— Como acabei assim? — disse para si mesmo.
Havia se entregado às pressas àquela situação. O único refúgio o manteria a salvo, escondido dos opositores. O cubículo de quatro por três só era melhor que o risco de linchamento: uma cama estreita, um vaso sanitário, um pequeno lavatório. O suficiente, mas difícil de se acostumar depois de uma década de luxo.
Era ainda o segundo dia. A lâmpada no teto falhava, jogando sombras tortas nas paredes. Sentado na beirada do colchão fino, batia o pé no chão, tentando acompanhar o ritmo na cabeça, enquanto tentava ignorar o peso do silêncio.
Darian dos Santos, 42 anos. Que fim! Olhou para as mãos, calejadas não de segurar microfones, mas de brigas antigas. A barba rala escondia cicatrizes de quando ainda rimava nas esquinas de São Paulo, antes de se tornar Darian Black, a voz da revolta.
Dois meses antes, comandava multidões. Era respeitado, até temido. Duas décadas de uma carreira construída em versos afiados sobre a supremacia do seu povo. E agora, pego pela própria armadilha.
Quando ouviu o barulho no corredor, soube que o único que parecia se importar com ele estava voltando.
— Eu disse que viria todo dia, não disse?
Darian assentiu, mas a semana absurda deixara seu raciocínio lento, confuso.
— Você mora na quadra da minha antiga casa, não é? Delegado Silas, o negro armado que não gosta do meu discurso.
— Você é quem está dizendo. Está tudo bem por aqui?
— Tudo ótimo!
O tom irônico escondia o medo: das ruas, do futuro. Medo de não poder confiar em mais ninguém. Não depois que os grupos de gênero, furiosos com sua última faixa, “Orgulho na Pele”, pediram sua cabeça. A letra era dura, direta ao ponto, mas apenas dizia o que todos os grupos militantes já afirmavam de si mesmos: superioridade e exclusividade. Ele só não esperava que a reação fosse semelhante à dele mesmo contra os grupos “opressores”: cancelamento, marchas nas ruas, hashtags violentas e, por fim, um pedido da aplicação da lei mais radical que ele mesmo lutou para ser aprovada.
Lá fora, o Brasil se partia. Cidades viravam campos de batalha entre etnias, gêneros ou quaisquer outros grupos com um nome e uma bandeira. Aquilo tinha começado anos antes, com um rastilho de pólvora que ele mesmo ajudara a acender com versos raivosos e beats pesados. Sua voz ecoara em milhões de fones, conclamando seus, até então, iguais a se erguerem contra suas insatisfações sociais..
Foi nessa época, quando ainda usava o nome de batismo, que conheceu Elisa.
A batida agressiva reverberava pelo estádio lotado. Vinte mil pessoas pulavam em sincronia, como uma única fera urbana.
— Tô dizendo: é hora de revolução, não de conversa! — gritou; a multidão rugiu em resposta.
No fim do show, se aproximou de uma das dançarinas recém-contratadas, cujos movimentos pareciam desafiar a gravidade. Elisa era formada em Ciências Sociais, brilhante, cheia de ideias. Não concordava com tudo que ele dizia, mas acreditava na causa. Três meses depois, estava grávida, mas Darian não quis compromisso. A luta era sua vida. Sua família era a causa. Ele enviava dinheiro, mas nunca visitou Amara. “Nome bonito”, pensou, mas nunca disse isso a Elisa.
Os anos seguintes foram de ascensão. Cada álbum mais radical que o anterior. Os shows eram quase todo dia. Luzes excessivas, quase hipnóticas; a multidão num mar escuro entoando junto seu discurso; a manipulação da massa com tão pouco. Suas rimas cuspiam fogo com verdades incontestáveis sobre a força ancestral, a herança roubada, a necessidade de retomar o que era deles por direito.
Os outros? Ele os nomeou um por um em suas músicas. No início, alvos fáceis: racistas declarados, fascistas conservadores, religiosos capitalistas. Em resumo: brancos, héteros e cristãos — e sempre exigindo suas cabeças ao menor sinal de “discurso de ódio”. A Lei da Reparação foi aprovada. Depois a Lei do Discurso Consciente. Com o tempo, as críticas ficariam mais grupos, não sem revide.
