A fundação do Reino de Israel

A formação dos reinos nacionais israelitas em solo palestinense teve de esperar um tempo surpreendentemente longo. Se ela ocorreu depois, simultaneamente ou antes da formação das monarquias entre os povos da periferia transjordânica, Amom, Moabe e Edom, não se pode afirmar com certeza; pois os textos do AT, dos quais se pretendeu tirar pistas para a existência de monarquias na Transjordânia já no período dos Juizes, são difíceis de extrair informações nesse sentido.

Mas também independentemente da comparação com os povos vizinhos, está suficientemente claro que as tribos israelitas permaneceram, após a tomada da terra, por muito tempo sem instituírem uma monarquia. As razões para isso são variadas. Por um lado, é de se considerar a forma especial de vida das tribos na terra cultivada. De início Israel não era muito mais do que uma associação de tribos politicamente muito solta, territorialmente heterogênea, internamente não isenta de tensões, mas unida pela adoração conjunta ao Deus Javé. Essa associação deixava a preocupação com a segurança externa e interna por conta de cada um dos próprios clãs e tribos; em casos de emergência, também a agrupamentos de tribos. Expresso de forma israelita: deixava o salvamento de perigos e de ameaças por conta de Javé, que, de caso em caso, despertava carismáticos para afastar perigos de Israel e de seus membros. Enquanto as ameaças eram agudas e localizadas, isso pode ter bastado. Não havia necessidade de uma concentração uniforme de todas as forças num só Estado nacional.

Por outro lado, entretanto, deve ter havido inibições internas contra a formação de um Estado e contra a realeza, das quais a tradição veterotestamentária ainda conserva vestígios. E verdade que os chamados textos antimonárquicos ou críticos ao rei2 surgiram preponderantemente, se não totalmente, em épocas posteriores, refletindo, portanto, a polêmica contra a instituição do reinado já existente3. Mas, com toda a probabilidade, o motivo decisivo da rejeição da monarquia, a saber, a reivindicação do poder teocrático de Javé, já existia no Israel pré-estatal: não em forma de uma constituição teocrática, como na época pós-exílica, mas, antes, como convicção de que Israel não necessitava de um rei, porque já tinha o rei Javé. Em lugar nenhum se expressa isso de maneira mais fundamental do que em Jz 8.22s.: “ Então os israelitas falaram para Gideão: ‘Governa sobre nós, tu e teu filho e teu neto, pois nos salvaste da mão dos midianitas!’ Gideão lhes respondeu: ‘Não governarei sobre vós, nem meu filho governará sobre vós; Javé governará sobre vós!’” 4 Nesse princípio teocrático se evidencia o comprometimento de Israel com a vontade e a reivindicação de poder de seu Deus: aquilo, portanto, que havia constituído Israel como grandeza histórica, que perfazia sua particularidade, sendo, portanto, inalienável.

Apesar disso, chegou-se finalmente à formação de uma monarquia em Israel. No início, porém, foi necessário passar por um processo de aprendizagem. Com o manassita Abimeleque (Jz 9) houve uma primeira tentativa de instituir a monarquia, que, no entanto, estava fadada ao fracasso5. Os problemas literários de Jz 9 são difíceis de solucionar. Provavelmente um antigo cerne da época pré-estatal passou por diversas reelaborações, nas quais crescentemente vingou a tendência antimonárquica6. Além disso, é incerto se originalmente o capítulo pertencia à obra historiográfica deuteronomista ou não. Martin Noth7 acreditava dever responder esta pergunta afirmativamente, apontando para Jz 8.28-35, o texto deuteronomista que faz a costura do complexo de Gideão com a história de Abimeleque. No entanto, é possível fazer valer argumentos contrários, sobretudo a circunstância de que Jz 9 não cabe na moldura deuteronomista para o período entre a tomada da terra e a formação da monarquia. Este capítulo não constitui uma saga heróica à semelhança das tradições acerca dos Juizes Maiores, mas uma narrativa histórica, uma peça de historiografia israelita primitiva. Seja como for: em todo caso, já na época pré-deuteronomista a tradição relacionou Abimeleque com Gideão, porque Abimeleque era o filho de um certo Jerubaal e natural de Ofra, em Manassés (Jz 9.1). Jerubaal, entretanto, é o nome que, de acordo com Jz 6.25-32, Gideão teria recebido; e o local de nascimento de Gideão era igual- mente Ofra (Jz 6.11). E muito provável que, originalmente, Jerubaal fosse uma figura independente, que, no entanto, a tradição já cedo identificou com Gideão8. Não se consegue mais verificar se Abimeleque era, de fato, o filho desse Jerubaal identificado com Gideão, ou se há mera coincidência de nomes.

