O Anel dos Nibelungos (Ato 2 – 3/4)

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III – A espada partida

Brunhilde cavalgava pelas alturas, solitária, em meio às nuvens escuras e carregadas. Nunca uma manhã surgira, com efeito, mais tenebrosa: um vento gélido empurrava massas escuras de nuvens, umas de encontro às outras, em direção ao horizonte, enquanto relâmpagos espocavam acompanhados pelo rolar contínuo dos trovões. Parecia mesmo que grandes rochedos rolavam pelos céus, arremessados de longe, com seu ruído assustador, aumentando de intensidade até atingir o auge sobre as cabeças dos pobres mortais que estivessem abaixo, enfraquecendo novamente ao desaparecerem no horizonte negro e assustador. A valquíria, entretanto, nada temia, prosseguindo a cavalgar entre as nuvens pejadas, ao mesmo tempo em que aspirava aquele odor benfazejo de chuva que tanto vigor e coragem lhe traziam à alma.

Normalmente, ela o fazia acompanhada de suas oito irmãs, sobrevoando altivamente os campos de batalha a escolher os guerreiros para compor o exército sobrenatural de seu pai. Hoje, entretanto, ela terá uma missão solitária – e funesta – a cumprir: sua mão deverá favorecer o inimigo de seu favorito. Sim, Brunhilde, hoje, será a mensageira da desgraça, aquela que levará a morte a Sigmund, seu meio-irmão e filho de Wotan.

A valquíria havia chegado, primeiro, à casa de Hunding, onde o filho de Wotan estava hospedado. Mas, ao chegar lá, encontrara tudo deserto: Sigmund e Sieglinde haviam fugido da casa, ainda antes do amanhecer, após terem se amado diante do grande freixo no meio da sala, aproveitando-se do sono profundo de Hunding. Na verdade, fora Sieglinde quem fugira primeiro, sozinha e às escondidas do irmão; este, entretanto, tão logo percebera a ausência dela, saíra em seu encalço.

Sieglinde não pudera suportar o peso de sua consciência: apesar de detestar o marido, que lhe fora barbaramente imposto, nem por isto julgava-se autorizada a infringir os laços que a uniam a ele. “Não, Sigmund, não podemos permanecer juntos!”, pensara ela, instantes antes de partir, ao observar as feições relaxadas de seu irmão. Além de tudo, ela sabia que também pesava sobre o seu amor o fato de ela e Sigmund serem irmãos, filhos do mesmo pai. “Os deuses jamais favorecerão um tal amor”, pensou, ainda, a jovem, “e, pior de tudo, acabaremos por atrair para nós uma terrível punição, pois Fricka, esposa de nosso pai, é uma deusa muito ciosa de seus sagrados princípios, dentre os quais estão a virtude e a fidelidade.”

Hunding não tomou conhecimento de nada disso, uma vez que estava drogado e a dormir em seu quarto. Somente após erguer-se, percebera a ausência dos dois irmãos, concluindo em instantes pelo inevitável: a traição e a fuga de ambos. De posse de sua espada, Hunding saíra, então, em perseguição aos dois fugitivos que levavam a vantagem de apenas algumas horas.

Sigmund, a esta altura, já alcançara a jovem Sieglinde em um desfiladeiro. Seus pés magoados a haviam obrigado a fazer uma parada.

– Sieglinde, espere! – disse ele, chegando ao local onde ela estava, exaurida.

– Não, Sigmund… fique longe de mim!… – disse a jovem, com a mão espalmada. –

Infringi os sagrados laços do matrimônio e devo ser punida por isto. Hunding, meu esposo, não tardará a cobrar com meu sangue – e com o seu, também! – o preço deste crime.

– Nada tema, Sieglinde, amada – responde Sigmund. – Veja, trago comigo Notung, a espada invencível de meu pai! Com ela, derrotarei Hunding e quem mais se atravessar em nosso caminho!

– Não, Sigmund, de nada adiantará espada alguma…! Estou desonrada, não compreende? Os deuses jamais perdoarão o fato de me ter entregue a você!

Como se fosse uma resposta preparada pelos deuses, ambos escutaram a seguir um estrépito feroz composto do latido de diversos cães e de trompas estridentes, que feriam o ar da manhã junto com os trovões e o assovio do vento.

– Ouça, Sigmund, é meu marido quem se aproxima! – diz Sieglinde, aterrada. –

Vamos, fuja logo daqui!

