O Templo de Jerusalém

Com a transferência da arca para sua nova capital, Davi quis fazer de Jerusalém o centro religioso de Israel, mas a arca continuava sob uma tenda e não havia santuário construído para ela. De acordo com II Sm 7.1-7, Davi sonhava em construir “casa” para Iahvé, mas ele foi desviado disso por uma ordem de Deus transmitida pelo profeta Natã. Segundo uma adição antiga ao texto dessa profecia, II Sm 7.13, Iahvé reservou essa realização ao filho e sucessor de Davi. Na redação deuteronômica dos livros de Reis, Salomão lembra essa promessa e se apresenta como o executor de um plano que seu pai tinha feito mas que não realizou porque estava muito ocupado com suas guerras, I Rs 5.17-19; 8 .15-21. O Cronista dá a Davi uma função muito mais importante: ele não construiu o templo porque era um homem de guerra que tinha derramado sangue, enquanto que Salomão era predestinado para essa obra por seu nome de rei “pacífico”, I Cr 22.8-10; 28.3; mas Davi preparou tudo: ele lixou o projeto do Templo e fez o inventário de sua mobília, reuniu os materiais para construção e os lingotes de ouro para os objetos sagrados, formou as equipes de trabalhadores, regulou as classes e as funções do clero, I Cr 22-28. No fim do capítulo trataremos das ideias teológicas expressas nessas diversas tradições, aqui só afirmaremos o que elas têm de comum: Davi teve a ideia do Templo, mas foi Salomão que o construiu.

O TEMPLO DE SALOMÃO

Do quarto ao décimo primeiro ano de seu reinado, Salomão esteve ocupado na construção do Templo, I Rs 6.37-38, cf. 6.1. Por consequência de uma negociação com o rei de Tiro, Hirão, I Rs 5.15-26, a madeira para a obra vinha do Líbano, enquanto que as pedras eram extraídas de pedreiras próximas de Jerusalém, I Rs 5.29,31. Os israelitas, forçados à corveia, forneceram a mão de obra pesada, I Rs 5.20,23,27-30, mas os operários especializados, os lenhadores no Líbano, os marinheiros para o transporte marítimo e os carpinteiros e pedreiros em Jerusalém, eram fenícios, I Rs 5.20,32. Foi também um fenício, mesmo que nascido de mãe israelita, Hirão, que fundiu no vale do Jordão as duas colunas e os objetos de bronze, I Rs 7.13-47.

A descrição do Templo e de sua mobília é dada em I Rs 6-7, do que II Cr 3-4 fornece uma versão resumida, com algumas variantes. Essa descrição é muito difícil de ser interpretada: certamente ela remonta a um documento quase contemporâneo da construção e o redator final viu o Templo ainda em pé, mas esse redator não tinha as preocupações de um arquiteto ou de um arqueólogo e omitiu elementos essenciais para uma reconstituição, por exemplo a espessura das paredes, a disposição da fachada, o sistema de cobertura. Além disso, o texto está cheio de termos técnicos, ele foi desfigurado por copistas que não o compreendiam melhor que nós e foi sobrecarregado de glosas destinadas a realçar o esplendor do edifício. Enfim, não resta desse edifício grandioso nenhuma pedra visível. Somos guiados somente por uma exegese frequentemente incerta e por comparações permitidas pela arqueologia da Palestina e dos países vizinhos. Não é de espantar que as reconstituições muitas vezes tentadas difiram notavelmente entre si, e a que é proposta aqui não pretende ser definitiva.

a) Os edifícios — O Templo era um edifício longo, aberto em um de seus lados menores. Ele era dividido internamente em três partes: um vestíbulo chamado Ulam, de uma raiz que significa “estar diante de”; uma sala de culto chamada Hekal, que tem, em hebraico como em fenício, o duplo sentido de “palácio” e de “templo”157 e que foi chamada mais tarde de o Santo; enfim, o Debir, aproximadamente, a “câmara de trás”, que se chamou depois o Santo dos Santos; este era o domínio reservado a Iahvé, onde ficava a arca da aliança.

