Quem foram os Cananeus?

O termo “cananeu” é usado de modo geral para referir-se ao povo que habitava a costa oriental do Mediterrâneo. Seu território estendia-se desde o deserto, ao sul, até a área da Mesopotamia, ao norte.

Assim como “Canaã” designava toda a área da Palestina ocidental, o termo “cananeu” servia para descrever seus habitantes pré-israelitas, sem especificar a raça. Dos povos que viviam na Palestina, os primeiros a aparecer no 2º milênio a.C., como imigrantes da Mesopotâmia, foram os amorreus. Várias referências do Antigo Testamento parecem equiparar o território amorreu com a terra de Canaã (Gn 12:5, 6; 15:18-21; 48:22), uma tradição que se reflete nas tabuinhas de Alalakh do século 18 a.C., que retratam “Amurru” como parte da Síria Palestina. O fato de os dois povos (amorreus e cananeus) serem mencionados juntos no tempo de Moisés e em toda a Idade do Bronze (c. 1550-1200 a.C.) é compreensível, se levarmos em conta que o reino de Amurru, na região do Líbano, monopolizava todo o comércio costeiro, segundo os textos de Tell el Amarna (séculos 14 e 13 a.C.). A conquista israelita da Palestina quebrou o poderio de muitas cidades-estados cananeias e amorreias, embora o surgimento de uma confederação filisteia na costa sul da Palestina tenha reduzido ainda mais a extensão do território especificamente cananeu (adaptado de W. E. Elwell e B. J. Beitzel, (1988) Baker Encyclopedia of the Bible [Grand Rapids, MI: Baker Book House, 1988], p. 406).

A população cananeia não era homogênea. Os historiadores dizem que os cananeus originais sofreram grande influência da cultura das nações circunvizinhas. A influência egípcia parece ter sido dominante. Entretanto, o fato de que grande parte da literatura cananeia foi escrita em caracteres cuneiformes mostra forte influência da Mesopotamia. Algumas influências hurrianas e hititas são também evidentes.

Os povos do Mediterrâneo também se envolveram na vida e na cultura de Canaã. Depois, vários povos (filisteus, hebreus, mesopotâmicos, amoritas) também entraram nessa área. Descendentes dos semitas que vieram dos estepes do norte da Arábia também se apossaram de partes da terra de Canaã. A vida e a cultura cananeias foram mantidas principalmente pelos fenícios, que se estabeleceram no centro da área costeira. Assim, após 1200 a.C., “cananeu” e “fenício” tomaram-se sinônimos.

Muito tem sido escrito sobre os cananeus como a via através da qual conceitos religiosos, ritos e o estilo de vida dos mesopotâmicos, bem como dos egípcios e hititas, foram transmitidos a Israel. Deve ser seriamente questionado, entretanto, se é verdade que o panteão cananeu, bem como os rituais que os cananeus desenvolveram em seu culto, foram tão extensamente influenciados por forças externas quanto alguns eruditos afirmam.

John Gray nota: “As deidades (cananeias), a despeito de sua aparência egípcia e das inscrições hieroglíficas, são as figuras familiares do culto cananeu da fertilidade…”. Gray vai adiante e estabelece uma identificação desses deuses cananeus, sobre os quais C. F. Pfeiffer nos apresenta um bom sumário.

Nos textos cananeus, alguns deuses têm nomes que são usados também por outras nações para identificar seus deuses. Como, porém, Cyrus Gordon demonstrou, os exemplos não são assim tão frequentes. O fato é que os deuses cananeus são considerados sem paralelo.

O relacionamento entre os reis e os deuses era considerado o que existe entre a descendência e a sua fonte. Os reis reinantes tinham de esperar sua descendência dos deuses. Os reis recém-nascidos eram amamentados pelas deusas Athirat e Anat e assim recebiam suas qualificações sobrenaturais para reinar.