Nesse momento, uma névoa cobre os olhos de Sieglinde e ela cai ao solo, semi-inconsciente. Uma terrível visão surge-lhe, enquanto Sigmund a toma nos braços. Cães impiedosos avançam sobre o pescoço de seu irmão, dilacerando-o até a morte, enquanto sua espada está caída ao chão, feita em pedaços. Hunding, em pé, está pronto para desfechar o golpe fatal. Sieglinde desmaia, antes que tudo se consuma.

– Acorde, minha irmã! – diz Sigmund, tentando reanimá-la.

Brunhilde, que acompanha tudo do alto, desce até o casal, segurando sua lança.

– Sigmund, filho de Wotan…! -diz ela, com a voz firme. -Sou Brunhilde, filha, como você, do maior dos deuses.

Sigmund, assustado, parece não acreditar no que seus olhos vêem.

– Brunhilde… uma das valquírias!

– Sim, sou eu! – diz ela, postando-se ao seu lado. – E você sabe que somente àqueles que estão prestes a ingressar nas hostes do Valhalla é dado enxergar a qualquer uma de nós.

– Então… serei levado por você…? – exclama o jovem, sabendo perfeitamente o que isto significa. – Terei, então, de morrer nas mãos de meu inimigo?

– Infelizmente, filho de Wotan. Seu pai assim decidiu; nada há a ser feito.

– Meu pai estará à minha espera nos salões do Valhalla?

– Sim, ele e os demais guerreiros que lá estão preparam-lhe, desde já, uma gloriosa recepção.

Sigmund sente que nada pode opor a um decreto divino.

– Está bem… se é este o decreto, estou pronto a me submeter a ele – diz Sigmund, curvando a cabeça em assentimento. – Sieglinde seguirá comigo?

– Não, jovem guerreiro, somente você deverá partir.

Sigmund, então, erguendo-se, faz à valquíria um gesto peremptório de recusa.

– Agradeça, então, em meu nome, a meu pai e a todos os demais. Ficarei aqui com minha amada Sieglinde; os prazeres sem amor do Valhalla de nada me servem.

– Estúpido!… – exclama Brunhilde. – Hunding irá matá-lo de qualquer jeito e sua espada vai se quebrar em cacos em suas mãos. Nada pode ser feito que possa impedir as coisas de serem assim e não cabe a você decidir quem seguirá, ou não, com você.

Quanto a Sieglinde, esqueça-a; eu a protegerei da ira de seu marido, pois um glorioso filho está destinado a nascer da sua união com ela, Sigmund.

– Não, não deixarei que ninguém a defenda! – diz Sigmund, abraçando-se à sua amada que permanece desmaiada em seus braços. – Esta tarefa é minha -só minha! – e se meu braço não for forte o bastante para fazê-lo, então, não me restará outro recurso senão matá-la eu próprio para que ninguém tire dela sangrenta desforra!

– Ousa, então, enfrentar seu próprio pai, Wotan?

– Defenderei minha amada de qualquer um que pretenda afastá-la de mim!

Sigmund herdou o sangue do pai; tão inflexível quanto ele, não permitirá jamais que alguém lhe dite um funesto destino. Brunhilde sabe disto. Ao observar o jovem com a amada nos braços, resigna-se a tomar o partido de ambos.

“Oh, meu pai, me perdoe a desobediência, mas não posso desampará-los!”, pensa ela, voltando, compungidamente, os olhos para o céu.

– Está bem, filho de Wotan, estarei ao seu lado na batalha que travará contra Hunding – diz a valquíria, empunhando a sua lança. – Não posso ir contra o amor de vocês, mesmo que isto me obrigue a desobedecer meu próprio pai!

– Cuide bem dela, valquíria, se lhe tem amor e ao filho que ela traz em suas entranhas! – diz Sigmund, depositando, delicadamente, a cabeça de Sieglinde ao solo e empunhando sua espada Notung. Depois, dirige seus passos com decisão para o lado de onde vem o estrépito das trompas e dos cães de Hunding.

Sieglinde ainda delira e, agora, revive os terríveis momentos da separação de seu pai e seu irmão há muitos anos:

“Mamãe, quem são estes homens…? Eles nos querem fazer mal, mamãe…? Por que papai demora tanto na floresta…? Oh, não, afastem-se de minha mãe, deixem-na… Oh, estas chamas…! Não, não…!”

Enquanto isso, Sigmund e Hunding já estão frente à frente. Suas espadas desembainhadas reluzem. Relâmpagos e trovões cortam os céus como se, no alto, os raios também brandissem entre si os seus espadins recurvos. Uma chuva intensa desaba sobre os dois guerreiros.

