Canaã – Antes da Ocupação

Chegara o dia há muito esperado. Tendo morrido Moisés, Josué foi comissionado a conduzir a nação de Israel na conquista da Palestina. Séculos se tinham passado desde que aos patriarcas fora prometido que seus descendentes herdariam a terra de Canaã. Nesse ínterim, cada geração sucessiva das populações da Palestina fora influenciada por vários povos provenientes do Crescente Fértil. Motivados por interesses econômicos e militares, eles atravessavam a terra de Canaã de quando em vez.

Memórias de Canaã

No ápice dos sucessos militares, a poderosa Décima Segunda Dinastia (2000 – 1780 a. C.) rapidamente impusera o controle egípcio à Palestina, até ao norte quanto o rio Eufrates. Nas décadas seguintes, porém, o Egito não só foi declinando em poder, mas também foi ocupado pelos poderosos hicsos, que governavam aos egípcios em Avaris, no delta do Nilo. Pouco antes de 1550a. C., todavia, chegou ao fim nas terras do Nilo a predominância dos hicsos. O reino hitita tivera seus primórdios na Ásia Menor, desde o século XIX a. C. Chamados “ filhos de Hete” no Antigo Testamento, os hititas são frequentemente mencionados como ocupantes da terra de Canaã. Por volta de 1600 a. C. seu poder aumentara de tal modo na Ásia Menor que ampliaram seu domínio engolfando a Síria e chegando mesmo a destruir Babilônia, às margens do Eufrates, em cerca de 1550 a. C. Mas no século seguinte a expansão hitita foi refreada pelo surgimento de dois reinos.

Mais ou menos na época em que o povo hicso invadia o Egito e em que a Babilônia florescia sob a Primeira Dinastia, melhor exemplificada por Hamurabi, emergia o novo reino de Mitani, nos platôs da Média. Esse povo indo-iraniano se compunha de dois grupos: a classe comum, denominada hurrianos, e a nobreza, ou classe dominante, intitulada arianos. Tendo vindo do território a leste de Harã, esse povo mitani foi ampliando constantemente o seu reino para o ocidente, de tal modo que, em cerca de 1500 a. C., haviam chegado às margens do mar Mediterrâneo. O principal esporte do povo ariano eram as corridas de cavalos, Tratados escritos sobre o tema da criação e treinamento de cavalos foram descobertos neste século, em Bogazcói, onde haviam sido preservados pelos hititas que tinham dominado o povo mitani. Por volta de 1500 a. C., o poder mitani fez estacar o avanço dos hititas durante cerca de um século.

Os egípcios com freqüência faziam seus exércitos marcharem através de Canaã, a fim de desafiarem o poder mitani. Tutmés III lançou dezessete ou dezoito campanhas contra as regiões da Síria e mais além. Durante as primeiras tentativas de conquista na Ásia uma confederação síria, apoiada pelo rei de Cades (localizada às margens do rio Orontes), ofereceu resistência ao avanço egípcio. Mui provavelmente as terras da Síria — um país com cidades prósperas, planícies férteis, grandes riquezas minerais e outros recursos naturais, além dé contar com vitais rotas comerciais que vinculavam entre si os florescentes vales do Nilo e do Eufrates — tinham estado sob a hegemonia mitani. Após a derrota dos sírios em Megido, o controle egípcio se estendeu até à Síria. Por breve período os mitanis pareceram fomentar Cades como estado tampão, mas eventualmente Tutmés III fez seus exércitos marcharem até o lado oposto do rio Eufrates, pondo fim temporário ao domínio mitani sobre a Síria. Quando faleceu Tutmés, virtualmente a Síria inteira estava sob o domínio egípcio. Prosseguiu o atrito entre os poderes egípcio e mitani, durante os reinados de AmenotepelI (1450-1425 a. C.) e TutmésIV (1425 -1417 a. C.), de tal modo que a Síria vacilava em sua lealdade. Embora Sausatar, rei de Mitani, houvesse ampliado os seus domínios para oeste até Assur, e daí para além do rio Tigre, seu filho, Artatama, parece ter sido sujeitado a pressões exercidas pelo poder dos hititas. Essa ameaça pode ter levado Artatama I a firmar um acordo de paz com Tutmés IV. Sob as condições desse esquema, princesas mitanis se casaram com Faraós durante três reinados sucessivos. Por esse tempo, Damasco estava sob administração egípcia. As cartas de Amarna (cerca de 1400 a. C.) refletem as condições da Síria, indicando que havia relações diplomáticas e fraternais entre as famílias reais de Mitani e do Egito.