É evidente que há paralelos entre o material cananeu e o bíblico. Também foi demonstrado, corretamente, que os reis funcionavam num papel sacerdotal em certas circunstâncias. Entretanto, os ritos eram de tal maneira que o caráter bruto, crasso e degenerado da religião cananita, especialmente de seu culto pervasivo da fertilidade, é bastante óbvio. Alguns eruditos têm observado que os rituais cananeus eram mais lascivos do que os da Mesopotamia. Daí, não é difícil perceber por que razão o Velho Testamento fala tão fortemente contra a religião cananita.

Não há nenhuma referência a um messias por vir que seja o eterno Deus-homem e que como alguém que é divinamente justo, é o grande libertador da servidão física e espiritual. Os cananeus falam de “reis-deuses”, mas não conhecem um prometido Deus-homem encarnado.

Agora, vamos às questões polêmicas. Preste atenção à exegese da passagem de Gênesis 28:

A cena do templo em Betel, em Gênesis 28, é um exemplo. O narrador usa essa história para levar o leitor a entender a finalidade de um templo. O ambiente da cena é crucial: em um “certo lugar”, Jacó usa uma rocha como travesseiro, pois a noite está se aproximando rapidamente, ou seja, trata-se de um lugar insignificante, estéril, nada promissor. Mas o que parece ser um lugar insignificante se torna o ponto de ligação entre o céu e a terra, no sonho de Jacó. No sonho, os olhos de Jacó estão abertos, e ele vê anjos subindo e descendo por uma escada. Ao acordar, Jacó conclui: “Realmente, Eu Sou está neste lugar, e eu não sabia”. Então exclama: “Como este lugar é terrível!”. A mensagem: aos olhos do mundo, o templo de Deus pode parecer um lugar insignificante, mas os olhos da fé o veem exatamente como é: o ponto de ligação entre o céu e a terra. A anacronia, porém, ocorre no versículo 19: “[Jacó] chamou àquele lugar Betei; antes, porém, o nome da cidade era Luz”. Aquilo que no começo da narrativa fora chamado “certo lugar” é, no final, identificado com a importante cidade cananeia de Luz. Essa anacronia expressa uma mensagem correlata: um lugar não pode se tornar importante para os parceiros da aliança até que perca sua importância “cananeia” (i.e., mundana) e se torne um lugar insignificante em que Deus possa manifestar sua glória. Fokkelman escreve: Com a teofania, a Luz cananeia foi exposta, esvaziada, posta na condição nula de “um lugar”. Deus não deseja aparecer a Jacó em uma cidade cananeia, e sim em um nada que somente sua aparição transformará em algo, mas um algo que é nada menos que a Casa de Deus. No momento em que a história da aliança entre YHW H e seu povo tem início, todas as coisas precedentes deixam de ter valor. Canaã perde o prestígio e Luz já não tem sua cédula de identidade. (Bruce Waltke – Teologia do Antigo Testamento, p. 142).

Por que Deus ordenou total destruição das nações cananeias?

Porém, das cidades destas nações que o Senhor, teu Deus, te dá em herança, não deixarás com vida tudo o que tem fôlego. Antes, como te ordenou o Senhor, teu Deus, destrui-las-ás totalmente: os heteus, os amorreus, os cananeus, os ferezeus, os heveus e os jebuseus (Dt 20:16, 17).

Várias são as questões levantadas a respeito da destruição das nações por Israel durante a conquista. A primeira questão é de natureza ética: Por que Deus instrui os israelitas a destruírem homens, mulheres e crianças, bem como o gado e tudo quanto respirava? A segunda questão tem que ver com o caráter de Deus: Como é que essa ação se relaciona com um Deus amoroso que percebe quando um pardal cai e que enviou Seu Filho para morrer por toda a humanidade? Será que o Deus do Antigo Testamento é um Deus de vingança, enquanto o Deus do Novo Testamento é um Deus de amor e de graça? Por último, por que Deus usou Israel para infligir essas ações contra os cananeus?