Doze anos depois, Darian estava no auge. Palco lotado no Rio, 50 mil pessoas gritando seu nome. Ele segurava o microfone como uma arma, cuspindo rimas sobre a força do seu povo, sobre como ninguém podia tocar sua raça. A multidão vibrava, mas ele, num lapso de consciência, não via os rostos: só via o rosto de Amara, a filha que, do pai, só conheceu a pensão. E talvez já fosse tarde demais. Restava-lhe avançar sua agenda.
Um ano depois, um grupo de jovens ativistas do Distrito Negro, liderado por Darian, havia conseguido fazer avançar a pauta mais desejada: a Lei da Palavra, que criminalizava qualquer discurso contra minorias. O projeto de lei propunha pena única para tais casos: morte por injeção letal.
— O ódio mata, então quem propaga ódio deve pagar com a vida! — havia declarado no palanque, no dia da votação.
A multidão aplaudiu. Os legisladores curvaram-se. A lei passou.
Contudo, a partir daí, até as alianças mais óbvias começaram a rachar. O movimento negro questionava a primazia das questões de gênero. Os ambientalistas acusavam os indígenas de não protegerem adequadamente suas terras. Os grupos religiosos não-cristãos brigavam entre si por laicidade. Cada minoria queria sempre mais para si. A fragmentação foi inevitável.
Darian, em entrevista a um dos poucos canais não-estatais que restavam, defendeu:
— A hierarquia do sofrimento existe. Meu povo foi escravizado. Outros grupos sofreram, sim, mas não vamos relativizar a dor.
O comentário gerou protestos, mas, em outra entrevista, ele dobrou a aposta.
— Cada qual busque o seu. O trono é do gueto!
Aquela entrevista quadruplicou suas vendas e aquelas palavras ecoaram nas ruas. “O trono é do gueto” foi o mantra para toda uma geração cansada de esperar.
Vinte anos depois do show em que conheceu Elisa, a cidade estava irreconhecível. Muros altos separavam os distritos autônomos. Ao norte, o Distrito de Gênero, dominado por ativistas LGBTQ+. A oeste, o domínio dos Eco-Radicais, que viam a redução populacional como única solução. Ao sul, o território dos Supremacistas Negros, onde morava até então. E no centro, a Zona Neutra, terra de ninguém — onde os poucos não-militantes que restavam tentavam sobreviver sem se envolver na convulsão social.
O Conselho Global havia decretado: diversidade total com segregação voluntária. Cada grupo poderia viver de acordo com suas próprias regras, desde que não interferisse nos outros. Na prática, era guerra contida, prestes a explodir.
As coisas tiveram um rumo diferente para Darian depois que ele trabalhou em seu novo single. O beat era denso; a letra, violenta. “Orgulho na Pele” seria lançada em todas as plataformas à meia-noite.
— Vai causar — disse Kamal, seu produtor.
A canção falava abertamente sobre supremacia racial negra. Ia além da afirmação de orgulho, além da resistência. Declarava superioridade biológica, cultural, espiritual. Um movimento que já estava crescendo nas ruelas do Distrito Sul. Sua base de apoio.
“Orgulho na Pele” explodiu. Em quatro horas, o QR Code da faixa tornou-se a imagem mais comentada nas redes. Em doze, foi banida no Distrito de Gênero e no território dos Eco-Radicais. Em vinte e quatro, o mesmo Conselho que aprovou a Lei da Palavra decidiu que “Orgulho na Pele” constituía “discurso de ódio contra minorias” e emitiu um mandado de prisão contra Darian Black, com pronunciamentos citando “intolerância” e outros clichês. Quando soube, Darian deu um sorriso amargo ao se lembrar de como comemorou a conquista daquela lei. Fugiu de sua mansão minutos antes da chegada dos agentes.
A notícia se espalhava, enquanto ele movia-se pelas sombras da cidade. Contornou um grupo de patrulha do Distrito de Gênero: três pessoas com uniformes roxos e armas de choque. Vinte anos atrás, ele os teria chamado de aliados.
— Atenção a todos os cidadãos. Toque de recolher em dez minutos. Qualquer pessoa não autorizada será detida — a voz metálica dos alto-falantes ecoou pelas ruas.
Darian tocou o brinco. O beat se intensificou. Palavras começaram a se formar na sua mente. Outro rap nascendo — sempre vinha nos momentos de maior tensão.
— Documento de identificação — uma voz o surpreendeu.
Um posto de controle improvisado o pegou de surpresa dobrando a quadra; dois guardas do Distrito de Gênero.
— Não tenho — respondeu, calculando suas chances.