As medidas dadas são da parte interna, não compreendidas as paredes. O Templo tinha uma largura uniforme de vinte côvados; no comprimento, o Ulam tinha 10 côvados, o Hekal 40 côvados, o Debir 20. As paredes divisórias não são mencionadas; certamente havia uma entre o Ulam e o Hekal, mas pode-se perguntar se existia uma entre o Hekal e o Debir. De fato, o Hekal e o Debir são tratados como uma unidade, I Rs 6.2: eles constituem propriamente a “casa”, o Templo, e eles medem em conjunto 60 côvados de comprimento; precisa-se em seguida que o Debir tinha 20 côvados e o Hekal 40 côvados, 1 Rs 6.16-17. Se houvesse de fato uma parede de separação, o comprimento total teria sido de 60 côvados mais a espessura da parede. Os detalhes relativos ao Debir parecem confirmar essa conclusão; o texto sofreu alteração, mas com uma leve correção obtém-se um sentido excelente; 1 Rs 6.16: Salomão “construiu os 20 côvados a partir do fundo do Templo com pranchas de cedro desde o chão até as vigas, e (esses 20 côvados) ‘foram separados’ do Templo para o Debir”. Essas pranchas não são o revestimento de madeira das paredes principais, mencionado no verso precedente e que existia tanto no Hekal quanto no Debir, elas parecem constituir um tabique de madeira que isolava o Debir. Essa hipótese pode ter apoio nos textos posteriores: na Tenda do deserto, cuja descrição se inspira no Templo de Jerusalém,158 o Santo dos Santos só era separado do Santo por um véu, Êx 26.33, o templo de Ezequiel não comporta nesse lugar senão uma parede relativamente fina, Ez 41.3, no Templo de I li-rodes a Mishná só registra cortinas entre o Santo e o Santo dos Santos, e Josefo, cuja descrição merece mais confiança, só fala de um véu, Bell. V v 5.

Nos antigos templos orientais, a cella era elevada ou pelo menos uma plataforma mais ou menos alta, um pódio, que sustentava o símbolo do culto. Mesmo que o texto não diga nada, parece que em Jerusalém também o Debir ficava em um nível superior ao do Hekal. De acordo com as medidas que são tladas, o Debir formava um cubo perfeito de 20 côvados de lado, I Rs 6.20, mas a altura do Hekal era de 30 côvados segundo o hebraico, de 25 segundo a antiga versão grega e a recensão luciânica, I Rs 6.2. Essa diferença de 10 ou 5 côvados tem sido explicada pela suposição de que o teto do Debir era mais baixo que o do Hekal, como para a cella de certos templos egípcios, ou que uma câmara ultrapassava o Debir. As duas soluções são improváveis e é melhor supor que o piso do Debir era mais alto que o do Hekal e que se subia a ele por uma escada. Segundo o hebraico, esse pódio teria 10 côvados de altura, o que ultrapassa todas as analogias conhecidas, mas se se aceita o número do texlo grego ele teria tido apenas 5 côvados, o que não é excessivo.