Amor e justiça divinos – Ao examinarmos essas passagens, é possível fazer várias observações gerais em ordem de importância. Em primeiro lugar, não se pode compreender o princípio divino do amor dissociado da justiça. Não existe amor sem justiça. Um Deus que não é justo não se torna melhor que os deuses caprichosos fabricados pelos homens das nações circunvizinhas. Em segundo lugar, em Sua onipotência Deus entende os motivos do coração. Embora Ele seja longânimo com a humanidade, chega um momento em que a justiça deve prevalecer e o pecado, ser erradicado. Um ato de justiça divina como esse ocorreu no dilúvio (Gn 6–9) e há de ocorrer novamente no fim do tempo, quando os ímpios serão destruídos (Ap 21–22). Em ambos os casos, Deus, em Seu amor e justiça, erradica o mal para que a humanidade possa viver em paz e com Criador.

Um tempo de prova – As instruções sobre como guerrear encontradas em Deuteronômio 20 constituem as orientações divinas dadas a Israel no momento em que estavam prestes a entrar na terra prometida. Esses ensinamentos devem ser compreendidos dentro do contexto histórico mais amplo dos cananeus.

Por mais de 200 anos, desde o tempo em que Abraão deixou Harã até Jacó entrar no Egito, os patriarcas e suas famílias foram testemunhas de Deus entre os cananeus, mas os habitantes de Canaã se recusaram a aceitar o Deus de Abraão, Isaque e Jacó. Sendo assim, a destruição dos cananeus é a consequência da escolha deles em rejeitar a Deus, e sua decadência para “todo o mal” é o resultado inerente que decorre de uma vida alienada de Deus. Fora previsto por meio de Abraão que seus descendentes seriam exilados e oprimidos por quatrocentos anos antes de Deus os retirar do Egito. Gênesis 15:13-16 explica a razão para o atraso: “porque não se encheu ainda a medida da iniquidade dos amorreus [cananeus].” Outras traduções dizem: “porque a medida da injustiça dos amorreus não está ainda cheia” (ARC). Em outras palavras, Deus esperou por séculos até que a maldade dos cananeus ultrapassasse os limites e os tornasse merecedores de destruição. Por fim, a justiça de Deus exigiu que a consequência das escolhas deles resultasse em autodestruição. A destruição das nações em Canaã não foi um ato precipitado de vingança; foi o resultado final de um Deus clemente e amoroso, que lhes ofereceu todas as oportunidades para que mudassem de atitude (ver Balaão em Nm 22), mas que, no fim, não pôde tolerar a impiedade deles.

As proporções da degradação cananita são claramente demonstradas por seus textos descrevendo práticas cultuais que incluíam sacrifícios de crianças e prostituição sagrada. As decisões que eles tomavam afetavam vidas ditas inocentes. Até mesmo as mulheres e as crianças foram afetadas pela profundidade do mal. Não era vontade de Deus que tais atrocidades continuassem. O Senhor não trouxe os filhos de Israel para Canaã por causa da superioridade deles, mas por causa da “maldade destas nações” (Dt 9:5). Essa é a razão de Deuteronômio 20 e outros textos similares mostrarem claramente que Israel devia destruir todos os altares, postes sagrados, bosques e imagens de escultura, “para que não vos ensinem a fazer segundo todas as suas abominações, que fizeram a seus deuses” (Dt 20:18).

O papel de Israel – Se o castigo divino era plano de Deus, isso ainda não explica por que Ele usou os israelitas para destruir as nações diante deles. Uma análise contextual mais ampla mostra que nunca foi intenção de Deus usar os israelitas como o principal agente de destruição. Em Êxodo 23, Deus estabeleceu Seu plano para a conquista:

“Mas, se diligentemente lhe ouvires a voz [do Anjo do Senhor] e fizeres tudo o que Eu disser, então, serei inimigo dos teus inimigos e adversário dos teus adversários. Porque o Meu Anjo irá adiante de ti e te levará aos amorreus, aos heteus, aos ferezeus, aos cananeus, aos heveus e aos jebuseus; e Eu os destruirei” (Êx 23:22, 23).

