O Anel dos Nibelungos (Ato 2 – 1/4)

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A Valquíria

I – A casa do freixo

É uma noite fria e tempestuosa. Os raios e os trovões sucedem-se na paisagem desolada de uma floresta que está, inteiramente, entregue aos açoites do vento e da chuva. Troncos inteiros fendidos pelos raios estão caídos por toda a parte, obstruindo os caminhos, enquanto rios de água descem das encostas, encharcando a relva. Seria quase impossível imaginar que algum ser vivo seria capaz de se expor à fúria dos elementos numa noite escura e sinistra como esta.

Entretanto, um homem surge, agora completamente encharcado e apoiado a um bordão por entre o clarão dos relâmpagos. Ele parece fugir de algo, pois a todo instante pára para voltar sua cabeça para trás, sendo impelido outra vez para a frente pela força da chuva tocada pelo vento. De repente, porém, estaca diante da visão surpreendente de uma casa que aparece bem à sua frente. De fato, não se trata de uma casa normal: do alto de suas telhas, espargem-se os ramos e os galhos de um imenso freixo! Na verdade, a casa fora construída de maneira original, ao redor do freixo, de tal forma que o tronco deita suas raízes bem no meio da sala.

“Que estranha construção!”, pensa o solitário viajante. Ele se aproxima mais e bate à porta. Mas, com todo o fragor da tempestade, suas batidas não soam mais forte do que a batida singela de um pica-pau. Espia, então, por uma fresta da janela para dentro da casa, a fim de ver se há alguém que lhe possa dar abrigo. Nada. Km compensação, há um grande clarão, provindo de uma enorme e aconchegante lareira.

O estranho testa agora o trinco da porta: está aberto! Sem se deter por receio algum e impelido pela exaustão, ele adentra a casa, arrasta-se penosamente até a lareira e ali desaba sobre uma grande pele de urso. A chuva, locada pelo vento, entra pela porta aberta, mas, antes que o alcance, é evaporada pelo calor das labaredas, que agora aquecem seu corpo exausto. Suas roupas estão rasgadas e algumas feridas manchadas de sangue lhe recobrem a pele.

Neste instante, assustada com o ruído do vento que entra pela porta escancarada, surge uma mulher. Pensando tratar-se de seu marido, ela corre para aquele homem que está caído sobre a pele.

– Oh, não é Hunding! – exclama a jovem, assustada.

Sem saber o que fazer, ela tenta acordar o estranho. Seu marido pode chegar a qualquer momento e o que diria se a encontrasse em plena sala com um homem?

– Vamos, jovem, acorde! – diz ela, sacudindo-o suavemente.

Aos poucos, o forasteiro recobra a consciência. O brilho das labaredas, misturado ao ruído crepitante dos troncos que estalam (a lareira é, verdadeiramente, imensa e nela poderia ser assado um leitão ou mesmo um boi inteiro), acabam por fazer com que ele desperte. Voltando-se para a dona da casa, ele tenta pôr-se em pé.

– Desculpe ter invadido o seu lar! – diz ele, atrapalhado.

– Está tudo bem – diz ela, fazendo com a mão um gesto de pouco caso. – Diga-me quem você é e por que se encontra neste estado…

O forasteiro, apoiado à jovem, consegue, finalmente, equilibrar-se sobre as próprias pernas.

– Quem sou eu? – diz ele, com um ar quase ausente. – Chame-me de

“Desafortunado”.

– Você parece estar ferido; deixe-me ver estas manchas…

– Não, não é nada… São feridas superficiais, logo estarão curadas.

– Vou trazer-lhe, então, um pouco de água.

A jovem sai da sala. O forasteiro, um pouco mais refeito, põe-se a estudar a peça.

Sim, ali está, no centro da sala, o tronco maciço do freixo. Erguendo os olhos, ele o vê estender-se até o telhado; por meio de furos, engenhosamente feitos na cobertura, os galhos desaparecem para dentro da noite. Mas, em seguida, a dona da casa retorna com um copo de água.

– De quem ou do que você estava fugindo? – diz a jovem, observando atentamente os traços do forasteiro. Uma simpatia quase magnética parece aproximá-los cada vez mais.

– Fujo do infortúnio que me persegue desde sempre! – responde ele, voltando os olhos para as labaredas como se, dentro delas, pudesse enxergar todos os seus males. –

E acho que já é hora de partir também, antes que atraia para esta casa os males que, sem cessar, não se cansam de me afligir.

