O Anel dos Nibelungos (Ato 4 – 4/7)

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IV- O engano é desfeito

– Hagen, meu filho, enquanto você dorme, ouça o que tenho a lhe dizer!…

Alberich, o pai de Hagen, está diante do filho, no salão dos Gibichungs. Seu filho está sentado próximo ao trono, portando seu escudo e sua lança. Alberich, ao lado, interroga-o, como se estivesse se dirigindo a um sonâmbulo.

– Como vai, então, nosso negócio?… o nosso pequeno e precioso anel…?

– Meu pai… – responde Hagen, sem contudo despertar.

– Não o gerei para outro propósito, Hagen, você sabe disso…

Hagen, o filho do anão, surgira da união de Alberich e Grimhilde. O anão comprara os favores da esposa de Gibich apenas com um único objetivo: o de gerar Hagen, um instrumento de carne e osso para a concretização de sua vingança.

– Hagen, meu filho… sim ou não, você não deve jamais negligenciar a sua missão…

a nossa missão!

Alberich observa as feições atormentadas do filho adormecido; as feições do anão, contudo, não deixam transparecer o menor sinal de afeto ou mesmo do mais comezinho respeito pelo filho. O interesse por reaver o anel é o único motor de seus atos e o laço a ligá-lo àquela criatura que chama de seu amado filho.

– Você dorme, Hagen, o sono vela suas pálpebras docemente… Mas como pode dormir, filho querido, quando seu pai não sabe o que é sono há tanto, tanto tempo…?! Oh, Hagen, volta teus olhos para teu pai, para o sofrimento de teu pai!

– Eu o obedeço, meu pai… o obedeço desde sempre… – diz o filho, num tom lamurioso.

– Isto, isto…! Mas deve obedecer mais… Oh, sem dúvida deve, certamente, esforçar-se mais, sempre mais, para um pai que tudo lhe deu, que fez de você irmão de um rei e de uma rainha! Sim, veja esta bela corte onde você vive, este belo salão onde agora repousa o seu cansaço – cansaço de muitas diversões, decerto, que não faltam por aqui, mas muito pouco de servir a teu pai no que verdadeiramente importa…

– Não, meu pai, não! – exclama molemente Hagen, sempre de pálpebras cerradas. –

Tenho feito tudo… para o alegrar…

– Vamos, conte-me, então, o rumo de nossos assuntos.

– Siegfried deve retornar em breve…

– Siegfried…!

– Junto com ele… trará Brunhilde…

– Brunhilde…!

– … e o anel, meu pai, o meu anel!

– Oh, sim, o meu anel! O meu precioso anel!

– Falta pouco… antes, terei de destruir Siegfried!

– Destruir, claro…! Destrua a tudo e a todos, se preciso for! Hagen, eu preciso escutar de sua boca um juramento, um juramente solene de fidelidade!

– Sim, meu pai…

– Jure que conseguirá o anel para mim, agora, vamos, jure!

– Juro que o conseguirei!

– Para mim, meu filho, pense sempre no seu pai!

Alberich pressente um ruído e se assusta. Embuçando-se em seu manto, ele se afasta, sob a luz da aurora que, timidamente, insinua-se pela grande janela ogival da sala do trono.

– Seja sempre fiel a mim, Hagen, nunca se esqueça disto! Seja fiel, fiel, fiel…!

***

– Eia, Hagen, acorde! – exclama Siegfried ao entrar no grande salão. – Já estou de volta e Brunhilde já está chegando junto com Gunther! Ambos descem o Reno em um formoso barco e devem chegar aqui em pouco tempo.

Hagen toma um susto e quase chega a cair de sua cadeira.

– Mas como?… Já retornou?

– Sim, enquanto você dorme, descansadamente, eu resolvo as coisas por aqui! Onde está Gutrune, irmã de Gunther? Meu coração anseia por rever aquela que me foi prometida para esposa!

Gutrune, entretanto, já escutou a voz de seu amado e corre pelos corredores do palácio ao encontro de Siegfried.

– Oh, Siegfried, que bom tê-lo de volta!

– Gutrune, minha amada!

Os dois abraçam-se fervorosamente. Hagen, por seu lado, observa a tudo, satisfeito; as coisas estão correndo conforme o planejado.

