O Anel dos Nibelungos (Ato 4 – 1/7)

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O crepúsculo dos deuses

I – O diálogo das Nornas

Três Nornas, deusas nórdicas que regem os destinos do antigo mundo, estão sentadas sobre o rochedo, onde Siegfried e Brunhilde estavam juntos há poucos instantes. Eles se retiraram para dentro de uma gruta para consumar o seu amor.

Enquanto isso, as deusas conversam, ao mesmo tempo em que tecem o fio do destino, que está espalhado por sobre as rochas, passando de mão em mão. A mais velha delas começa a falar, rememorando fatos:

– Lembram, irmãs, de quando éramos novas (e conosco, o mundo), e de como éramos felizes, sentadas o dia todo à sombra de Yggdrasil, a tecer o destino de deuses e mortais? Sim, bem agradáveis e doces eram aqueles dias!…

Suas irmãs fazem um sinal de assentimento com suas encanecidas cabeças, pois tanto elas, quanto aquela que fala, apresentam o aspecto avelhantado de criaturas que sabem que o dia de seu inexorável ocaso se aproxima.

Yggdrasil, o grande Freixo do Mundo a que a Norna se referira, era a grande e frondosa árvore que encobria o universo. Suas raízes espalhavam-se em várias direções, penetrando em diversos reinos do mundo, como nas sombrias moradas de Niflheim, onde a serpente Nidhogg estava instalada, permanentemente, a roer a raiz que ali se infiltrava.

As três irmãs, entretanto, viviam em Asgard, o ameno lar das divindades. Eram as encarregadas de regar a raiz e os ramos da árvore sagrada com a água tirada do poço Urdar.

– Vejam o que achei, ó irmãs! – exclama a Norna mais velha. – Aqui está o pedaço do fio do destino que fala sobre Wotan, o mais poderoso dos deuses.

De fato, pelos seus dedos vai passando o longo fio, que dá conta de um importante episódio da vida de Wotan: o dia em que ele perdeu um de seus olhos.

A Norna narra o episódio como num transe, como uma velha sacerdotisa que oficiasse uma leitura cerimonial aos iniciados, composta de textos há muito repetidos e que, aos poucos, vão perdendo a força pelo fato mesmo da contínua repetição a que são submetidos.

– Wotan, divindade maior dos asgardianos, um dia sentiu a necessidade de se fazer sábio, pois como poderia ser o mais poderoso dos deuses sem dominar os segredos do sentimento e do pensamento? Então, Wotan, munindo-se de coragem, deixa Asgard, morada dos deuses, e baixa até Jotunheim, a terra dos Gigantes, onde pretende encontrar a cabeça do gigante Mimir (ou “aquele que pensa”), que monta guarda à fonte da sabedoria. Wotan sabe que o gigante há de lhe cobrar um preço – sem dúvida demasiado alto! – por apenas um gole da água da fonte sagrada; mas não seria um deus se retrocedesse. Por isso, segue até estar diante da imensa cabeça, que fixa nele seus fulgurantes olhos: “Ó poderoso Wotan, que vem fazer aqui diante do grande espelho de minhas águas?”, diz ele, com sua voz cava. O deus, sem perder a calma, responde:

“Mimir, guardião da fonte que tem toda sabedoria e bom-senso, eis que venho aqui em busca de um gole de tuas águas!” “Oh, quer se tornar sábio, então?”, diz a grande cabeça, arregalando os olhos. “Sim, Mimir, aspiro à sabedoria, sem a qual não serei jamais digno de ostentar o título de mais poderoso dos deuses!”, retruca Wotan, disposto a tudo por um gole daquela água que rebrilha no leito, parecendo, ao mesmo tempo, mansa na superfície e revolta nas profundezas. Mimir, durante um longo tempo, reflete sobre a conveniência de lhe dar esta permissão, ao cabo do qual diz ao deus: “Está bem, ousada divindade! Beberá de minhas águas, mas apenas e tão somente um gole!; contudo, mesmo este gole haverá de lhe custar bem caro!” Wotan, que já esperava o repto, inclina-se respeitosamente: “Aceito o preço que você arbitrar, grande Mimir!” O

gigante, então, lhe diz: “Quero, Wotan, um olho seu, nada menos que isto!” Wotan recua um pouco, mas sabe que, se Mimir pronunciou estas palavras, elas são, desde já, irrevogáveis. “Está bem”, diz o deus, resignado a perder uma de suas vistas, “aceito o preço que me impõe!” Wotan tem assim um de seus olhos arrancado; um grande urro de dor enche o universo. Logo depois, porém, vem o ambicionado prêmio: uma taça cheia da cristalina água, que Wotan sorve com infinito deleite!