A tentativa de Abimeleque de instituir uma monarquia deve ser entendida e avaliada historicamente se se levar em consideração a origem de Abimeleque. Do lado paterno, era um israelita, natural da localidade manassita de Ofra; do lado materno, pertencia à nobreza urbana cananeia de Siquém. Essa singular duplicidade é um sintoma da situação especial da tribo de Manassés, que, desde a tomada da terra, vivia em estado de dispersão entre e simbiose com as cidades cananeias de seu território. A partir desse duplo contexto também devem ser entendidas as intenções políticas de Abimeleque. Este encontrou unidades pequenas e minúsculas, com uma estrutura não idêntica, mas semelhante: por um lado, a cidade-Estado cananeia de Siquém, governada aristocraticamente, e, por outro lado, a comunidade de Ofra, dirigida por anciãos manassitas locais. Sentia-se comprometido com ambas. Assim, amadureceu nele a resolução de substituir a aristocracia de cada uma das duas unidades por uma monarquia e unificar as monarquias numa única pessoa. Inicialmente foi bem-sucedido ao levar os senhores da cidade de Siquém a ceder-lhe um posto de liderança que correspondia, mais ou menos, à tirania grega. Com recursos financeiros do templo siquemita, aliciou, em seguida, uma tropa de mercenários formada por elementos que haviam decaído de sua posição social e rompido com a ordem vigente. Assim, invadiu Ofra e erradicou a aristocracia manassita do lugar. Depois que ele, por meio desse violento golpe de Estado, conquistou a soberania sobre Ofra, os cidadãos de Siquém não hesitaram mais em proclamá-lo rei de Siquém. Em cidades-Estado cananeias, a mudança de oligarquia para monarquia parece ter sido um processo normal. O domínio obtido desse modo pôde servir de base para outros planos políticos — se bem que fosse uma base desigual, pois não se pode comparar o reconhecimento espontâneo de Abimeleque pelos siquemitas com a apropriação violenta de Ofra.

Apesar da resistência a seu reinado, sustentada provavelmente sobretudo pela parte manassita, Abimeleque se impôs. A posse de Siquém, a “rainhanãocoroada da Palestina” (Albrecht Alt), ensejou-lhe uma posição-chave, especialmente favorável no sentido topográfico, para outras pretensões de expansão. A meta de Abimeleque parece ter consistido em ampliar sua base de poder através da adição e anexação de outras unidades políticas menores. Teve sucesso nisso. Pode-se percebê-lo no fato de que, certa vez, transferiu sua sede residencial para Arama (Tell el-‘Orme), situada a uns 10 km a sudeste de Siquém. Talvez isso permita concluir que houve dificuldades internas em Siquém. Em todo caso, não demorou muito para que eclodisse uma revolta aberta contra Abimeleque. De sua parte, os siquemitas aliciaram assaltantes de estrada contra ele e confiaram a um recém chegado, que se chamava Gaal, a organização da resistência. Quando já nem mesmo Zebul, seu fiel preposto siquemita, conseguia mais nada, Abimeleque viu-se obrigado a atacar Siquém com a força das armas e a destruir sua própria base. Assim, serrou o galho no qual se encontrava, tornando inevitável sua queda. A estrutura de governo se desintegrou em seus elementos. Abimeleque entrou na defensiva e finalmente tombou de maneira inglória durante o sítio de Tebes: uma mulher jogou uma pedra de moinho sobre sua cabeça, esmagando seu crânio; um servo lhe desferiu o golpe de misericórdia.