Diante do vestíbulo se erguiam duas colunas de bronze, I Rs 7.15-22,41-42. Elas tinham 18 côvados de altura e eram ultrapassadas por capitéis de 5 côvados, também de bronze. Essas colunas não parecem ter sustentado o lintel do veslíbulo, pelo contrário, elas se erguiam isoladas diante dele, de cada lado da entrada. Recentemente, elas têm sido interpretadas como sendo imensas tocheiras; é bem mais provável que elas continuem a tradição das esteias ou massebot dos antigos santuários cananeus. Analogias fenícias não faltam e elas podem ser comparadas aos dois pilares de Heliópolis mencionados por Luciano, De Dea Siria 28, às duas esteias do templo de Héracles em Tiro do qual fala Heródoto, I I 44, aos dois pilares que decoram um relevo nos arredores de Tiro e, para uma época mais próxima da do Templo de Salomão, a um modelo de santuário em terracota proveniente de Idaliom, em Chipre, e a dois modelos análogos recentemente descobertos, um na Transjordânia outro em Tell el-Far‘ah, perto de Naplouse. Os nomes dados às duas colunas, lakin e tío ‘az, continuam enigmáticos: eles têm sido explicados como formando uma frase, “ele estabelecerá com força”, ou como as primeiras palavras de oráculos reais cuja sequência é subentendida, “Iahvé estabelecerá…; Na força de Iahvé…”, ou como nomes dinásticos, Bo ‘az: o Boás do livro de Rute, ancestral de Davi; lakin: um ancestral de Bate-Seba? Esses nomes não aparecem em nenhum outro lugar e nada assegura que tenham sido gravados nas colunas; se diz que foram dados pelo artesão tírio que as fabricou e as instalou e expressam, talvez, somente sua satisfação diante das obras-primas acabadas: lakin (ou melhor lakun, forma fenícia conservada pela versão grega) “ela é sólida”, e Bo ‘az (talvez com vocalização fenícia) “com força”.

Uma construção cercando três lados do Templo é descrita em 1 Rs 6.5-10. Ela aparece como um edifício de três andares pouco elevados, ligados às paredes do Debir e do Hekal mas deixando livres as do Ulam. Ela é chamada ora yasia, no singular, ora sela‘ot, um plural cujo singular designa cada um dos três andares. As duas palavras não são sinônimas e parecem indicar que o texto combina informações sobre dois estados sucessivos desse edifício. Segundo o sentido da raiz, o yasia era uma construção baixa, no andar térreo, que cercava os três lados do Templo. Ela só tinha 5 côvados de altura e era o equivalente das salas baixas que flanqueiam alguns templos do Egito e da Mesopotâmia; como estes, ela servia como dependência do santuário e de depósito para as oferendas. Construída ao mesmo que o Templo ela estava ligada com ele, I Rs 6.10. Chegado o momento em que essa construção não dava mais conta dos propósitos para os quais tinha sido destinada, foi aumentada em dois andares, em uma ou duas ocasiões. O nome yasia, que significa alguma coisa baixa, não era mais conveniente, daí o conjunto foi chamado sela’ot, cujo singular serve para designar o lado humano, o lado de um objeto ou de um edifício, e aqui, cada um dos andares que flanqueiam o Templo. Porque os dois andares superiores desse edifício lateral são adições, eles não são ligados ao Templo, como é o yasia, seu vigamento repousa sobre as retrações preexistentes da parede e, consequentemente, sua largura aumenta um côvado por andar, I Rs 6.6. A entrada do yasia ficava no canto direito do Templo, certamente do lado de fora. Quando foram acrescentados os andares, foram postos os luliin. As versões antigas e muitas modernas entendem que estes sejam escadas de caracol; é mais provável que, seguindo o sentido da palavra em hebraico rabínico, fossem simplesmente alçapões, que faziam comunicar entre si os andares, que tinham teto baixo e que serviam de depósitos.

A descrição do edifício lateral indica que a parede do Templo recuava três vezes em um côvado. Esses recuos tinham uma razão técnica: diminuíam-se assim as partes altas da parede salvaguardando sua estabilidade. A destruição das partes altas nos edifícios escavados na Palestina e na Síria nos priva de uma confirmação pela Arqueologia, mas foram achados em Beisan modelos de santuário em terracota, onde uma retração igual é claramente indicada. No Egito, o mesmo resultado era obtido dando-se uma inclinação muito pronunciada à face das paredes altas.