A Norna faz uma pausa, enquanto o grande fio escorre por entre os seus dedos encarquilhados, fazendo com que muitos anos passem diante de seus olhos.

– Então, um dia Wotan quebrou um ramo do freixo para fazer sua lança Gungnir, sem se aperceber que com isto a árvore fora ferida mortalmente; aos poucos, eis que a planta sagrada começa a enfraquecer até se tornar, depois de muito tempo, despida de suas folhas e de sua seiva. A nascente da fonte também secou e com isto começou, de fato, a ruína do nosso velho mundo…

A segunda Norna, percebendo que a primeira já não tem o fôlego necessário para levar adiante o relato, retoma o discurso:

– Ó poderosa lança: quantos tratados e leis foram gravados em teu imenso cabo!

Com ela, Wotan regeu nosso mundo, com ela, subjugou seus inimigos! Mas, mesmo Gungnir encontrou o seu fim – e como poderia ser doutro modo, agora que tudo declina?

Siegfried, seu neto, partiu-a com um valente golpe da espada Notung, que o próprio Wotan um dia forjara. Mas o que fez com que nosso mundo, verdadeiramente, declinasse? Que força maléfica introduziu-se nele para que deuses e criaturas conhecessem o rude conceito da decadência e marchassem, como de fato todos marchamos, para a morte inexorável?

– Um anel, vejo o pequeno e maldito objeto brilhar diante de meus olhos! – exclama a terceira Norna. A segunda aproxima-se e lhe toma o fio, que roça por entre as rochas, ameaçando partir-se. Já não há mais o freixo gigantesco onde elas costumavam amarrar o fio que tecem noite e dia. As rochas são afiadas e não há meio de prender os fios à suas saliências agudas.

– Sim, lá está o pérfido anão Alberich, tentando seduzir as ninfas, que nadam descuidadas sobre o Reno! O infelizes e imprevidentes ninfas! Se pudessem prever qual seria o fruto de sua desatenção! Pois, tudo começou com o furto do Ouro do Reno, com o qual Alberich forjou seu maldito anel! Desde então, ó irmãs, o universo foi encoberto pela escuridão! Sangue e morte seguiram-se! Alberich, tornado tirano de seu próprio povo, teve o anel arrebatado por Wotan, auxiliado pela astúcia do sinistro Loki, mestre dos embusteiros. Mas, de que lhes valeu tal furto, irmãs? Que bem pode trazer este negro objeto àquele que dele se apossa?

As duas Nornas restantes sacodem suas cabeças de maneira desalentada, como a dizer: “Oh, bem algum, bem algum pode ele trazer!”

– Então, os gigantes o levaram em troca da devolução da bela Freya! – diz n Norna, voltando ao seu tema. – E, pela primeira vez, a morte surgia na esteira do anel maldito!

Agora, irmão está lançado contra irmão! O sangue de um provoca a alegria do outro! E o sobrevivente transformado cm horrendo dragão!

O fio cada vez mais se esfiapa, mas as Nornas parecem não se dar conta.

– Agora, o anel maldito está de posse de Siegfried; que novas tragédias poderá nos trazer? Que ruína definitiva fará abater-se sobre o mundo e os próprios deuses?

A última Norna aproxima-se e toma o fio da mão da irmã. Quase completamente roto, ela o puxa para melhor enxergar o que o futuro reserva a todos.

– Wotan – diz ela – ordenou que seus guerreiros mortos cortassem a madeira do velho e extinto Freixo do Mundo, que agora jaz empilhado no Valhalla, a seus pés, como um monte de lenha seca prestes a arder!

As irmãs dão um ganido estridente de desespero.

– Sim, irmãs, basta que Wotan dê uma ordem neste sentido para que as chamas envolvam os restos de Yggdrasil e mergulhem nas chamas o Valhalla e com ele todo o universo. Falta pouco para que se declare o Crepúsculo dos Deuses! Falta pouco para que as chamas envolvam os céus, tornando o universo uma grande bola de fogo, e se apague em seguida para que as trevas mais negras desçam sobre os deuses que um dia governaram o mundo.

– E Loki? – exclama a Norna mais velha. – O que houve com ele?