As razões do malogro da política de Abimeleque são óbvias. Tanto quanto se pode perceber, sua tentativa de fundar uma monarquia foi exclusivamente obra pessoal e não tinha o apoio de círculos mais amplos, certamente não de israelitas. Abimeleque não podia se apoiar no exército popular da tribo de Manassés, muito menos nos contingentes militares de outras tribos israelitas. A única força militar de que dispunha eram seus mercenários. Assim era quase impossível que surgisse uma estrutura capaz de lhe dar sustentação. Ademais, o empreendimento de Abimeleque era de cunho tipicamente cananeu. Não se tratava de uma inovação em direção a um Estado nacional, mas da incorporação dos territórios de unidades menores a um centro, a cidade-Estado. Esse Estado territorial lembra o sistema político sob Labaia, de Siquém, e seus filhos, ou, então, o Estado amorreu da Síria Central sob Abdiashirta e seu filho Aziru — ambos durante a época de Amarna. Porém estados territoriais supranacionais surgem, em regra, por meio da desistência consciente do princípio primário do Estado nacional — como mais tarde no império de Davi — e necessitam com urgência de uma consolidação institucional. Para tanto Abimeleque não teve tempo; algo assim talvez estivesse realmente fora de suas possibilidades. Por fim, talvez ainda não estivesse maduro o tempo para juntar cananeus e israelitas à frente de uma mesma carroça; as contradições e animosidades ainda eram grandes demais. Assim, a tentativa de formar um Estado feita por Abimeleque foi uma tentativa com meios imprestáveis. Tudo o que pudesse resultar dela teria de terminar junto com seu criador. Num exercício exemplar, Abimeleque mostrou a Israel como uma estrutura duradoura de Estado não poderia ser criada. Sua derrocada deve ter repercutido entre as tribos israelitas e fortalecido substancialmente as tendências antimonárquicas.

Mas, se for certo que a formação de um Estado nacional israelita não necessariamente resultou das formas de vida das tribos pré-monárquicas, ela deve ter sido consequência de pressões externas: pressões que estavam fundamentadas na situação histórica da Palestina por volta da virada do 22 para o 2 milênio a.C. Este é, de fato, o caso, e neste sentido a primeira formação estatal israelita foi produto de uma emergência. A ameaça a que as tribos se viram expostas, no entanto, não veio dos antigos impérios orientais do Nilo e da Mesopotâmia. Esses impérios se encontravam, naquela época, num estado de fraqueza que não lhes dava condições de avançar para além de suas fronteiras. Particularmente o Império Novo egípcio, cuja hegemonia sobre a Síria Central e a Palestina de modo algum se extinguira, se desintegrava mais e mais sob os ramessidas posteriores da 20a dinastia, os reis tanitas da 21a dinastia e os príncipes sacerdotais de Amom de Tebas. O Egito estava desunido internamente, e seu domínio sobre os territórios estrangeiros existia somente no papel. Essa situação política global favoreceu a formação da monarquia israelita. A ameaça também não veio dos estados periféricos da Transjordânia, nem dos nômades das margens do deserto, e nem mesmo dos cananeus. Desses inimigos as tribos israelitas se haviam libertado sob a liderança de carismáticos vocacionados por Javé — e isso aparentemente bastava. A ameaça veio dos filisteus.

Os filisteus, uma parte do movimento dos povos do mar1, haviam avançado até o sul da planície litorânea palestinense na época de Ramsés III e de seus sucessores, e talvez tenham sido até mesmo assentados aí como colônia militar dos egípcios. Quando o poder do Egito retrocedeu, restringindo-se à terra do Nilo, eles sentiram-se como os sucessores naturais da dominação egípcia na Palestina. Começaram a avançar para além do território de sua pentápole no litoral, com o propósito de submeter a seu controle o resto da Palestina. Inicialmente não precisavam contar com nenhuma resistência militar séria. Seus príncipes12 dispunham de uma infantaria fortemente armada (1 Sm 17.4-7), mas sobretudo de comandantes de mercenários que eram aquinhoados com feudos e tinham a obrigação de, junto com seus mercenários, prestar serviços militares a seu príncipe (1 Sm 27.2-12; 29.1-11). Com isso, as forças filisteias superavam os contingentes recrutados do exército popular das tribos israelitas, que era de difícil mobilização.