— Nome?
— Marcus. Marcus Wellington.
O guarda pegou um scanner. Darian sabia que sua maquiagem não venceria a tecnologia.
— Você parece familiar — disse o segundo guarda, uma mulher baixa de cabelos azuis.
— Tenho um rosto comum — respondeu Darian, dando um passo para trás.
O scanner apitou. Reconhecido.
— Darian Black? — o guarda levantou sua arma.
Darian já estava metros à frente, em disparada. Uma bala passou zunindo ao seu lado. Outra atingiu a parede à sua frente. Virou em um beco estreito, derrubando lixeiras para atrasar os perseguidores.
Depois de algumas quadras correndo e uma corrida longa chamada no aplicativo, encontrou o que procurava. O brinco em sua orelha continuava pulsando. A batida constante o acalmava, o distraía. Observou o prédio onde a filha morava com a mãe, Eliza. Um relacionamento breve, dezessete anos atrás. Darian nunca quis ser pai, nunca quis compromissos. A “luta” era sua vida — e agora, queria matá-lo.
Esperou até o anoitecer. Viu quando Eliza saiu do prédio; Amara deveria estar sozinha. Subiu pelas escadas de emergência, evitando as câmeras.
Chegou ao apartamento 704. Bateu. Ouviu passos aproximando-se.
— Quem é? — a voz de Amara soou do outro lado.
— Sou eu, Amara. Darian.
Silêncio. Então a porta foi se abrindo. Amara o encarou com aqueles olhos, idênticos aos seus. Olhos que transbordavam raiva.
— O que você quer? Sabia que estão te procurando?
— Posso entrar?
Amara hesitou. Depois deu um passo para o lado.
O apartamento era pequeno, mas confortável. Darian observou fotos na parede. Amara crescendo. Momentos que ele nunca presenciou.
— Eles vão me matar, Amara.
— Eu sei. Está em todos os noticiários. Está satisfeito?
— Você acha que mereço morrer?
Amara desviou o olhar.
— Você passou duas décadas argumentando que pessoas como você merecem.
— Não entendo.
— Não? — Amara cruzou os braços. — Pessoas diferentes. Pessoas que não se encaixam na sua visão perfeita do mundo. Você ajudou a criar essas leis.
Darian sentiu o peso das palavras. Tocou o brinco. O beat mudou. Mais rápido, mais intenso.
— Preciso deixar algo com você. Para quando eu não estiver mais aqui.
— Não quero nada seu.
— Não é isso. É… uma mensagem. Para quando eu não estiver mais aqui.
Amara o encarou por um longo momento.
— Por que agora? Depois de dezessete anos?
— Perspectiva. Agora eu sei que vou morrer.
Eles ouviram sirenes.
— Você já tem que ir. Talvez ainda dê tempo.
— Não sei. Se eu for reconhecido por alguém na rua, eu já era.
A despedida não foi boa, apenas melhor do que merecia.
*****
O quinto dia no cubículo trouxe algum alívio. O único em quem passara a confiar voltava mais uma vez.
— Te acompanho desde o início, sabia? Ouvi todas as suas músicas.
— Mais um fã decepcionado?
— Não exatamente — ele colocou algo na mesa. — Trouxe seu brinco de volta. Achei que poderia querer.
Darian olhou para o pequeno objeto prateado com desconfiança.
— Isso é permitido?
— Todo condenado tem direito a um último pedido. Imaginei que você gostaria de ter sua música de volta.
— Eu pedi papel e caneta, e já recebi.
Darian pegou o brinco, sentindo o peso familiar do metal.
— Não faz diferença agora.
— Sempre faz diferença.
Silas se aproximou, baixando a voz.
— Vi sua filha. Ela está bem.
A menção de Amara fez algo dentro de Darian se contorcer.
— Como você a conhece?
— Você a visitou antes de ser preso. E São Paulo é menor do que parece.
— Por que você se importa?
Silas se dirigiu à porta.
— Digamos que é a minha missão — respondeu. — E amanhã eu não venho, tudo bem? Adeus, amigo.
E saiu, deixando Darian com um nó na garganta.
O brinco mantinha seus beats, mas trazia algo mais. Darian arrancou o brinco da orelha e jogou o aparelho contra a parede. Isso é uma piada? Mas o silêncio da cela pareceu mais pesado depois. A raiva inicial deu lugar a uma curiosidade irritante e Darian passou os dias seguintes ouvindo as histórias que lá estavam. Contra sua vontade, elas começaram a fazer sentido. Falavam de perdão, de recomeços, de um pai que espera o filho mesmo depois de tudo.
