O Anel dos Nibelungos (Ato 2 – 4/4)

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IV – A ira de Wotan

As valquírias reúnem-se no alto das montanhas todos os finais de dia. Ao chegar, cada qual traz consigo os guerreiros mortos e entoa seu vibrante brado de guerra. Seus cavalos têm as bocas cobertas de espuma e seus corpos reluzem do suor da frenética cavalgada, enquanto as cavaleiras regozijam-se, mutuamente, reencontrando-se após terem percorrido os campos de batalha, que são abundantes nestes tempos rudes. De fato, nesta época, não se passa um único dia sem que as bravas cavaleiras de Wotan –

todas filhas dele e de Erda, a deusa da terra – tenham renovado trabalho.

Entretanto, não são todos os guerreiros que recebem o privilégio de poder fazer parte das hostes de Wotan, indo residir no esplendoroso Valhalla. Somente o espírito daqueles guerreiros que mostraram especial coragem e capacidade na luta são recolhidos pelos braços das destemidas valquírias. Estes combatentes mortos, porém, apesar de terem os corpos cobertos de fundas feridas, trazem no semblante um ar de felicidade, muito diferente daquele sentimento calmo e alegre que costuma banhar o coração dos homens calmos e pacatos, sempre associado a um estado pacífico de suave regozijo ou de beatífica contemplação. Não, a felicidade deles é feita de outro metal, mais rijo e rude, temperada no cadinho do sangue e da dor e sujeita a uma rígida obrigação moral, que todos sentem pesar sobre si como um fardo heróico. Seu paraíso, em suma, é um paraíso de fortes – um paraíso viril -, do qual está exilado qualquer sentimento de plácida satisfação ou de ingênua beatitude.

As valquírias que os conduzem são em número de nove: Waltraute, Gerhilde, Ortlinde, Schwertleite, Welmwige, Siegrune, Grimgerde, Rossweise e Brunhilde. Destas, a única ausente nesta alegre confraternização é Brunhilde, o que não deixa de causar certa estranheza às demais.

– Waltraute, Brunhilde não retornou ainda de sua missão? – diz uma delas, montada em seu cavalo branco.

– Pelo visto ainda não, cara irmã – responde Waltraute, depondo seu escudo ao chão.

Todas sabem da grave missão que hoje pesa sobre Brunhilde e da qual somente ela, a predileta de Wotan, poderia ser sido encarregada. Mas, embora conscientes desta predileção, nenhuma delas chega a devotar a Brunhilde qualquer sentimento de inveja ou de animosidade. Na verdade, elas preferem manter-se assim, à parte, livres da influência altiva e dominadora do pai, pois sabem que, se por um lado, ele dedica a Brunhilde a parte maior da sua atenção – e de sua afeição -, também não é menos verdade, que lhe dedica a parte pior deste afeto: o sentimento de posse e domínio, um sentimento capaz de arruinar qualquer relacionamento pessoal ou divino.

Entretanto, Siegrune, que está no ponto mais elevado da montanha, divisa, de repente, uma mancha, que se aproxima veloz como o vento.

– Irmãs, vejam! – grita ela, em alegre alvoroço. – É Brunhilde!…

É ela, de fato, com seu cavalo Grane, quem avança pelos ares, cavalgando, velozmente, não como quem busca algo, mas como quem foge de um grave perigo.

– Ué, Brunhilde, você trouxe uma guerreira?… – diz Siegrune, surpresa.

– Onde está Sigmund? – pergunta outra, pois todas esperavam que ela trouxesse consigo o filho de Wotan, abatido por Hunding em um duelo cruel e singular.

Brunhilde, contudo, está exausta da frenética cavalgada e preocupada demais com a jovem que traz consigo para descer à explicações.

– Isso, agora, não importa, queridas irmãs – diz Brunhilde, enxugando o suor da sua fronte. – Preciso da ajuda e da proteção de vocês!

– Ajuda? Proteção? – exclamam diversas vozes ao mesmo tempo. – Quem a persegue, cara irmã?

– Meu pai, Wotan! – diz Brunhilde, com ar de evidente preocupação. – Eu o desobedeci e, por isso, atraí a sua ira!