Vez por outra se consegue, em lampejos esparsos do AT, captar pormenores da expansão filisteia. Decerto submeteram rapidamente a seu domínio a planície litorânea até o Carmelo; não conhecemos detalhes a respeito, já que, para Israel, isso ainda não representava nenhum perigo. A situação tomou-se preocupante quando os filisteus apareceram na região de colinas (Shefela). O lugar de concentração preferido de suas tropas era Afeque (Tell Ras el-‘Ayn), perto da fonte do Nahr el-‘Odja (1 Sm 4.1; 29.1). Ali também ocorreu o primeiro confronto maior com um contingente do exército popular israelita (1 Sm 4). Os filisteus bateram os israelitas e se apoderaram, como parte do despojo, da arca de Javé. Depois disso, apareceram também em Queila (Tell Qila), cerca de 40 km a sudoeste de Jerusalém (1 Sm 23.1). Finalmente avançaram sobre a região de montanhas e instalaram ali postos fixos para fins de dominação e fiscalização: na Gibeá benjaminita (Tell el-Ful; 1 Sm 10.5), em Geba (Djeba‘; 1 Sm 13.3) e no desfiladeiro de Micmás (Wadi eç-Suwenit junto a Muhmas; 1 Sm 13.23), até mesmo na Belém judaíta (2 Sm 23.14). Desses postos despachavam destacamentos (mashhit) pelas montanhas, a fim de manter a ordem e talvez também para arrecadar tributos (1 Sm 13.17; 14.15; 23.1).

Não se consegue apurar até que ponto os filisteus conseguiram consolidar seu domínio na região montanhosa; em todo caso, a Galileia e a Transjordânia não foram atingidas. Sobre as consequências da expansão filisteia 1 Sm 13.19s. diz: “ Entretanto, não se encontrava ferreiro em toda a terra de Israel; é que os filisteus pensavam que os hebreus poderiam fabricar espadas ou lanças para si. Assim, todo o Israel tinha de descer até os filisteus, se alguém quisesse mandar afiar a relha de seu arado, sua enxada(?), seu machado e sua aguilhada”. Temos aqui nada mais nada menos do que um monopólio do ferro, combinado com uma proibição de armas: mesmo que a informação seja exagerada e generalizada, ela comprova, em todo caso, a existência de efeitos paralisantes do domínio filisteu.

Dessa ameaça, que, em contraposição a perigos anteriores, já não era aguda e localizada, mas crônica, resultou a formação da monarquia israelita. 0 AT relata a respeito disso em 1 Sm 8-11. A análise literária desses capítulos é difícil e a pesquisa veterotestamentária está muito longe de um consenso. Isso, naturalmente, também se aplica à credibilidade histórica do material das fontes. Pode-se partir do fato de que a formação do complexo de 1 Sm 8-11(12) foi um processo histórico-traditivo e literário bastante complicado, que não se pode mais elucidar em todos os detalhes. Várias tradições de sagas, às vezes concorrentes, às vezes complementares, a respeito do surgimento da monarquia se combinaram com reflexões teológicas sobre a essência e o valor da monarquia.

Surge, assim, a pergunta pela delimitação das unidades originais, bem como a questão acerca de se, e até que ponto, cada uma das partes está relacionada com as demais ou se sua combinação é obra redacional. Em todo caso, continua sendo mérito de Julius Wellhausen ter possibilitado a distinção elementar de dois grupos de textos: um que combina o surgimento da monarquia com juízos de valor (a chamada linha antimonárquica ou crítica à monarquia: 1 Sm 8.1-22a; 10.17-27; 11.12-14; e, como apêndice, 12) e outro grupo que apresenta as narrativas sobre o surgimento da monarquia, por assim dizer, de forma neutra (a chamada linha pró-monárquica: 1 Sm 9.1 — 10.16; 11.1-11,15)16. Ambos os grupos de textos decerto não formaram originalmente uma sequência narrativa, mas cada um é, por sua vez, produto de composição: uma constatação que, do ponto de vista histórico, não é tão importante quanto a questão de sua confiabilidade.