Ele pegou um caderno amassado e uma caneta sem tampa. Escreveu uma linha, riscou, escreveu outra. Era difícil sem o beat familiar, mas ele precisava colocar para fora.
Começou a compor. “Amara, você não entende…”. Riscou. “Sua mãe nunca lhe ensinou…”. Riscou de novo, com força, quase rasgando o papel. As palavras vinham, mas eram as antigas: raiva, acusação, autojustificação. “O sangue não mente, mas você escolheu a lama…”. Amassou o papel. Jogou-o no canto. Era inútil; a ponte entre eles estava destruída e ele não sabia como reconstruí-la.
À noite, ele sonhou. Não era um sonho comum. Ele estava na cela, mas a cela era maior, o teto sumia no escuro. Um homem estava lá, alto, rosto que ele não conseguia ver direito, mas que brilhava como se tivesse luz própria. O homem não falava, só olhava. Darian sentiu um aperto no peito, com todas as suas escolhas pesando de uma vez.
Acordou suando. O brinco ainda tocava aquela voz. Era o sexto dia.
Esperou Silas voltar no outro dia, mas em vão. Aproveitou para compor uma última vez.
Uma semana depois, um vídeo começaria a circular nas redes subterrâneas. Um rap diferente de tudo que Darian Black já havia feito. Não falava de supremacia. Falava de arrependimento e de esperança.
Amara assistiu ao vídeo inteiro; lágrimas escorreram pelo rosto. Havia um homem ali que ela nunca conheceu realmente. Um homem que, talvez, pudesse ter sido seu pai.
Mas isso foi depois.
Na manhã do sétimo dia, Darian acordou ouvindo passos no corredor. Sabia o que aquilo significava.
Colocou o brinco na orelha uma última vez. Quando os guardas entraram na cela, ele estava sereno.
— Está na hora, Black — disse Elias, o guarda habitual.
Sete dias antes, o julgamento tinha sido rápido, como todos naquela nova era. Darian observou o Conselho de Gênero. Sete pessoas: um transexual, uma obesa mórbida, três gays, duas feministas — olhares severos. Acusação: crime de pensamento contra minorias. Evidência: seu último rap. Veredito: culpado.
— Cadê o Silas? — perguntou Darian.
Elias franziu a testa.
— Que Silas? Não tem nenhum Silas trabalhando aqui.
— Como não? O delegado que me trouxe pra cá. Me interrogou no primeiro dia depois da sentença. Foi ele que me pegou no Distrito de Gênero.
— Tá doido, amigo? Foi o delegado Santos que cuidou do seu caso. Gordão, careca. Mas ninguém te trouxe, você se entregou por medo das ameaças. Não se lembra? E desde a sentença, ninguém te interrogou também. Não é assim que funciona; nem faria sentido.
Darian sentiu um calafrio percorrer a espinha.
— Impossível. Eu conversei com ele bem aqui. O cara negro, alto, que trouxe meu brinco há uns dias.
— Escuta, Black. Estou de plantão há uma semana direto. Ninguém entra nessa ala sem eu saber. E não tem nenhum delegado Silas na delegacia do setor.
Elias coçou a cabeça constrangido. Darian emudeceu e deu lugar ao som que vinha do brinco na sua orelha, que continuava tocando as mesmas histórias sobre sementes e solos; sobre um filho que voltava para casa.
— E então? Vamos?
Darian assentiu.
— Posso manter meu brinco?
O guarda hesitou. Depois deu de ombros.
— Que diferença faz agora?
Darian mudou para o beat e se levantou. O corredor era longo. Ele caminhou em silêncio, com as palavras do seu último rap ecoando em sua mente.
“Cresci acreditando que o ódio era a resposta Que meu povo só seria livre se os outros fossem presos Agora vejo que não existe liberdade no ódio Só correntes que nos amarram a mais ódio. Amara, minha filha, não siga meus passos Não deixe que te ensinem a odiar Porque no fim, o ódio sempre retorna Como um eco que nunca se apaga.” “Chegou a hora, o círculo se fecha O ódio que plantei, agora colho Mas nas últimas horas, entendi Que o amor era a resposta o tempo todo.”
A escuridão veio tranquila, silenciosa. O beat cessou.