A Religião dos Cananeus

Como mostram os mitos de Ugarite, a religião dos povos cananeus adotava uma forma grosseira e aviltante de ritual politeísta. Estava associada a uma sensual adoração da fertilidade, além de uma particular espécie de orgia e lascívia, tendo se mostrado mais influente que qualquer outra religião natural do Oriente Próximo. A principal divindade reconhecida pelos cananeus tinha o nome de El, a quem creditavam a liderança do panteão. Era uma figura um pouco obscura, adorada como “pai do homem” e “pai dos anos”. Uma esteia desenterrada em Ras Shamra mostra-o sentado num trono, com uma mão levantada em sinal de bênção, enquanto o governante de Ugarite lhe oferecia um presente. Sua consorte era Aserate, conselheira dos deuses e conhecida pelos israelitas como Aserá.

Seu filho era Baal, o deus da fertilidade, conhecido às vezes como Haddu (Hadade), deus da chuva e da tempestade. Ele sucedeu a El como rei do panteão cananeu e, segundo a mitologia, viveu nas elevadas regiões montanhosas nos céus remotos situados ao norte. Foi retratado numa esteia da antiga Ugarite desempenhando seu papel de rei da tempestade. Nela ele aparece de pé, segurando um cetro na mão direita erguida, com o desenho de um raio no seu lado esquerdo. Seus títulos incluíam o epíteto de Zabul (Senhor da terra) e Alyin (Aquele que prevalece), sendo que esse último é proeminente na literatura poética ugarítica. O tema do ciclo de Baal e Anat é sua luta contra Mot, a divindade do infortúnio que havia desafiado o reino de Baal (Texto 51:VII). Baal era descendente do reino do inferno de Mot e ali foi assassinado. Sua morte foi seguida por um ciclo de sete anos de absoluta escassez de alimentos, Anat, consorte de Baal, vingou-se matando Mot e sepultando o seu corpo na terra. Então, Alyin Baal se recuperou e seguiu-se um período de sete anos de prosperidade, que depois foi novamente seguido pelo ressurgimento de Mot.7 Esse ritual lembra muito o misterioso culto egípcio a Isis e Osíris, embora a natureza de Baal fosse interpretada de uma forma um pouco diferente pelos cananeus. Para eles, Baal era essencialmente um deus da fertilidade, embora não fosse indispensável nos rituais da fertilidade, e não parece ter sido uma divindade sazonal, como se pensou a princípio.

É importante entender que as opiniões críticas da escola de Wellhausen, relacionadas com a natureza evolucionista da religião dos cananeus, sofreram uma drástica modificação resultante de um cuidadoso estudo do épico de Baal e de outras literaturas ugaríticas. Não se deve mais acreditar que Baal fosse um espírito associado a qualquer localidade em particular e que desenvolvia as funções de uma divindade da vida vegetal. Nem deve o título de Baal ser entendido como um nome genérico cobrindo um exército de divindades locais, cada uma delas exercendo jurisdição sobre uma limitada extensão de território. Ao contrário, Baal deve receber agora o “status” de um “deus elevado”, uma divindade cósmica, reconhecida como chefe de um panteão, e adorado em várias comunidades sob seu próprio nome ou como Hadade, o rei da tempestade.

A depravada natureza da religião dos cananeus pode ser entendida através do caráter de Anat, a irmã-esposa de Baal, identificada por vários nomes nos rituais religiosos como Astarte, Aserá e Astarote. Um texto egípcio do período do Novo Reino descreveu Anat e Astarte como “as grandes deusas que concebem, mas não procriam”. Os cananeus, evidentemente, consideravam suas deusas da fertilidade como uma combinação de virgens com procriadoras da vida e mencionavam Anat, no seu papel de prostituta sagrada, como “qudshu”, ou “a santa”. De certa forma, este termo está relacionado com o termo bíblico para “santo”, mas é importante entender que, entre os povos semíticos, o conceito de “santidade” era aplicado a qualquer coisa que tivesse sido dedicada ao serviço de uma divindade. Como havia uma total ausência da conotação moral hebraica no uso contemporâneo dos semitas, não se pode falar que o termo “qudshu” tenha sido aplicado com um “sentido moral pervertido”, como diz Unger.9

Objetos religiosos, como os lírios (representando a atração sexual) e as serpentes (simbolizando a fertilidade) estavam associados à sensual religião de Anat e ornamentos recuperados em Ras Shamra retratam sua nudez e fecundidade. Foi escavado em Gebal (Biblos) um centro dedicado ao culto de Anat, um sítio muito importante da antiga Fenícia, que era notório pelos seus ritos da fertilidade e pela cerimônia da prostituição. Imagens de Astarte, feitas em terracota, foram recuperadas num grande número de lugares através da Palestina e representam, invariavelmente, uma mulher nua com características sexuais exageradas. Isso contrasta grandemente com a aparência das deusas egípcias do período do Novo Reino que estavam sempre decentemente vestidas.