– Loki, deus do fogo, foi dominado por Wotan antes que sua lança fosse partida –

responde a outra. – Ele o obrigou a cercar com suas chamas a montanha onde Brunhilde jazia adormecida. Será ele que trará o fogo para devorar o lenho sagrado de Yggdrasil, pondo fim ao nosso mundo, bem vejo tudo isto!

De repente, as Nornas dão-se conta de que o longo fio que vinham puxando e estudando, finalmente, rompeu-se.

– Oh, o fio rompeu-se, irmãs, o fio rompeu-se! – exclama uma delas.

As outras duas erguem-se, pondo as mãos sobre as cabeças de longos fios desgrenhados e esvoaçantes.

– Sim, está rompido! – ajuntam as outras. – Oh, Erda poderosa, socorra-nos!

Mas, é em vão que elas buscam o socorro da deusa da terra: ela já mergulhou, pela última vez, nas profundezas do subsolo, adormecida para sempre. Nem mesmo a sábia e outrora poderosa Erda pode impedir, agora, que tudo se consuma.

Percebendo que sua existência se torna inútil para todo o sempre, as três Nornas abandonam o local onde estão e mergulham juntas para o seio da terra.

O mundo, sabem elas, está agora inteiramente à mercê do Anel da Perdição.

***

O dia amanhece, tingindo o céu de uma gama de cores suaves; os pássaros começam a cantar num mundo que ainda resiste aos maus prognósticos de três deusas decadentes que, antes mesmo que o sol nascesse, desapareceram para sempre para dentro da terra. O rochedo, onde o casal de amantes esteve entregue aos seus prazeres, está iluminado pelos primeiros raios do sol. Dentro dele, ainda se ocultam Siegfried e Brunhilde que surgem, somente mais tarde, abraçados. Siegfried enverga a armadura e o escudo da valquíria já que, para ela, estes dois artefatos são agora inteiramente inúteis: ela não é mais uma deusa imortal, mas uma mulher como outra qualquer – tanto quanto Brunhilde pode ser uma mulher qualquer.

Mas não foram só as armas que ela deu a Siegfried; todo o conhecimento de que era detentora também foi transmitido ao seu amado – que, agora, é um guerreiro completo.

– Como vê, cedi-lhe tudo, meu amor – diz Brunhilde ao jovem, tão logo saem de seu refúgio. – Terei agido certo, Siegfried? Poderei estar certa de que jamais me abandonará?

– Brunhilde, sempre terei seu adorável rosto diante de meus olhos! – diz Siegfried, tomando o rosto dela em suas mãos e depositando um longo beijo em seus lábios.

Um relincho discreto faz com que ambos interrompam seu romance, que ameaça recomeçar mesmo à luz do sol. É Grane, o cavalo de Brunhilde que acordou e agora também chama por sua dona, talvez algo enciumado.

– Veja, é Grane! – diz a filha de Wotan, sorridente, a Siegfried. – Vamos, leve-o também consigo; doravante, será o seu cavalo.

Siegfried agradece mais este valioso presente e parece constrangido em nada poder ofertar à sua amada. De repente, dá-se conta de algo em seu dedo: é o anel dos nibelungos. Sem pensar duas vezes, ele arranca o pequeno círculo de seu dedo e o estende para a amada.

– Vamos, tome-o! – diz ele a Brunhilde. – A partir de agora, ele ficará sob a sua guarda!

– Oh, não, Siegfried! – diz Brunhilde, afastando com a mão aquele objeto que emite um brilho fascinante, mas também assustador. – Este anel é seu, lembra-se? Você o conquistou ao derrotar valentemente o dragão!

– Não importa – retruca Siegfried, generosamente. – A partir de agora, ele é seu, quero que você fique com ele como prova de meu amor.

Brunhilde coloca o anel em seu dedo e diz que estará sempre ali, enquanto for viva.

– Brunhilde, quero que saiba que, a partir de agora, todas as minhas façanhas serão suas também! – diz ele que está, ao mesmo tempo, triste por se separar de sua amada e ansioso por sair e percorrer o mundo, que ainda desconhece.

– Juntos nossos corpos, ninguém nos apartará – diz ele -; separados, continuaremos a ser uma só alma!

Siegfried monta em seu cavalo e dá meia volta. Brunhilde o observa com os olhos cheios de lágrimas. Em seu dedo, contudo, o anel parece adquirir uma nova conformação e brilho – um brilho escuro e ameaçadoramente sinistro.

II – Os Gibichungs


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