– Não, não vá! – diz ela, tomando-o pelo braço, numa brusca familiaridade que também a assusta. – Se for por isso, nada tema, pois a infelicidade já reside há muito nesta casa…

– Quem é você, afinal…?

– Sou esposa de Hunding; ele já deve estar retornando. Por favor, fique e desfrute de sua hospitalidade. – Depois, meio que se voltando para outro lado, diz, à meia-voz: – Nem mesmo ele seria capaz de lhe negar o dever da hospitalidade…

O estranho apóia-se à lareira. Imerso em seus pensamentos, decide aguardar a chegada do proprietário. Suas reflexões, contudo, logo são interrompidas pela chegada de Hunding. Ele é um homem forte e de espessa barba e, desde logo, percebe-se que se trata de um homem rígido e pouco amável.

– Quem é este homem? – diz ele à esposa, tão logo põe os olhos sobre o estranho.

– É um forasteiro que buscava abrigo da tempestade, meu esposo – diz a mulher, temerosa por sua reação.

– Vamos sentar para jantar – diz o dono da casa, abruptamente. – O forasteiro parece muito abatido e não quero que digam que, na nobre casa de Hunding, se faz vistas grossas à fome e ao mal estar de um pobre errante.

Enquanto os três comem, Hunding aproveita para estudar o estranho. “É

extraordinária a semelhança que tem com minha mulher!”, pensa Hunding, enquanto dilacera um enorme osso recoberto de carne. “O que haverá por trás disto?”

– Sirva mais um pouco de carne e vinho ao forasteiro – diz o marido, com seus gestos rudes.

– Se não me engano, eu e minha mulher já nos apresentamos, forasteiro de poucas palavras – diz Hunding, limpando a boca com as costas peludas de sua mão. – Creio ser dever de gratidão ou, ao menos de cortesia, que o hóspede nos revele, agora, também o seu nome. Ou espera que eu passe o resto da noite chamando-o de forasteiro?

– Já o disse, anteriormente, à sua esposa – diz o visitante. – Meu nome é

“Desafortunado”.

– Oh, que belo nome! – ironiza Hunding. – Com este nome deve ter, então, uma história bastante divertida para nos contar, não é, minha esposa?…

A jovem permanece séria. Há muito tempo, acostumou-se a não responder com sorrisos fingidos os maus gracejos do esposo. – Conte-nos a sua história -diz ela, simplesmente, voltando os olhos mansos para o visitante.

Um ar de constrangimento pesa sobre a sala. A chuva ainda cai lá fora e um trovão providencial estoura, quebrando o desconforto. O forasteiro aproveita, então, para começar o seu relato.

– Sou filho de Wolfe [“Lobo”]. Morava com ele, minha mãe e minha irmã há muitos anos, numa região distante daqui. Vivíamos uma vida muito feliz até que, um dia, ao retornarmos eu e meu pai de uma caçada, encontramos nossa casa em chamas. Minha mãe estava morta e minha irmã havia desaparecido.

– Oh, que desgraça!… – exclamou Sieglinde, penalizada

– Meu pai e eu saímos pela floresta, como um lobo e seu filhote, e ali passamos a viver de maneira quase selvagem, tomados pelo desgosto. Assim, estivemos por muito tempo, até que os agressores voltaram e nos atacaram, talvez receosos de que, um dia, buscássemos a desforra. Brigamos um dia inteiro, até que vimo-nos, meu pai e eu, obrigados a fugir. Mas, na fuga, acabei por perder o contato com ele e, assim, tive de me internar sozinho na floresta. Tão logo vi-me livre da perseguição, entretanto, retornei para procurar algum sinal de meu pai, mas só encontrei a pele de lobo que ele usava em nossas caçadas.

– E, desde então, vaga sozinho pelo mundo com este nome infausto? -perguntou Sieglinde.

– Sim, outro não tem sido meu destino. Por toda parte aonde ando, sou mal visto. Se acho algo bom, a todos parece péssimo; se porventura observo em algo uma nesga de mal, todos afirmam que aquilo é, perfeitamente, bom. Oh, é um inferno!

– Mas e estes ferimentos que traz por todo o corpo, de onde vieram?

– Creia-me, jovem esposa, que é apenas o fruto de mais uma de minhas desditas!