O poder hitita não demorou a crescer e a desafiar esse controle mitani-egípcio do Crescente Fértil. Sob o rei Supiluliumas (cerca de 1380 – 1346 a. C.) os hititas cruzaram o Eufrates até Vasucani, reduzindo Mitani a um estado tampão, entre o reino hitita e o crescente império assírio do vale do Tigre. Isso, naturalmente, eliminou Mitani como um fator político na Palestina. Apesar do reino mitani haver sido completamente absorvido pelos assírios (cerca de 1250 a. C.), os hurrianos, conhecidos como horeus no Antigo Testamento, continuavam em Canaã quando os israelitas ali entraram. Talvez os heveus fossem igualmente de origem mitani. Com a eliminação da ameaça mitani os hititas lançaram vistas para o sul. Por cerca de um século os hititas, desde sua capital, em Bogazcói, e os egípcios competiram pelo controle da vacilante fronteira da Síria. Durante esse período Cades se tornou centro de um revivido reino amorreu. Mui provavelmente esse reino adotou uma política de expediente, mantendo relações de amizade com as potências mais fortes.

Quando Ramsés II (1304 – 1237 a. C.) subiu ao trono, os egípcios renovaram seus esforços para expulsar os hititas do norte da Palestina, a fim de recuperarem suas possessões asiáticas. Mutvatalis, o rei hitita, estava firmemente entrincheirado na cidade de Cades, apoiado por exércitos de cidades sírias, como também por Carquemis, Ugarite e outras cidades dessa área. Ramsés expandiu suas fronteiras até Beirute, às expensas dos fenícios, e então marchou subindo pelo rio Orontes, até Cades, defrontando-se com um inimigo que combateu contra os egípcios numa guerra de quase duas décadas. Essa batalha de Cades, que se feriu em 1286 a. C., esteve longe de ser decisiva para as forças egípcias. Após numerosas outras conquistas de cidades em Canaã e na Síria, Ramsés II e Hatusil, monarca hitita, firmaram um tratado, em 1280 a. C. — um notável pacto de não-agressão que há nas páginas da história. Cópias dessa famosa concordata têm sido encontradas na Babilônia, em Bogazcói e no Egito. Embora o tratado não mencionasse quaisquer fronteiras reais, mui provavelmente o estado amorreu formasse a influência neutralizadora entre os egípcios e os hititas.

Nos dias de Merneptá certos invasores vindos do norte, conhecidos como arianos, destruíram o império hitita e enfraqueceram os amorreus, destruindo Cades e outras cidades fortificadas. Embora o reino hitita se tenha desintegrado, os hititas são frequentemente mencionados no Antigo Testamento. Ramsés III expeliu esses invasores vindos do norte em uma grande batalha terrestre e marítima, e uma vez mais unificou a Palestina sob o controle egípcio. Depois de Ramsés III foi declinando o poder egípcio, o que permitiu a infiltração dos arameus na área da Síria, a qual se tornou poderosa nação cerca de dois séculos mais tarde.

O povo de Canaã não foi organizado em fortes unidades políticas. Fatores geográficos, tanto quanto a pressão de nações circunvizinhas, no Crescente Fértil, que se utilizavam de Canaã como território tampão, explicam o fato de que os cananeus jamais formaram um império forte e integrado. Numerosas cidades – estados controlavam tanto território quanto possível, com a cidade bem fortificada de forma a resistir a possíveis ataques inimigos. Quando Canaã era atravessada por exércitos, essas cidades com frequência evitavam ser atacadas mediante o pagamento de um tributo. Entretanto, quando algum povo vinha ocupar a terra, como Israel fez sob Josué, essas cidades-estados formavam ligas e se uniam para resistir ao invasor. Isso é bem ilustrado no livro de Josué.