– Como fez para atravessar as chamas de Loki? – pergunta Gutrune, ansiosa por saber os feitos do amado.

Siegfried conta-lhe do artifício do elmo de Tarn, que lhe possibilitou assumir a aparência de seu irmão Gunther.

– Você… esteve com ela?… – pergunta Gutrune, temerosa de que Siegfried tivesse ido além do que teria sido justo e honroso, tanto para ela quanto para seu irmão.

– Esteja tranqüila, Gutrune querida; não fui além do que manda o recato que devo a você e a seu irmão. Jamais o desonraria, nem a você.

Gutrune parece aliviada com a resposta de Siegfried. Hagen, contudo, está ausente de tudo, pois acabou de perceber que o herói traz em seu dedo aquele objeto tão ambicionado por ele e seu pai:

“O anel, o precioso anel, está ali, no dedo de Siegfried!”, pensa Hagen, sem poder acreditar no que seus olhos vêem. Imediatamente, sua mente começa a cogitar um plano para se apossar do objeto de seu desejo. “E, se tanto Gunther quanto Gutrune fossem levados a crer que este fanfarrão aproveitara a privacidade da gruta para violar Brunhilde, esposa de Gunther?”, pensa ele. “A pena seria, sem dúvida alguma, a da morte!”

De repente, um lacaio surge porta adentro para avisar:

– Gutrune, já se avistam as velas do barco que conduz seu irmão Gunther e sua esposa Brunhilde em direção à praia!

Gutrune volta-se para Hagen e lhe diz, banhada num irreprimível sorriso:

– Vamos, faça soar a trompa das boas-vindas! Convoque, imediatamente, o povo para a recepção que faremos ao rei e à nova rainha!

Sem esperar segunda ordem, Hagen dá cumprimento às determinações tia irmã do rei. Logo, uma multidão incalculável de pessoas está reunida diante de Hagen.

– Gunther, vosso rei, está de volta! Honra a ele e à sua esposa!

Gritos de triunfo e alegria explodem entre o povo ajuntado.

– Deveis estar todos preparados para festejá-la e também para defendê-la em caso de alguma injúria que qualquer um ouse lhe fazer!

– Sempre a defenderemos! – exclamam as vozes exaltadas da plebe reunida.

Tão logo Gunther e sua esposa Brunhilde desembarcam, são recepcionados por Gutrune, Hagen e Siegfried. Brunhilde está abatida e não demonstra nenhuma felicidade por desembarcar na condição de esposa de Gunther. Este, contudo, está radiante e exclama para todos os presentes, com a voz embargada pelo entusiasmo:

– Aqui está, meus súditos, uma rainha digna de vós todos! Nenhuma rainha, com efeito, poderia ser mais nobre, sendo filha, que é, do próprio pai Wotan!

O povo explode em nova remessa de alegria, enquanto gritos exaltados proclamam avidamente: “Viva a rainha, que está entre nós! Ela é a filha de um deus!”

Gunther ergue a mão, impondo o silêncio à turba.

– Dois casamentos serão realizados em seguida! – diz ele, dando a boa nova ao povo. – Pois minha irmã Gutrune também se casará com Siegfried, o maior dos heróis, cujo sangue descende também de Wotan!

Brunhilde, ao escutar o nome de seu amado, fica estarrecida. Ao erguer a cabeça, que mantivera sempre abaixada, depara-se com Siegfried, que está postado ao lado de Gutrune, como seu legítimo esposo.

– Siegfried?… – diz ela, que treme de maneira descontrolada. – É mesmo você?

O jovem a olha nos olhos, porém, sem reconhecê-la mais do que a reconhecera quando fora iludi-la no rochedo, disfarçado de Gunther.

– Sim, sou Siegfried, verdadeiro herói, e vou me casar com Gutrune, irmã de Gunther, que também passou a ser meu próprio irmão, desde que unimos nosso sangue em um pacto inviolável.

– Mas… como pode? Não me reconhece, então?

– Lamento, Brunhilde, mas nunca a vi em minha vida.