Quanto ao modo de construção pode-se utilizar uma informação que é dada acerca das paredes dos pátios do Templo e do Palácio, I Rs 6.36; 7.12: cias tinham três fiadas de pedras de cantaria e uma fiada de pranchas de cedro. (l provável que as paredes do próprio Templo fossem feitas da mesma forma pois, quando se trata de o reconstruir após o Exílio, o edito de Ciro ordena que ele tenha três fiadas de pedra e uma de madeira, Ed 6.4. Segundo numerosos paralelos resgatados pelas escavações do Oriente Próximo essas pranchas são certamente uma estrutura de madeira que assegura a coesão da parede. Em alguns casos, esse vigamento se insere em uma parede inteiramente de pedra, em outros casos, o vigamento começa em cima de um soco de pedras e fecha uma superestrutura de tijolos. Esse procedimento é bem atestado em Tróia e parece ter sido seguido nas construções salomônicas de Megido; veremos que ele se acha nos santuários onde o Templo de Salomão tem seus melhores paralelos. É, pois, possível que o Templo tenha sido construído de tijolos sobre um soco de pedras, e os forros de cedro que revestiam as paredes, I Rs 6.15, teriam servido para ocultar os tijolos; também para isso existem paralelos.

Um texto relativo ao Palácio dá talvez o nome técnico dessa estrutura de madeira que assegurava a estabilidade dos tijolos. É dito em I Rs 7.9 que todos os edifícios reais eram de pedras escolhidas “desde o alicerce até os tepcihot”. As versões antigas traduzem ao acaso e os comentadores modernos conjeturam: ameias do terraço ou consolos sustentando as vigas de cobertura. Mas não há dúvida de que a palavra é um emprego metafórico de tepah, a “palma da mão”. Ora, em assírio, o equivalente tappu significa ao mesmo tempo “sola do pé” e “prancha ou viga”. Três cartas de El-Amarna contêm esta frase: “O tijolo pode escorregar de sob seus tappciti mas eu não escorregarei de debaixo dos pés do rei meu mestre.” Tappati tem sido traduzido por “companheiros” mas o sentido parece ser claro: os reizinhos de Canaã protestam que eles não se moverão de sob os pés do faraó, nem o tanto que os tijolos de uma parede se movem sob as madeiras que os prendem. Tappati, nessas cartas, representa o conjunto da estrutura, como tepahot de I Rs 7.9, e esse texto significaria que as paredes são um belo aparelho de pedras até a estrutura de madeira inserida na superestrutura de tijolos; isto seria o equivalente das três fiadas de pedra sob uma fiada de pranchas de cedro em I Rs 6.36; 7.12; Ed 6.4. Seguindo o uso dos santuários semíticos,159 o Templo se elevava no meio de um átrio chamado o pátio interno, I Rs 6.36, por oposição ao grande pátio, I Rs 7.12, cuja parede encerrava ao mesmo tempo o Templo e o Palácio, Este compreendia também um pátio interno, I Rs 7.8, cuja parede norte era comum com o átrio do Templo. Passava-se diretamente dos domínios do rei aos domínios de Deus e essa proximidade despertará mais tarde a indignação de Ezequiel: “A casa de Israel, eles e seus reis, não mancharão mais meu santo Nome… estabelecendo uma parede comum entre eles e mim”, diz Deus, Ez 43.7-8. O átrio do Templo foi depois dividido, ou estendido às dependências do grande pátio. Sob Josafá, II Cr 20.5 fala de um “novo átrio” , e nos é dito que Manassés erigiu altares “nos dois pátios da casa de Iahvé”, II Rs 21.5, e Jr 36.10 menciona um “pátio superior”, aparentemente o topo da esplanada que suportava o Templo, por oposição a um pátio inferior. Assim começam a se desenhar as divisões do santuário herodiano: átrio de Israel, átrio das mulheres, átrio dos gentios.

b) Analogias e influências – Antigamente, procurava-se no Templo de Salomão naturalmente uma influência egípcia. Mas o conceito arquitetônico é inteiramente diferente do dos templos egípcios: estes se desenvolvem seguindo um plano difuso, atrás uma fachada larga, com um travamento das construções ao redor da cella do deus; o Templo de Salomão é composto de três peças enfileiradas sobre uma fachada estreita. Tem-se pensado também em uma influência da Assíria e alguns planos de santuários de lá são de fato bastante semelhantes. Mas há diferenças, e, sobretudo, a Palestina e a Assíria são muito distanciadas uma da outra e não tinham contatos na época de Salomão. Deve-se procurar analogias mais próximas.