A localização da Palestina dentro do Crescente Fértil, e a configuração geográfica da própria terra, com frequência afetou seus desenvolvimentos culturais e políticos. Na planície aluvial dos rios Tigre e Eufrates, bem como no vale do Nilo, numerosas cidades-estados vassalas e pequenos principados ou distritos por mais de uma vez se uniram, formando uma só grande nação. Isso não era facilmente realizado na Síria-Palestina, porquanto a topografia não se moldava a tais amálgamas. Em resultado disso, Canaã se achava em condição mais débil, já que nenhuma das cidades-estados se equiparava em forças às tropas invasoras que vinham de reinos mais poderosos ao longo do Nilo ou do Eufrates. Ao mesmo tempo, Canaã era um prêmio cobiçado por essas nações mais fortes. Estando localizada entre os dois grandes centros da civilização, Canaã, com seus vales férteis, por muitas vezes esteve sujeita a invasões de potências maiores. Reinos minúsculos, sem forças suficientes para resistir a forças invasoras, achavam ser expediente humilharem-se momentaneamente, pagando tributo a algum reino, como o Egito. Contudo, com frequência, quando o invasor se retirava, os “ presentes” eram interrompidos. Embora essas cidades-estados pudessem ser facilmente conquistadas, era difícil para os vitoriosos conservarem-nas como possessões permanentes.

A religião de Canaã era politeísta. El era reputado como principal divindade cananeia. Simbolizado como um touro entre um rebanho de vacas, o povo se referia a ele como “ pai touro” , considerando-o criador. Asera era a esposa de El. Nos dias de Elias, Jezabel patrocinava a quatrocentos profetas de Asera (veja 1 Rs 18:19). O rei Manassés erigiu a imagem dela no templo de Jerusalém (veja 2 Rs 21:7). O primeiro dentre os setenta deuses e deusas que eram tidos como prole de El e Asera era Hadade, mais comumente conhecido pelo nome de Baal, que quer dizer “ Senhor” . Como monarca reinante dos deuses, ele controlaria os céus e a terra. Por ser deus da chuva e da tempestade, ele era o responsável pela vegetação e pela fertilidade. Anate, a deusa amante da guerra, era sua irmã e consorte. No século IX a. C., Astarte, deusa da estrela vespertina, era adorada como sua esposa. Mote, deus da morte, era o principal adversário de Baal. Iom, deus do mar, foi derrotado por Baal. Esses e muitos outros deuses são os primeiros a figurar no catálogo do panteão cananeu. Visto que as divindades dos cananeus não teriam caráter moral, não é de surpreender que a moralidade daquele povo fosse extremamente baixa. A brutalidade e imoralidade que se destacam nas narrativas sobre esses deuses é algo muito pior que qualquer outra coisa vista no Oriente Próximo. E, posto que isso se refletia na sociedade cananeia, os cananeus, nos dias de Josué, praticavam sacrifícios de crianças, a prostituição sagrada e adoração à serpente com seus ritos e cerimônias religiosos. Naturalmente, a civilização deles se degenerou debaixo dessa influência desmoralizadora.

As Escrituras testificam sobre essa sórdida condição, mediante numerosas proibições que foram dadas como advertências aos israelitas.2Essa degradante influência religiosa já se evidenciava nos dias de Abraão (veja Gn 15:16 e 19:5). Séculos mais tarde, Moisés encarregou solenemente o seu povo de destruir os cananeus — não somente para puni-los por causa de sua iniquidade, mas também para impedir a contaminação do povo escolhido por Deus (veja Lv 18:24- 28; 20:33; Dt 12:31 e 20:17,18).

Era de Conquistas

A experiência e o treinamento haviam preparado Josué para a exaustiva tarefa de conquistar Canaã. Em Refidim, ele dirigiu o exército israelita na derrota imposta a Amaleque (veja Êx 17:8-16). Tendo sido espia, ele obtivera conhecimento em primeira mão sobre as condições vigentes na Palestina (veja Nm 13-14). Sob a tutela de Moisés, Josué foi treinado para a liderança, tendo sido preparado para dirigir a conquista e a ocupação da terra prometida.