– Desobedeceu, você? Como?

– Tomei o partido de Sigmund no combate e fugi com esta pobre infeliz, sua irmã.

Receio muito que ele queira também levar a morte a ela e ao filho que traz em seu ventre!

As irmãs entreolham-se, consternadas. Embora sintam piedade da irmã e daquela moça que ali está agarrada a Brunhilde como à sua única esperança de proteção, sabem que seria rematada loucura desafiar a autoridade do pai. E é isso, exatamente, o.que uma delas lhe diz.

– Brunhilde, como pôde desafiar a autoridade de Wotan?

A valquíria está dividida entre o sentimento do remorso, que a oprime, e o da compaixão, que a impede de se curvar aos decretos ferozes do pai.

– Que querem? – exclama ela, confusa. – Vocês seriam capazes de entregar esta frágil moça à sua ira?

– Brunhilde, os decretos de nosso pai são irrevogáveis – exclama outra de suas irmãs, tentando torná-la razoável. – Se nosso pai decidiu que ela deve ser punida, nada há a ser feito. Você deveria saber disto.

– E nem mesmo a mim estão dispostas a defender?

A resposta delas é mais eloqüente do que quaisquer palavras: seus olhares voltam-se para todas as direções, menos para a irmã que lhes implora ajuda.

– Vejam, Wotan aproxima-se! – exclama uma das valquírias.

Realmente, ao longe, pode-se perceber o avanço rápido de Wotan, que cavalga Sleipnir, o cavalo mais veloz do universo.

Brunhilde, coloca Sieglinde, rapidamente, em seu cavalo. Diz, olhando-a firmemente nos olhos: – Depressa, tome o rumo das imediações da floresta, onde Fafner – o antigo gigante, agora convertido em um feroz dragão – reside. Meu pai tem tal ojeriza a ele, que não ousará se aproximar daquele lugar sombrio. Aqui, estão os fragmentos de Notung, a espada partida; leve-os consigo. Um dia seu filho – que se chamará Siegfried – forjará uma nova espada com estes pedaços para poder enfrentar o dragão que guarda o anel ambicionado por todos. Até lá, minha querida, você terá de enfrentar um quinhão muito grande de sofrimento – a fome, a sede, as pedras e os espinhos – mas, terá sempre dentro de si o conforto de saber que espera um filho que será o mais nobre de quantos guerreiros um dia pisaram na terra.

– Oh, e quanto a você? – exclamou Sieglinde, já montada no cavalo.

– Eu terei de enfrentar a ira de Wotan, pois escolhi este caminho ao incorrer na desobediência à sua vontade.

Sieglinde parte, imediatamente, enquanto as valquírias observam Wotan chegar, coberto de suor e vermelho de cólera.

Brunhilde busca refúgio entre suas irmãs, que a cercam como um escudo.

– Aí está a infame! – brada Wotan. – Vamos, saia do meio delas e venha enfrentar sozinha a minha ira!

– Por favor, nosso pai, modere a raiva que inunda seu coração – clamam as irmãs de Brunhilde.

– É inútil que me venham com rogos e súplicas! – diz Wotan, inflexível. – Afastem-se dela ou sofrerão também o peso da minha punição!

Elas tentam resistir, mas é tudo em vão. A fúria de Wotan não admite empecilhos ao seu livre curso.

– Aqui estou, meu pai – diz Brunhilde, adiantando-se. – Pode exercer em mim a tua vingança e a tua cólera!

– Por ter me desobedecido, agora, está reduzida a ser alvo da minha punição. Eis o preço da desobediência: cumulei-a de todos os favores, elegi-a como minha predileta, concedi-lhe mesmo a imortalidade, dom maior de uma valquíria! Pois bem, a partir de agora, deixará de ser uma delas e passará a ser uma simples mortal.

Os olhos de Brunhilde enchem-se de lágrimas, pois esta é a pior punição que uma valquíria pode sofrer: perder a dignidade da imortalidade, bem concedido somente aos deuses.

– Doravante, você passará a ser como uma mulher qualquer: mortal e despida dos privilégios que só as minhas filhas desfrutam.

As oito irmãs de Brunhilde abaixam a cabeça, consternadas.