A divisão tripartite em Ulam, Hekal e Debir, que é a do Templo, é freqüente. Ela aparece, por exemplo, no templo do Fosso em Tell ed-Duweir, antes da instalação dos israelitas na Palestina, e, um pouco mais tarde, nos pequenos santuários de Beisan. Mas essa divisão é bastante natural e falta nela o que caracteriza o Templo de Jerusalém: a disposição das três peças em fileira ao longo de um edifício que tem uma largura constante. Ora, acha-se esse mesmo plano em muitos santuários recentemente descobertos: em Alalakh (Tell Atchana) na Síria do Norte, um templo muito mau conservado do século XIII antes de nossa era; em Hazor na Palestina, um templo da mesma época, cuja estrutura foi melhor preservada; em Tell Tainat, não longe de Tell Atchana, um templo do século IX a.C. Notaremos que essas analogias se estendem aos procedimentos de construção que temos já pressuposto para o Templo de Jerusalém: esses templos têm paredes de tijolos com estrutura de madeira, que, pelo menos em Alalakh e em Hazor, ficam sobre um soco de pedra; em Alalakh e talvez em Hazor, há indicações de que um folheado de madeira cobria as paredes de tijolos. Esses paralelos enquadram cronologicamente o Templo de Salomão e provêm da região siro-fenícia, onde seu modelo deve certamente ser achado. Vimos que os fenícios aí trabalharam como operários especializados e que as peças de bronze foram moldadas por um artesão de Tiro. E provável que o arquiteto responsável pelo projeto e sua execução tivesse a mesma origem; talvez poderíamos identificá-lo com o superintendente das grandes obras do rei, o chefe da corveia, Adorão, que tem um nome fenício, I Rs 5.14.

c) Sítio do Templo – Conforme I Cr 22.1, Davi, após ter erigido um altar na eira de Araúna, II Sm 24.18-25, designou o lugar como a “casa de Iahvé” e o altar como “o altar dos holocaustos para Israel”. É neste “lugar preparado por Davi” que Salomão constrói seu Templo, II Cr 3.1. Não há nenhuma dúvida sobre sua localização geral: é o topo rochoso que dominava ao norte a colina do Ofel onde se estendia a cidade antiga, é o mesmo lugar onde foram construídos mais tarde o Templo de Zorobabel e, depois, o de Herodes, e o cinto de muralhas herodiano é atualmente representado pela esplanada da mesquita de Ornar, o Haram esh-Sherif. Também não há nenhuma dúvida sobre a orientação do Templo de Salomão: como o de Ezequiel, Ez 47.1, e como o de Herodes, sua entrada apontava para o leste, cf. ainda I Rs 7.39.

A localização precisa é mais difícil. No meio do Haram esh-Sherif, em seu ponto mais elevado, a cúpula de Omar protege hoje uma protuberância rochosa, a Sakhra, o “Rochedo”, sob a qual se acha uma gruta. É certo que se deve pôr o Templo em relação estrita com essa rocha que permaneceu objeto de tão grande veneração. Mas duas hipóteses conflitam. Segundo a opinião atualmente mais comum, esse rochedo agora visível era o envasamento do altar dos holocaustos que se achava diante do Templo, e este se elevava a oeste da rocha sagrada. Pretende-se reconhecer nos entalhes da rocha traços da implantação do altar, na gruta cavada sob a rocha o lugar onde eram jogadas as cinzas e os resíduos dos sacrifícios, em um canal que se abre ao norte onde se jogavam o sangue e a água das purificações. Conforme à tradição de 1 Cr 22.1, pensa-se que o altar dos holocaustos manteve a posição do altar de Davi e se supõe que este tenha sido erigido no ponto mais alto do rochedo. Mas nada disto é evidente e, se o Templo se elevava a oeste do rochedo, ele era construído sobre a declividade da colina, que é bastante rápida, e o Debir era sustentado por grandes substruções, o que parece estranho. Do lado leste, acha-se uma outra dificuldade para essa localização: a escada que separa o átrio de Israel e o átrio das mulheres no Templo de Herodes não corresponde a nenhum acidente do rochedo, enquanto que o átrio das mulheres teria sido cortado por uma brusca diferença de nível.