(12)17: 1 Sm 8 é um relato em que os filisteus nem sequer aparecem18. O primeiro impulso para a formação da monarquia vem, pelo contrário, da insatisfação com o modo como os filhos de Samuel exercem seu cargo de juizes. Esta insatisfação é que motiva os anciãos de Israel a chegar, certo dia, a Ramá, a fim de solicitar de Samuel um rei, como outros povos também o têm. O motivo principal, portanto, é imitar uma instituição que Israel não possui, mas que outros povos têm. É vão refletir sobre a pergunta a respeito de que outros povos os anciãos tinham em mente, os povos periféricos da Transjordânia ou os cananeus. É que não estão em jogo pormenores, mas um princípio. Este princípio deixa Samuel consternado. Samuel consulta Javé, que declara a questão toda uma ameaça à sua teocracia: a pretensão de Israel não se voltava contra Samuel, mas contra o próprio Javé, o verdadeiro rei de Israel. Mesmo assim, Javé dá a Samuel a ordem de atender a solicitação do povo. A monarquia é, portanto, uma concessão que Javé faz ao povo. Que os israelitas vejam que experiências farão com ela! Javé sabe, naturalmente, que serão más. Por isso, não deixa de advertir Israel, pela boca de Samuel:

Este será o direito do rei que reinar sobre vós: tomará vossos filhos para utilizá-los junto a seus carros e seus cavalos, a fim de correrem na frente de seu carro, e para empregá-los como comandantes de mil e como comandantes de cinquenta, e para que cultivem seus campos, recolham sua colheita e lhe fabriquem implementos bélicos e utensílios para os carros. Tomará vossas filhas para que lhe preparem especiarias, cozinhem e assem para ele. De vossos campos, parreirais e olivais tomará os melhores, e os dará a seus oficiais. De vossas lavouras e vossos parreirais levantará o dízimo e o dará a seus eunucos e funcionários. Vossos escravos e vossas escravas, vossas melhores reses e vossos jumentos tomará e utilizará para sua administração. De vossas ovelhas levantará o dízimo. Vós mesmos, porém, sereis seus escravos! Então gritareis, naquele dia, por causa de vosso rei que escolhestes, mas Javé não vos dará ouvidos naquele dia! (1 Sm 8.11-18).

Apesar dessa advertência, Israel se mostra renitente, e Javé repete sua concessão. Cora isso, o relato termina. Sobre a característica desse texto não pode haver nenhuma dúvida: é deuteronomista. Está saturado de concepções deuteronomistas, depende até literalmente da lei deuteronômica sobre o rei (Dt 17.14-20) e pressupõe experiências com o reinado que Israel só pôde fazer mais tarde. Desde o início, a monarquia se encontra sob um signo negativo: embora seja uma monarquia em cujo surgimento Javé teve participação, trata-se exatamente de uma monarquia com a qual ele retribui a infidelidade e a apostasia de Israel, uma monarquia para castigo. Temos aqui um dos clássicos textos antimonárquicos do AT.

Não muito melhor é a situação dos outros dois trechos: 1 Sm 10.17-27 e 11.12-14. Sobre a eleição do rei em Mispa através das sortes relata 1 Sm 10.17- 27. Depois de um complicado processo eliminatório, resta finalmente o benjaminita Saul. É bem provável que essa história não seja simplesmente a continuação de 1 Sm 8.1-22a; contudo, ela pressupõe a existência do texto de 8.1-22a, ao qual se agrega, apesar das nuanças nos detalhes. Também 1 Sm 10.17-27 é um testemunho da tendência antimonárquica, apesar de Saul, de modo algum, ser apresentado de forma negativa. Não há necessidade de apontar para a improbabilidade interna do processo de sorteio para deixar claro que o texto não serve para reconstruir fatos históricos. 1 Sm 11.12-14, por fim, é um trecho em relação ao qual se deve duvidar se alguma vez realmente foi independente. Poderia tratar-se de uma inclusão redacional a partir de 10.27 com o objetivo de contrabalançar a informação de 11.15. De acordo com 11.15, Saul é proclamado rei em Gilgal; mas, segundo 10.24, ele já o é; portanto, de acordo com a opinião do redator, 11.15 deve ser uma renovação do reinado. Esta construção é de interesse para o historiador apenas na medida em que ilumina as disputas em tomo da monarquia em Israel.