Uma outra característica igualmente depravada do culto a Anat era a diabólica selvageria dessa complexa deusa. Um fragmento do Épico de Baal (11:7 e textos seguintes) mostra sua tolerância a um massacre tanto de jovens como de velhos:

Ela mata as pessoas do litoral
Destrói a humanidade ao nascer do sol…
Ela empilha as cabeças nas suas costas
Amarra mãos na sua trouxa…
Anat sacia seu fígado com gargalhadas
E seu coração está cheio de alegria.

Os textos egípcios representavam Astarte e Anat como deusas da violência e da guerra, elas eram representadas nuas, montadas num cavalo galopando, e brandindo armas de batalha.” Estavam associados ao culto de Aserá um grande número de objetos religiosos, ou símbolos onde, segundo criam, ela morava. Parece que os mais importantes deles eram os objetos de madeira, com a imagem da própria deusa, erguidos ao lado dos altares de incenso e dos pilares em forma de cone dos santuários cananeus. Qualquer que fosse a natureza do símbolo, era considerado com repugnância pelos fiéis israelitas e estava sujeito a ser derrubado e queimado. O nome hebraico “Aserá” é geralmente traduzido como “bosque” na versão King James em inglês, seguindo a tradição das versões grega e latina que relacionavam o objeto religioso ao lugar onde era cultuado.

Fica evidente, através dessa breve pesquisa da religião dos cananeus, que a sua natureza sórdida e degradante se colocava em marcante contraste com os elevados conceitos éticos de Israel. A absoluta falta de caráter moral dessas divindades transformava tais práticas corruptas — como o ritual da prostituição, o sacrifício de crianças e seu culto licencioso — numa expressão normal de devoção religiosa. Por conseguinte, não pode haver nenhuma acomodação entre a moralidade do Deus de Israel e a sensualidade depravada da religião dos cananeus. Os documentos em prosa, recuperados da antiga Ugarite, deram aos estudiosos, condição de construírem um quadro muito claro da vida social na Fenícia e em Canaã, em geral, durante o décimo quarto século a.C. O rei era o chefe da comunidade, organizada de acordo com aspectos teocráticos. Os sacerdotes desempenhavam um papel importante no controle da vida social e, acompanhando o costume da Mesopotâmia, também estendiam sua influência à esfera militar. Os comandantes dos exércitos eram convocados nas classes superiores de Ugarite e, como na aristocracia egípcia do período do Novo Reino, eles colocavam grande ênfase nas bigas como arma de guerra. Embora a organização tribal ainda pudesse ser encontrada com bastante frequência em Ugarite, ela estava sendo gradualmente substituída pelo conceito de uma comunidade urbana e provincial. As pessoas não eram mais consideradas como membros de tribos, mas reconhecidas como cidadãos de uma cidade ou província em particular. Surgiram corporações de artesãos que trabalhavam com várias artes e ofícios, demonstrando um avançado estágio de organização social.

A vida das antigas famílias cananitas era caracterizada pelos conceitos patriarcais de Mari e Nuzu. Um homem podia possuir uma ou mais esposas e os filhos recebiam seus direitos de herança em troca de uma satisfatória performance nos deveres domésticos. Assim como em toda parte, a escravidão era comum em Ugarite e os lares abastados empregavam grande número de servos e de servas que, segundo parece, gozavam de uma liberdade mais restrita que seus companheiros da Mesopotâmia. Num país onde era habitual o emprego de diferentes línguas, a educação estava limitada às classes superiores e as complexidades da leitura e da escrita eram geralmente deixadas por conta dos escribas especialmente treinados para essas tarefas. Por ser uma cidade portuária, Ugarite praticava um florescente comércio de cobre com Chipre, enquanto a descoberta de um machado de ferro, datado de aproximadamente 1400 a.C, mostrou que as relações comerciais com o império hitita, que na época monopolizava a manufatura e a exportação de ferro, estavam bem estabilizadas. Os comerciantes fenícios também eram muito conhecidos pelos faraós do vale do Nilo e desempenharam um importante papel na propagação da cultura minoana nas terras banhadas pelo mar Mediterrâneo.

——- Retirado de R. K. Harrison – Tempos do Antigo Testamento.


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