O texto mostra claramente que, se Israel tivesse obedecido e feito tudo quanto lhe dissera o Senhor, Deus faria o resto. Ele mesmo destruiria os inimigos. A parte deles era apenas demolir os deuses amoritas e despedaçar “de todo as suas colunas” (Êx 23:24). Deuteronômio 1:30 reafirma:

“O Senhor, vosso Deus, que vai adiante de vós, Ele pelejará por vós, segundo tudo o que fez conosco, diante de vossos olhos, no Egito.”

Foi precisamente isso o que Deus fizera no passado. Quando os filhos de Israel clamaram a Moisés no Mar Vermelho, Moisés respondeu:

“Não tenham medo. Fiquem firmes e vejam o livramento que o Senhor lhes trará hoje […]. O Senhor lutará por vocês; tão somente acalmem-se” (Êx 14:13, 14, NIV).

Deuteronômio 7:18-20, referindo-se à experiência do Mar Vermelho, faz precisamente a mesma promessa:

“Delas não tenhas temor; lembrar-te-ás do que o Senhor, teu Deus, fez a Faraó e a todo o Egito; […] assim fará o Senhor, teu Deus, com todos os povos, aos quais temes. Além disso, o Senhor, teu Deus, mandará entre eles vespões, até que pereçam os que ficarem e se esconderem de diante de ti.”

Deus expulsaria essas nações “pouco a pouco” (v. 22). Esse era o plano idealizado por Deus para Israel.

Guerra de Yahweh – Não foi Deus quem instruiu Israel a destruí-los “totalmente” nessas passagens? A expressão aqui traduzida por “destruir totalmente” é o termo hebraico cherem. Significa “maldição” ou “aquilo que está sob interdição” ou ainda “o que está votado à destruição”. Deus tinha votado essas nações e seus deuses à destruição, porque se haviam rebelado contra Ele de forma violenta e persistente. Embora alguns estudiosos interpretem essa destruição como uma “guerra santa”, era mais precisamente uma “guerra de Yahweh”, no sentido de que o próprio Deus lutaria contra as forças do mal e aplicaria o castigo divino. Israel devia colocar essas nações e seus pertences sob interdição. Isso significa que os israelitas deviam entregar os cananeus nas mãos de Deus para que Ele julgasse esses povos. Deviam separar-se deles completamente. Israel não devia tomar despojos. Nem entrar com eles em nenhuma aliança. Não deviam se unir em casamentos mistos com os inimigos de Deus, a fim de evitar ser influenciados por suas práticas perversas. Pelo contrário, Israel devia colaborar com Deus, seu Líder supremo na teocracia, para promover a vontade divina.

A escolha de Israel – Embora o plano ideal de Deus fosse que Israel se aquietasse para ver o livramento do Senhor, por fim, Deus pelejou ao lado de Israel. Eles escolheram ser eles mesmos os conquistadores e mataram em campanha militar aqueles a quem deviam somente expulsar. Uma vez herdada a terra, eles não a conquistaram plenamente de modo que os cananeus ainda ocupavam muitas cidades e territórios (Js 13:2-5; Jz 1:19-35). Mas Deus colaborou com as escolhas de Israel e os acompanhou, mesmo quando eles fizeram justiça com as próprias mãos. Ainda assim, no fim de sua vida, Josué pôde ouvir de Deus:

“Passando vós o Jordão e vindo a Jericó, os habitantes de Jericó pelejaram contra vós outros e também os amorreus, os ferezeus, os cananeus, os heteus, os girgaseus, os heveus e os jebuseus; porém os entreguei nas vossas mãos. Enviei vespões adiante de vós, que os expulsaram da vossa presença, bem como os dois reis dos amorreus, e isso não com a tua espada, nem com o teu arco. Dei-vos a terra em que não trabalhastes e cidades que não edificastes, e habitais nelas; comeis das vinhas e dos olivais que não plantastes” (Js 24:11-13).

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