Por essas razões, alguns autores voltaram-se para uma opinião antiga e consideraram a rocha sagrada como o fundamento do Debir, do Santo dos Santos. Importa pouco que ela ultrapasse as dimensões do Debir pois este era construído sobre a rocha e não ao redor dela, e é normal que a rocha seja proeminente, se o Debir era, como se tem dito, mais alto que o Hekal. Nessa hipótese, não há mais necessidade de substruturas para o Debir, a escada do Templo de Herodes se situa normalmente na borda do terraço superior e nenhum ressalto prejudica mais o pátio das mulheres. Essa hipótese também tem seus inconvenientes: a fixação das paredes do Debir sobre a rocha é difícil, não é explicado o canal e a gruta, e por fim, no Templo de Herodes, o átrio dos gentios teria sido reduzido a quase nada diante do Templo, mesmo que ele se estendesse largamente para o norte e para o sul deste. As duas hipóteses têm bons argumentos, as duas também se chocam com dificuldades. Tudo considerado, a segunda parece preferível. Ela acha certa confirmação na tradição rabínica segundo a qual uma pedra aflorava no Santo dos Santos; ela era chamada eben shetiyyah, “a pedra do fundamento”, e era considerada a pedra da fundação do mundo. E, quando Jesus diz a Pedro: ‘Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha igreja”, Mt 16.18, não fazia alusão a esse rochedo sobre o qual estava construído o santuário da antiga aliança?

d) Mobília – No Debir estava depositada a arca da aliança que foi estudada acima a propósito do culto do deserto.I6f) Ela era colocada sob duas grandes figuras de querubins de madeira chapeada de ouro, que ocupavam toda a largura do Debir e a metade de sua altura, I Rs 6.23-28; II Cr 3.10-13, cf. I Rs 8.6-7; II Cr 5.7-8. Eles eram figuras aladas, animais com cabeça humana, como as esfinges aladas da iconografia siro-fenícia. Mas seu nome, kerub, vem do acádico, onde o karibu, ou kuribu, é um gênio auxiliar dos grandes deuses e interccssor dos fiéis. No Templo, os querubins representavam, com a arca, o trono de Iahvé, como eles lhe servem de montaria em II Sm 22.11= SI 18.11, como eles puxam seu carro nas visões de Ez 1 e 10.

No Hekal se achavam o altar de incenso, chamado o altar de cedro em I Rs 6.20-21 e o altar de ouro em I Rs 7.48, a mesa dos pães da oblação e dez candelabros, I Rs 7.48-49. O altar dos sacrifícios não é mencionado, mas isto é uma simples omissão, pois ele é mencionado em seguida: este é o altar dc bronze, I Rs 8.64, que Salomão tinha levantado, I Rs 9.25. Ele era uma armação de metal que, de acordo com II Rs 16.14, ficava diante do Templo, do lado de fora, como será o altar do Templo de Herodes. Também havia no átrio, a sudeste do Templo, I Rs 7.39, o “Mar” de bronze, uma grande cuba sustentada por doze figuras de touros, I Rs 7.23-26. O melhor paralelo é a bacia de pedra que provém de Amathonte em Chipre; poderíamos compará-lo ao reservatório (?) chamado apsu em alguns templos mesopotâmicos. Havia dez bases rolantes com bacias de bronze, colocadas cinco à direita e cinco à esquerda da entrada, I Rs 7.27-39. Elas têm suas analogias nos objetos, muito menores, achados em Chipre e em Megido. Discutiremos mais adiante o simbolismo atribuído a esse material; devemos pensar primeiro em seu uso prático: [I Cr 4.6 diz que o Mar servia para a purificação dos sacerdotes, cf. Êx 30.18-21, as bacias, para lavar as vítimas.