– Vou colocá-la numa floresta, em um estado de sono perpétuo, até que um reles mortal apareça e a desperte. Este será seu marido e, ao lado dele, passará o resto de sua vida – uma vida mesquinha, como a de qualquer mortal. Seus dons e sua beleza fenecerão, como acontece com toda mulher, e estará condenada a viver o resto de seus poucos dias – pouquíssimos, com efeito, em comparação com os dias de vida eterna que suas irmãs ainda desfrutarão! – a cardar a lã diante da lareira, imersa no tédio de uma ocupação reles e vil. Sim, Brunhilde, você não é mais uma deusa, nem uma imortal a partir de agora!

As valquírias se aproximam da irmã para tentar consolá-la de seu negro destino, mas Wotan as expulsa rudemente.

– Fora, todas! Aquela que ousar dirigir uma palavra de conforto a esta réproba, terá o mesmo destino dela.

As oito irmãs de Brunhilde sobem em suas montadas e, voltando as rédeas para as nuvens, desaparecem, deixando no ar apenas o rastro de seus lamentos.

Brunhilde agora está a sós com seu pai. A tempestade, que até agora ainda rugira, aos poucos vai se acalmando. Wotan está sentado sobre uma grande pedra, enquanto Brunhilde, aniquilada, está a seus pés. Poucas imagens poderiam ser mais expressivas do que esta, uma representação dolorosa – e revoltante, por certo – da sujeição a que os fortes podem submeter os mais fracos, quando assim o desejam.

– Meu pai – diz Brunhilde, erguendo a cabeça -, foi tão grave, assim, a ofensa a que o submeti para que decida me aplicar punição tão severa e irrevogável?

Wotan permanece impassível, o que faz com que Brunhilde se abaixe, repousando o queixo nos joelhos dele, como uma filha dócil e arrependida.

– Vamos, meu pai, diga-me, porque razão me pune desta maneira tão rude…?

– Você sabe, perfeitamente, que tudo isto é fruto de seus próprios erros. Eu a adverti da primeira vez, está lembrada? Mas, em vez de me dar ouvidos, preferiu pensar: “Ora, Wotan é um fraco! Que importa que lhe desobedeça?”

– Meu pai, você sentiu, tanto quanto eu, a dor de ver seu filho, Sigmund, ser morto pela espada daquele canalha… Você próprio o aniquilou, tão logo ele acabou de limpar a espada com a qual matara Sigmund! Oh, meu pai! Como poderia deixar de tomar o partido dele, que se mostrou tão corajoso, e da jovem e indefesa irmã?

– Você se deixou levar pelo amor e não pela lealdade que devia a mim! Por isso, deverá pagar com a perda da sua imortalidade.

Brunhilde parece cada vez mais conformada com o destino que a aguarda. Nada moverá o coração de Wotan à piedade. Porém, na esperança de ainda poder minorar a sua humilhação, ela faz novo pedido ao pai:

– Já que não pretende reverter a sua funesta punição, que me seja dado, ao menos, escolher o meu futuro marido, aquele ao lado do qual deverei passar o resto de meus poucos e penosos dias de vida. Não permita que um vilão ou fanfarrão qualquer me leve consigo e vilipendie, além da minha alma, o meu corpo também!

– Silêncio, atrevida! – exclama Wotan. – Não será você que determinará os termos de sua punição! Seu marido será o primeiro a chegar para despertá-la.

– Não!… Permita que seja Siegfried, o filho de Sigmund, aquele que me despertará para uma nova vida – mortal, é certo, mas ao menos digna. Terei, assim, como esposo, um homem que há de ser tão nobre quanto foi seu falecido pai.

– De nada adiantam, pérfida, as suas artimanhas! Seu marido será aquele que as Nornas determinarem.

– Não pode fazer isso, pois seria a sua própria desonra, meu pai! – exclama Brunhilde, tomada pelo pranto. – Estará condenando também toda a raça dos Walsungs da qual teu filho, Sigmund, foi o primeiro rebento.