Brunhilde fica desesperada, sem saber o que pensar. Estará ele mentindo? Terá ficado tão insensível a ponto de fingir não mais reconhecê-la? Seus olhos, no entanto, parecem falar a verdade… Tomada, então, por um acesso de incon-trolável pranto, Brunhilde reclama do destino em altas vozes. Siegfried, constrangido por aquela inesperada reação, pede a Gunther que acalme sua esposa.

– Não, nada nem ninguém me fará aceitar esta traição! – exclama a filha de Wotan, com os olhos repletos de lágrimas. E é, neste instante, que repara, tal como Hagen anteriormente fizera, no anel que Siegfried traz em seu dedo.

– Este anel! – diz ela, apontando para a mão de Siegfried. – O que ele faz em sua mão?

Os vassalos parecem estarrecidos com aquela observação. Hagen, no entanto, aproveita-se da situação para criar um clima de desconfiança contra Siegfried.

– Atenção, ouçam todos o que Brunhilde tem a dizer! Parece que tem alguma acusação a fazer contra o noivo de Gutrune?

Sem dar ouvidos a Hagen, Brunhilde insiste:

– Este anel!… Gunther tomou-me à força, quando foi me raptar na montanha! Como foi parar em seu dedo? Gunther lhe deu, por acaso?

Confuso e sem saber o que dizer, Siegfried exclama, atrapalhado:

– Não, é claro que não o roubei de Gunther, nem tampouco o recebi dele!

– Então, como está aí em seu dedo? – exclama Brunhilde, furiosa, começando a entender a trama de que fora alvo. Ela se volta, então, para seu noivo Gunther em busca de uma explicação. – Este anel é seu por direito! Você o tomou de mim aquele dia na gruta! Como explica que esteja, agora, nas mãos deste traidor?

– Eu não o roubei de ninguém! – exclama Siegfried. – Conquistei-o, legitimamente, ao derrotar o dragão Fafner em leal combate!

– Ouçam o que Brunhilde tem a dizer! – grita Hagen, desviando a atenção de Siegfried para as palavras da esposa de Gunther, que agora clama ter sido ultrajada.

– Traída, traída! – grita ela, ávida por se vingar de Siegfried. – Foi ele quem me violou dentro da gruta, não Gunther! Ele traiu a confiança de Gunther e se aproveitou da artimanha para desfrutar de meu corpo, que não lhe pertencia. Sim, não foi Gunther quem me fez sua esposa, mas Siegfried, o infame!…

– Não, não é verdade! – interpõe-se o herói, tentando desfazer o engano. – Eu coloquei Notung, a minha espada, entre mim e ela. Nada houve entre nós, asseguro isto a você, meu irmão Gunther!

– Mentira! – diz Brunhilde, sem medir suas palavras. – A espada esteve a noite toda pendurada na parede dentro de sua bainha!

– Siegfried, é preciso que faça um juramento solene, se deseja prosseguir a desmentir as gravíssimas acusações que minha esposa lhe faz! – diz Gunther, tomando de uma lança que Hagen lhe ofereceu. – Agora, deverá jurar solenemente, colocando dois dedos de sua mão direita na ponta desta lança!

– Se agi com falsidade em relação a Gunther ou a Brunhilde, que esta lança perfure o meu coração!

– Que ela o atinja, de fato, por sua vil traição a mim e a todos desta casa! – diz Brunhilde, retirando a mão de Siegfried da lança e colocando nela a sua.

Siegfried dirige-se, diretamente, a Gunther:

– Você sabe que eu jamais trairia a sua confiança, meu irmão – pois assim o considero, desde que unimos nosso sangue em um pacto fraternal – e, por isso, rogo que não dê ouvido às acusações de sua esposa; elas são produto do nervosismo que a acomete desde que foi retirada de seu abrigo. Dê-lhe mais alguns dias para que se conforme com sua nova situação e para que possamos, assim, começar todos uma nova vida; você com Brunhilde e eu com sua irmã Gutrune.

Gunther, depois de refletir por alguns instantes, decide aceitar o conselho de Siegfried. Reúne, então, o povo e ordena que os festejos prossigam.

– Hoje, é dia de festa em todo o Reno e não de disputas e desentendimentos; que a alegria volte a reinar em todos os recantos do país, pois se aproxima o dia do casamento meu e de Gutrune com os dois estrangeiros!

V – A conspiração


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