as nossas aves, embora mudos e com cara de bocós), não deixava de ser algo sumamente interessante.
Mas, nem só de beleza podia viver uma pessoa, argumentava ela, já nas primeiras brigas que travara com seu esposo.
– Veja só o estado de minha pele…! – dissera ela, mostrando as mãos e o rosto enrugados de tanto estar debaixo d’água. – Pareço uma velha de cento e vinte anos!
E depois, aquela umidade constante pela casa, as roupas que nunca secavam, aquele eterno gosto de sal na boca – “estou me sentindo um pedaço de charque ambulante!”, dizia ela, enojada de si mesma -, e, ludo isto, sem falar nos tubarões ferozes, que andavam soltos e sem coleira por toda parte, que horror!
De tudo isto, resultou que ambos resolveram tentar a vida na pátria de Skadi. Niord, é claro, não ficara muito entusiasmado com a mudança, mas, enfim, era o jeito. Menos de um mês depois, já estavam morando em Thrymheim.
No começo tudo correu bem, mas, logo, foi a vez de Niord se queixar.
– Que barulheira infernal! – disse ele, após perder o sono pela milésima vez. –
Acostumado ao silêncio majestoso do oceano, quebrado apenas, de vez em quando, pelos gritos estridentes de um golfinho ou de uma baleia, agora era obrigado a suportar toda espécie de gritos, uivos, rugidos, zurros e uma infinidade de outros meios de expressão, que eram, positivamente, infernais.
– Meu deus, como podem agüentar esta zoeira permanente? – exclamava ele, à noite, ao escutar o alarido exasperante de um grilo, perdido na escuridão.
Desacostumado também ao vento, tomara-se de tal pavor por esta novidade atmosférica que, já no segundo dia, mandara lacrar todas as janelas da casa, receoso do famoso vento encaixado que sabia ser o terror da velhice sobre-aquática.
Além disso, havia ainda um outro sério inconveniente: acostumado a viver num estado de banho permanente, não podia suportar, nem por um segundo, aquela sensação angustiante de ter qualquer sujeira, por menor que fosse, aderida à pele. E o mau odor, então…! Bastava uma caminhada e, logo, estava todo suado e malcheiroso como um cavalo!
– Além do mais, não suporto insetos – dissera ele, ao pôr um ponto final em sua estada na terra de Skadi. – Prefiro um tubarão a um mosquito…!
Instalada a discórdia, ambos ainda tentaram consertar as coisas, fazendo com que cada qual passasse um determinado tempo em sua própria terra, e o restante juntos. Mas nem assim as coisas melhoraram, pois o curto período de tempo no qual eram obrigados a se violentar um na terra do outro, era longo o bastante para o ressurgir das desgastantes lutas conjugais.
Então, finalmente, o bom senso prevaleceu e ambos fizeram, de comum acordo, o que sempre se deve fazer em tais ocasiões: cada qual foi viver sozinho, mas em paz, em sua respectiva casa. Às vezes, até se visitavam para matar a saudade; mas antes que a primeira discussão ameaçasse realmente matá-la, retornavam, à toda pressa, cada qual para o seu doce lar.
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