e) Caráter — O Templo fazia parte de um conjunto que compreendia também o Palácio e suas dependências. Essa ligação entre templo e palácio se acha em outros lugares no Oriente e tem sido entendida de duas maneiras diferentes. No Egito, o templo ocupa mais espaço e o palácio que lhe é anexo não é a residência usual do faraó: ele serve somente quando o soberano vem visitar o deus e realizar as cerimônias do culto; este evidentemente não é o caso de Jerusalém. Na Síria e na Mesopotâmia, é o templo que é anexo do palácio, como uma capela onde o rei e seus oficiais fazem suas devoções. Tal é em particular o caso do templo de Tainat, que nós comparamos com o de Jerusalém.

É por isso que os exegetas consideraram muitas vezes o Templo de Salomão como uma capela palaciana, como o templo particular do rei e de sua casa. Ele está colado ao Palácio, que ocupa uma superfície maior, ele foi construído por Salomão, em um terreno comprado por Davi, com recursos do reino, equipado pelo rei e dedicado por ele. Seus sucessores também farão doações ao Templo, I Rs 15.15; II Rs 12.19, mas se servirão de seu tesouro como do tesouro do Palácio, I Rs 15.18; II Rs 12.19; 16.8; 18.15. Eles farão obras, reparações, modificações nos edifícios do Templo e em sua mobília, II Rs 15.35; 16.10-18; 18.16; 23.4s. Eles terão seu estrado erigido no átrio, II Rs 11.14; 16.18; 23.3.162 Por uma ordem de Joás, os funcionários reais supervisionarão a entrega e o uso das ofertas dos fiéis, II Rs 12.5-17; 22.3-7. Em resumo, o Templo de Jerusalém é exatamente como o de Betei, um “santuário régio”, Am 7.13.

Tudo isso é exato mas não significa que o Templo tenha sido simplesmente uma capela palaciana. As intervenções do rei se justificam pelo direito de patronato que ele exerce como fundador ou benfeitor e pelos privilégios que lhe valem seu caráter sacro e a função que lhe é reconhecida no culto.163 Mas este não é um santuário particular do rei, é, como Am 7.13o diz também do templo de Betei, um “templo do reino”, um santuário de Estado onde o rei e seu povo rendem um culto público ao Deus nacional. E o Templo de Jerusalém não assumiu esse caráter pouco a pouco, ele o teve desde sua fundação. Quando após a morte de Salomão, Jeroboão inaugurou o culto de Betei, isto foi explicitamente para impedir que seus súditos fossem ao Templo de Jerusalém, I Rs 12.26-33, foi para ter em seu reino um santuário para seu povo, como o de Jerusalém tinha sido para o Reino Unido, como ele devia continuar, em sua idéia, para o reino de Judá. Quando Davi levou a arca para Jerusalém, sua intenção não era confiscá-la para seu uso exclusivo e sim fazer dela o centro do culto das tribos, e quando ele pensou em edificar um templo, foi para que Iahvé tivesse uma “casa”, onde ele estivesse em sua casa, II Sm 7.1 -2. É essa “casa” que Salomão construiu e consagrou com “todo o Israel”, I Rs 8.1 -5,13, 62-66. A política certamente aí achava sua vantagem tanto quanto a religião; mas essa vizinhança, esse tipo de coabitação de Iahvé e do rei escolhido por ele para governar seu povo exprimia o ideal teocrático de Israel.

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——- Retirado de: Vaux – Instituições de Israel no Antigo Testamento.


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