No sentido histórico-traditivo e literário, também este grupo de textos não é um conjunto uniforme. O cap. 11 é uma grandeza para si. Também 9.1-10.16 contém tensões que desaconselham a hipótese de uma narrativa originalmente coesa. Após a eliminação de glosas menores, sobretudo a anedota de “Saul entre os profetas” (10.9-13) e sua introdução (10.5s.) despertam a suspeita de serem originalmente independentes. O resto se lê inicialmente como um conto de fadas com o tema “Como Saul saiu para procurar as jumentas de seu pai e encontrou uma coroa real” , que se transforma, entretanto, num gênero narrativo muito distinto de um conto de fadas — a narrativa da vocação de um salvador carismático — , sem que se conseguisse distinguir, pela crítica literária, ambos os elementos com suficiente segurança.

Sobretudo no conteúdo, porém, esse grupo de textos possui uma característica muito diferente daquele analisado acima. No centro está a iniciativa de Javé, que ouviu o clamor de seu povo por causa da desgraça infligida pelos filisteus e decidiu ajudá-lo (9.16). Os acontecimentos inicialmente não decorrem de modo diferente do que na época dos Juizes: em caso de ameaça externa, Javé desperta um carismático para acabar com a aflição. Um homem desses está à disposição: é Saul, filho de Quis, de uma pequena localidade perto de Gibeá24. Ele está justamente ocupado procurando as jumentas perdidas de seu pai. Por esse motivo, veio ao vidente Samuel, a fim de saber dele se e onde poderia achá-las. Este é o homem que Javé indica para Samuel: designa-o e — isto é novo! — ordena que Samuel o unja como nagid sobre Israel (9.16; 10.1). O termo nagid significa algo assim como “proclamado, designado, pretendente ao trono”. É bem provável que aqui tenhamos uma retrojeção de uma época posterior. O processo se desenrola sem a participação do público; só três sabem a respeito dele: Javé, Samuel e Saul. Se a essa altura dos acontecimentos já se pode falar de monarquia, então somente de uma monarquia secreta.

Decerto a posterior instituição da monarquia retrojetou suas sombras para dentro dessa tradição; pode-se constatá-lo na conformação de vários temas da exposição. Mas, mesmo assim, pode-se atribuir credibilidade histórica à tendência fundamental do conjunto como um todo. Saul não é constituído rei de imediato; no início, ele não é, essencialmente, nada mais do que os carismáticos da época dos Juizes. Continua assim inclusive em sua primeira aparição pública, que é, de certa maneira, seu teste comprobatório. A luta não se volta contra os filisteus, mas contra os amonitas transjordânicos, que haviam aproveitado a situação de emergência de Israel para expandir seu território. Estavam sitiando a cidade de Jabes (Tell Maqlub no Wadi Yabis); provavelmente já haviam, portanto, submetido a seu domínio Gileade, incluindo os territórios ao norte do Jaboque: aquele território que Jefté impedira de cair sob o controle dos amonitas. Diante dessa ameaça, “o espírito de Javé veio sobre Saul” (11.6), que mobilizou o exército popular das tribos, transpôs à noite o Jordão, derrotou os amonitas e levantou o cerco de Jabes.