– Aí está, então, o patife! – exclama Hunding, encolerizado. – Quer dizer que, não satisfeito em ter dizimado meus parentes, ainda ousa afrontar a minha honra dentro de minha própria casa…?

Sigmund permanece em silêncio; toda a sua mente está voltada para o manejo correto que deverá dar à sua Notung afiada. Um relâmpago ilumina a cabeça do filho de Wotan (nem ele nem seu oponente podem perceber que se trata de Brunhilde, a valquíria, quem ali está para dirigir os golpes de seu escolhido).

Hunding, contudo, hábil no manejo da espada, apara o golpe lançado pelo filho de Wotan. Faíscas e respingos da chuva explodem para todos os lados a cada choque das lâminas. O marido de Sieglinde lança um bote contra o peito de Sigmund, mas, mais uma vez, Brunhilde lança um clarão que o cega momentaneamente.

– O que é isto, afinal? – brada Hunding aos céus. – Permitirá, então, Wotan poderoso, que a própria natureza tome o partido deste bastardo miserável, desonrador de um lar e de uma família?

Brunhilde, assustada, tenta neutralizar as palavras do guerreiro.

– Silêncio, maldito! – diz ela, mas sua voz se perde em meio ao fragor da tempestade. – Mas, para mal de Sigmund, Wotan escutou o apelo de Hunding e, agora, acorre ao campo de luta, cego de fúria pela desobediência de sua filha. Montado em Sleipnir, seu veloz cavalo de oito patas, Wotan chega ao local do combate, armado com sua poderosa lança e oculto por uma nuvem tempestuosa.

– Brunhilde, ousaste desafiar a minha autoridade? – brada o deus, encolerizado.

A valquíria, diante da presença do pai, sente-se intimidada.

– Meu pai, deixe que Sigmund derrote Hunding!

– Vamos, saia já daqui, filha desnaturada!… – diz Wotan, expulsando-a com um gesto rude de sua lança poderosa.

Brunhilde afasta-se do palco do combate, sem forças para se opor diretamente ao pai. Ela sabe que uma gravíssima punição a aguarda e lamenta apenas não poder mais oferecer ajuda a Sigmund, o qual fica entregue, irremediavelmente, ao mais funesto destino.

A vantagem do combate, entretanto, ainda pende nitidamente para Sigmund; seu oponente, exaurido, tenta inutilmente fazer frente aos golpes da invencível espada Notung, mas a mortal algum é dado escapar de seu fio afiado, se um poder mais alto não a impedir de completar sua obra.

Wotan, percebendo que Hunding não resistirá por muito mais tempo às investidas de seu filho, empunha sua lança e com ela vibra um golpe certeiro à espada, que cai despedaçada ao solo. Sigmund, atônito, vê ruir em suas próprias mãos a sua única possibilidade de vitória. Em seu coração, ele clama “Oh, meu pai, tiraste das minhas mãos a minha vitória!”

Hunding, sem esperar outra oportunidade, arremete com sua espada contra o peito do adversário indefeso e a enterra até o cabo. Sigmund sente a lâmina trespassar o seu peito e compreende que o seu fim chegou.

O filho de Wotan cai morto ao solo, misturando seu sangue à água copiosa da chuva que encharca a relva, enquanto Brunhilde corre até Sieglinde, disposta a tudo para defendê-la da fúria de Hunding ou de seu irado pai.

– Onde está aquela infame? – exclama Hunding, brandindo sua espada ensangüentada. – Quero misturar o sangue de ambos no mesmo gume!

Mas Brunhilde já colocou a frágil mulher sobre o cavalo e partiu com ela a toda velocidade para bem longe da espada vingadora de seu marido.

***

Wotan está, agora, diante do corpo de seu filho morto. Cumpriu-se o destino a que ele fora forçado. Olhando para Hunding, diz-lhe com um tom de escárnio: – Vai, maldito, até Fricka e lhe diga que sua honra mesquinha está finalmente vingada!

Mas a dor e a ira em seu coração são tão grandes, que não pode impedir a si mesmo de, com um gesto de mão, fazer com que Hunding caia também morto ao solo.

Sem dar mais atenção ao assassino de seu filho, Wotan volta, agora, os olhos paru o céu, na direção para onde sua filha Brunhilde partiu, levando consigo a infeliz Sieglinde.

Seu cenho carregado não deixa dúvida sobre o seu estado de espírito: Brunhilde, a valquíria, terá de pagar pela afronta que fez ao pai.

IV – A ira de Wotan


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