– Mais desditas?!… – exclamou Hunding, após virar um grande corno de vinho. – Eis, então, um hóspede verdadeiramente indesejável, pois as Nornas, fiandeiras do destino, não cessam de persegui-lo!

O jovem, sem se deixar perturbar pelas provocações de Hunding, retoma seu relato.

– Perdi minhas armas e ganhei estes ferimentos quando, um dia, saí em defesa de uma jovem que implorava por auxílio, pois seus perversos irmãos pretendiam obrigá-la a se casar com um homem perverso. Foi uma luta terrível, mas acabei por matá-los a todos.

Isto causou imenso pesar na mulher. Infelizmente, a coisa não terminou por aí; logo chegaram outros parentes para vingar os irmãos mortos pela minha espada. Travamos novo combate, mas, desta vez, eles eram muitos e acabaram quebrando minha espada e meu escudo. A pobre mulher acabou morta pela ira destes assassinos ferozes; quanto a mim, vi-me obrigado a fugir, sem meios de oferecer qualquer resistência.

Hunding, à medida que ia escutando o relato, foi tornando-se cada vez mais inquieto. Um rubor de cólera tingia-lhe as faces e seus dedos crisparam-se sobre a mesa.

– Então, não cheguei tão tarde, afinal, para dar cumprimento à vingança -disse Hunding, olhando para o forasteiro com o olhar repleto de cólera.

– O que está dizendo, meu marido? – perguntou sua esposa, assustada.

– O que estou dizendo é que eu era um dos que deveriam vingar a morte dos irmãos; infelizmente, cheguei tarde. Mas, agora, tive a felicidade de encontrar o inimigo dentro de minha própria casa!

Hunding ergueu-se com rapidez tal que o estranho pôs-se em pé num reflexo.

– Esteja descansado, por hora, forasteiro – disse ele, sem sequer olhar-lhe para o rosto. – Por esta noite, ninguém o perturbará. Ninguém dirá jamais que, na casa de Hunding, se viola o sagrado dever da hospitalidade, matando hóspedes indefesos durante a noite. Mas, amanhã, será diferente. Trate de arrumar alguma arma antes que o dia amanheça pois, logo cedo, travaremos um duelo mortal. Pagará, desta forma, com seu sangue todas as mortes que provocou.

Hunding voltou-se em seguida para a mulher: – Venha, vamos deitar. Prepare já a minha bebida e deixe o forasteiro aí na sala, a sós com suas culpas. E, quanto a você, já sabe: tem até amanhã para arrumar as suas armas.

***

Sigmund – pois tal é o nome do forasteiro – está sentado, há longo tempo, em frente ao fogo, quase ao pé do tronco do grande freixo que brota do meio da sala. Entregue aos seus pensamentos, o jovem sente que, mais uma vez, o infortúnio se volta contra ele.

“Sozinho e indefeso na casa de meu próprio inimigo! E sem uma única espada para fazer frente àquele que deseja minha morte!”

Neste instante, porém, vêm, como uma inspiração à sua mente, as palavras que seu pai lhe dissera certa ocasião: “Não se preocupe, meu filho! Num momento de extrema necessidade, farei com que chegue às suas mãos uma espada poderosa!”

– A espada! – exclama Sigmund. – Oh, meu pai, onde está a espada invencível que me prometeu? Sem ela, como poderei fazer frente a este terrível inimigo?

Neste momento, uma tora de lenha incandescida rompe-se dentro da imensa lareira.

Um clarão intenso reflete sobre o tronco do freixo, iluminando algo que parece estar fincado na própria madeira.

– O que é isto? – diz Sigmund, tentando fixar o olhar sobre o estranho brilho.

Mas a luz logo desaparece. O forasteiro associa, então, aquele brilho com o do olhar da jovem, que há pouco deixou a sala. “Que brilho estranho e divino há em seu olhar!”, pensa ele, em meio às suas dúvidas e aflições. “Será que, em seu coração, se passa o mesmo que no meu? Será, ou não, recíproca a afeição que já sinto brotar em meu coração?”

Sigmund reflete sobre a sua vida e já está quase adormecendo de cansaço, quando ouve uma voz chamá-lo, suavemente.

– Estranho “Desafortunado”, acorde!

É a jovem esposa de Hunding. Ela traz uma vela na mão.

– Seu esposo não pode saber que está aqui! – diz Sigmund.