Tal como no caso da narrativa sobre as peregrinações no deserto, o registro das atividades de Josué é incompleto. Não se faz qualquer menção à conquista da área de Siquém, entre o monte Ebal e o monte Gerizim, mas foi ali que Josué reuniu o povo inteiro de Israel para ouvir a leitura da lei de Moisés (veja Js 8:30- -35). Mui provavelmente, muitas outras áreas locais foram conquistadas e ocupadas, embora isso não seja aludido no livro de Josué. Durante o período da vida de Josué a terra de Canaã foi tomada pelos israelitas, mas de modo algum foram expulsos todos os seus habitantes. Dessa maneira, o livro de Josué precisava ser considerado como relato apenas parcial dos empreendimentos de Josué. Esse livro se presta para as seguintes subdivisões:

O período de tempo determinado para a conquista e a divisão da terra de Canaã não é declarado. Supondo-se que Josué fosse da idade de Calebe, os eventos registrados no livro de Josué ocorreram durante um período de vinte e cinco a trinta anos.

Entrada em Canaã

Quando Josué assumiu a liderança de Israel, foi-lhe garantido todo o apoio das forças armadas dos rubenitas, gaditas e da meia tribo de Manassés, que se tinham estabelecido a leste do Jordão, na herança que lhes foi aquinhoada antes do falecimento de Moisés. Parece bastante razoável supor que o compromisso de apoio, em Js 1:16-18, tenha sido a reação favorável da nação inteira de Israel, quando Josué expediu ordens para que os israelitas se preparassem para a travessia do Jordão. Dois espias foram então enviados a Jericó, a fim de espionarem a terra. Por meio de Raabe, que abrigara os espias, ficou-se sabendo que os habitantes de Canaã tinham consciência do Deus de Israel, o qual fazia intervenções sobrenaturais em prol de Israel. Depois de terem escapado por pouco, os dois homens regressaram, assegurando a Josué e a Israel de que o Senhor preparara o caminho com antecedência para a conquista vitoriosa (veja Js 2:1-24).

Como confirmação visível da promessa de que Deus estaria com Josué, tal como estivera como Moisés, e como certeza adicional da vitória na Palestina, Deus proveu a travessia miraculosa do rio Jordão. Isso constituiu base razoável para que cada israelita exercesse fé em Deus (veja Js 3:7-13). Enquanto os sacerdotes, que transportavam a arca, lideravam o caminho e se postavam no meio do leito do Jordão, os israelitas passaram para o outro lado em terra seca. Como foram barradas as águas, para tornar possível tal passagem, não aparece no registro. Entretanto, certos fatos ali declarados são significativos para nossa consideração. O local da travessia é identificado como “ defronte de Jerico” , o que seria, aproximadamente, oito quilômetros ao norte do mar Morto. As águas foram interrompidas ou cortadas em Adã, que atualmente é identificada com ed Damieh, localizada a 32 km do mar Morto, ou seja, cerca de 24 km de distância de onde Israel realmente fez a travessia.4 O Jordão percorre um curso de 320 km, na distância de 96 km que medeia entre o mar da Galileia e o mar Morto, descendo nesse percurso 180 m. Em Adã, há penhascos de pedra calcária ladeando as margens da corrente. Tão recentemente quanto o ano de 1927, parte de um penhasco, com 45 m de altura, caiu no Jordão, bloqueando as águas durante vinte e uma horas e meia. Sem importar se Deus causou isso para que Israel passasse, quer tenha feito outra coisa, não é esclarecido. Mas, visto que Deus empregou meios naturais para cumprir Sua Vontade noutras ocasiões (veja Êx 14:21), há a possibilidade de que um terremoto possa ter sido o meio usado para causar obstrução naquela ocasião.

Também se providenciou para que Israel não se olvidasse desse grande evento. Dois memoriais foram erigidos com essa finalidade. Sob a supervisão de Josué, doze pedras foram empilhadas para assinalar o local onde estiveram os sacerdotes de pé, com a arca da aliança, no meio do rio Jordão, enquanto a multidão de Israel atravessa o rio (veja Js 4:9). Em Gilgal foi erguido um novo marco de pedras (veja Js 4:3,8,20). Doze homens, representando as tribos de Israel transportaram doze pedras para Gilgal, para formação desse memorial, o qual relembraria às gerações vindouras a provisão miraculosa que se fizera em favor dos israelitas para que cruzassem o rio Jordão. Desse modo, os poderosos atos de Deus haveriam de ser relembrados entre os israelitas nos anos por vir.

——- Retirado de Samuel J. Schultz – A Historia de Israel no Antigo Testamento.

Leia a continuação: A Conquista de Canaã.


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