– Rebento amaldiçoado…! – exclama Wotan, encolerizando-se outra vez. – Você amaldiçoou toda a raça dos Walsungs ao tomar o partido dela em vez do meu! Com Sigmund morto, eu poderia lançar as bênçãos de minha proteção sobre os filhos dele e também sobre aquela desgraçada, que agora, leva no ventre um rebento igualmente maldito! Sim, Siegfried também nascerá sob o peso de minha maldição!

– Não importa, meu pai! De qualquer modo, somente ele será digno de possuir meu corpo e de ser meu senhor, pois foi em nome de Sigmund e de sua descendência, que atraí esta cruel punição.

– Assim como outrora me deste as costas, farei agora contigo – responde Wotan, erguendo-se, como quem não tem mais nada a dizer. Brunhilde, em desespero, agarra-se às suas pernas, no último extremo do desespero e clama:

– Não, meu pai, não pode fazer isto! Mate-me, então, aqui está o meu peito! Antes perecer pelo golpe de uma espada, tal qual pereceu Sigmund, do que ter a honra enxovalhada pelo resto da vida…!

Neste momento, Brunhilde tem uma súbita inspiração.

– Meu pai, ouça-me uma última vez, antes de cumprir a sua vontade!

Wotan detém seus passos, embora sem voltar o rosto para a filha.

– Peça a Loki, que envolva o rochedo, onde meu corpo ficará adormecido, em um espesso anel de fogo! – diz a filha de Wotan, ao lembrar de Loki, que lambem é o deus do fogo. – Deste modo, os covardes ficarão impedidos de chegar próximos a meu corpo e dele somente o maior dos heróis poderá se aproximar!

Wotan tenta retrucar, mas, diante das súplicas insistentes de sua filha, termina por ceder. Afinal, ao preservar o resto de dignidade de Brunhilde, Wotan está resguardando o seu próprio e monstruoso orgulho de pai.

– Muito bem, que assim seja – diz ele. – Um fogo nupcial arderá sempiterno ao redor da rocha onde você estará, mantendo bem longe os fracos e os covardes. Somente um herói – um ser mais livre do que eu próprio! – poderá se aproximar e consumar as núpcias com Brunhilde, que será sua noiva e esposa.

Brunhilde lança-se aos braços do pai, agradecida por este arrefecimento de sua ira. –

Muito obrigada, meu pai! Ao menos, fico protegida da desonra e da vileza até que alguém, tão digno quanto você, possa me trazer de volta aos prazeres da vida!

– Prazeres que não mais os terei – diz Wotan, entristecido. – Por sua culpa, Brunhilde infiel, estarei privado para sempre de beijar os seus olhos e acariciar seus cabelos! Estes olhos que, agora, brilham, nunca mais brilharão para mim!

Wotan, abraçado a Brunhilde, conduz, lentamente, a filha até o alto de um grande rochedo escarpado. Um vento frio espalha os cabelos dourados da valquíria, bem como as barbas longas e escuras de seu pai. Após deitá-la sobre um dossel improvisado de folhas, Wotan toma sua cabeça nas mãos e deposita um beijo sobre seus olhos fechados.

– Meu beijo, agora, retira a divindade de sua alma – diz ele, soturnamente.

Brunhilde perde os sentidos instantaneamente. Wotan toma, então, do elmo daquela que deixou de ser uma valquíria e o fecha sobre o seu delicado rosto, colocando, em seguida, o grande escudo dourado sobre seu corpo para protegê-lo da chuva e das intempéries. Isso feito, ele toma de sua lança e bate a ponta contra o rochedo por três vezes, invocando Loki, o deus do fogo:

– Loki, poderoso, vem, agora, e envolve minha filha num anel de labaredas intransponíveis, para que mortal algum, despido de valor e coragem, possa transpô-lo!

Da ponta da lança de Wotan, brilha uma chama poderosíssima. O deus, apontando-a para o chão, vai riscando um grande círculo ao redor da rocha até fechá-la numa verdadeira muralha incandescente.

Wotan ainda observa por longos instantes a sua filha envolta naquele magnífico anel, ardente e encantatório.

– Doravante, somente aquele que enfrentar a ponta de minha lança estará apto a cruzar este círculo espesso de chamas e a desposar a bela e mortal Brunhilde!

Fim do Segundo Ato.

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Terceiro Ato


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