– Não se preocupe, acrescentei à sua bebida algumas ervas soníferas – diz ela, num tom de alívio. – Ele só acordará amanhã cedo.

– Sim… para o duelo! – diz Sigmund, com o cenho carregado. Voltando, então, o olhar para o freixo no centro da sala, ele pergunta para a jovem:

– Que brilho estranho é este, que cintila sobre o freixo?

– Brilho?! – exclama a jovem, surpresa. – Ela corre até o tronco e parece feliz.

– Oh, será verdade?

– Não a entendo…

– Aquilo é uma espada! E, a menos que esteja completamente enganada, ela lhe pertence, forasteiro!

Sigmund, empolgado, corre até o freixo. – Mas… é apenas o cabo!

– Ela está enterrada. Ouça, forasteiro, deixe-me contar-lhe a minha história e, então, entenderá a razão desta espada – a sua espada! – estar encravada aí!…

Sigmund retrocede, ainda fascinado pelo brilho do punho da espada. Mas, logo, seus olhos se voltam para sua amada – sim, agora ele sabe: ele a ama! – e dedica toda a atenção aos lábios dela.

– Meu infeliz casamento deu-se nesta mesma sala, há muitos anos. Após ter sido raptada de minha casa por ladrões, vi-me obrigada a me casar com este odioso homem numa cerimônia em que estavam também seus parentes. Jamais quis tê-lo como esposo, mas a brutalidade dele assim decidiu. Estávamos, pois, em meio à infeliz cerimônia, quando, de repente, irrompeu pela porta uma estranha figura. Suas vestes eram inteiramente acinzentadas e ele trazia sobre a cabeça um grande chapelão de abas largas, que lhe ocultava um dos olhos. Meu marido tentou impedir-lhe a presença, mas seu único olhar era tão ameaçador, que tanto ele quanto os outros preferiram afastar-se, deixando-o a sós. O estranho sacou, então, de suas vestes uma reluzente espada; seu brilho era tão intenso que encheu a todos de assombro. Encaminhando-se até o freixo, ergueu a espada c a encravou com toda a força até o cabo no grosso tronco. Depois, desafiou a iodos que a arrancassem do freixo; aquele que o conseguisse, ficaria dono dela. Antes de sair, o velho me deu uma olhada, onde vi errar (oh, sim, tenho a absoluta certeza!) a inconfundível doçura de um olhar paterno!…

Sigmund sentiu seu coração encher-se de esperanças. “Oh, serei eu, então, o escolhido para retirá-la do freixo?” A jovem, no entanto, tem seus olhos postos sobre o rosto de Sigmund. Um magnetismo intenso parece irradiar-se de seus olhos. Neste instante, um radiante raio de luar entra pela janela e banha suas laces. De repente, tudo fica claro para ambos e já não há mais nenhum segredo entre eles.

– Meu pai… Ele me disse certa feita, querida irmã, que, um dia, uma espada providencial chegaria às minhas mãos num momento de extrema necessidade. Meu pai e seu pai… são um só… Sieglinde!

Sim, ela era sua irmã, Sieglinde, que um dia fora raptada de maneira tão Imitai.

Agora ali estava à sua frente, como num sonho.

– A espada, Sigmund querido!… – diz Sieglinde, apontando para a árvore.

Sigmund, vacilante, aproxima-se do freixo. Bem ao centro, está mais nítido do que nunca o cabo da espada. A lâmina, entretanto, não se pode enxergar, pois n espada está de tal modo enterrada, que não resta à vista um único pedaço do seu aço.

– Muitos tentaram, meu irmão… Inclusive Hunding, com toda a sua força! – diz Sieglinde, um pouco receosa.

Mas Sigmund está confiante: – É ela, sim! – diz ele. – É Notung, a espada prometida por meu pai! – Suas mãos estão firmes, quando seus dedos entrelaçam-se ao cabo gelado da espada. Sem fazer grande esforço ele, então, a retira do tronco. A lâmina prateada, perfeitamente intacta, vai surgindo aos poucos até Sigmund ter a espada inteira em suas mãos. – Notung, agora, é minha, ó minha irmã e minha noiva! – exclama Sigmund, radiante.

Sieglinde abraça-se ao irmão, dizendo: – Sigmund, amado! De hoje em diante, você não é mais o “Desafortunado”, mas, sim, Sigmund, da nobre estirpe dos Walsungs!

II – Brunhilde, a Valquíria


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