Essa é a última história de um juiz no AT; nela não consta nenhuma palavra que não pudesse ter sido dita também a respeito dos Juizes Maiores. Surpreende que Samuel esteja completamente ausente; de resto, o papel dessa complexa figura de modo algum é claro e inequívoco no início da história da monarquia israelita. Aqui o historiador provavelmente está diante do cerne da tradição: a vocação de Saul como líder carismático poderia realmente ter estado, na forma em que é descrita (especialmente 11.4-8), no início dos acontecimentos. Contudo, a narrativa se choca com 9.1-10.16: com a vocação antes do início da campanha militar contra os amonitas concorrem a vocação e a unção para nagid relacionadas com o episódio das jumentas. 9.1-10.16 parece uma elaboração mais recente do tema da vocação de um salvador carismático. Ou deve-se supor que a ruah, que estava latente em Saul desde sua vocação e unção, teve, por assim dizer, sua erupção por ocasião da opressão amonita? É isto, em todo caso, que devem ter-se imaginado aqueles que — seja lá em que estágio da redação — combinaram as narrativas uma com a outra.

Entretanto, após o fim da campanha militar contra os amonitas acontece algo que se enquadra na linha de 9.1-10.16, mas que, no contexto de 11.1-11, é inesperado e novo: os representantes de Israel no exército popular reconhecem em Saul o homem que está em condições de libertar Israel da opressão filisteia. Nele, que foi brilhantemente aprovado no teste comprobatório, pode-se depositar a confiança de que também saberá dar cabo dos filisteus na região montanhosa. Mas isso só será possível se Israel receber uma liderança uniforme e permanente que garanta a continuidade da luta contra os filisteus e não seja dependente do aparecimento esporádico e incontrolável do carisma que Javé talvez — e é isto que se espera — pudesse dignar-se a conceder. Israel necessita de uma instituição estável e de um comando militar permanente. Assim se chega à proclamação de Saul como rei no santuário de Gilgal, em Jericó: “ Então todo o povo partiu para Gilgal e lá, em Gilgal, diante de Javé, instituiu Saul como rei. Abateram-se lá sacrifícios de comunhão diante de Javé, e Saul e todos os homens de Israel estavam muito alegres” (11.15). Acresce-se à designação por Javé a aclamação pelo povo ou por seus representantes. Ambos os elementos — designação e aclamação — constituíram o fundamento da monarquia israelita e foram mantidos desde então, ao menos na teoria, como elementos necessários e constitutivos. Portanto, o reinado de Saul não foi consequência necessária da forma de vida do Israel pré-estatal, mas foi, isto sim, uma de suas possibilidades. A liderança carismática toma- se vitalícia por causa da ameaça dos filisteus, com a qual as tribos se viram confrontadas pouco antes da virada do 2° para o l 2 milênio a.C.

As guerras e vitórias de Saul contra os filisteus são narradas em episódios avulsos que se encontram em 1 Sm 13.2-7a,15b-23 e 14.1-46. De fato, Saul teve sucesso em afastar o perigo e em restabelecer, ao menos transitoriamente, o território e a segurança de Israel. Aparentemente, ele alcançou seu objetivo menos em batalhas de campo aberto contra unidades filisteias maiores e mais através de ataques de surpresa contra postos dos filisteus na região montanhosa. Papel destacado nessas campanhas desempenhou o príncipe Jônatas, que a tradição pintou com cores alegres e agradáveis. Com facilidade Jônatas granjeou a simpatia dos narradores, o que não deve causar espanto, uma vez que também obteve a simpatia de Davi, que se tornou seu amigo. Ele nos é apresentado como o tipo do radiante filho do rei e se torna o herói das lutas contra os filisteus. Os conflitos se concentraram na região da tribo de Benjamim; localidades como Micmás (Muhmas), Geba (Djeba‘), Betei (Betin) e Gibeá (Tell el-Ful) são citadas diversas vezes.

Pode-se perguntar por que exatamente a pequena tribo de Benjamim foi a que forneceu o primeiro rei de Israel. O motivo deverá ser buscado na estratégia dos filisteus, que estavam interessados em assegurar as passagens pelas montanhas, sobretudo as que se localizavam em Benjamim, para assim controlar as principais estradas das montanhas da Palestina Central. No território da tribo de Benjamim iniciaram os atritos, e do atrito surgem faíscas. Não é por acaso que Saul instalou sua residência em Gibeá de Benjamim (1 Sm 22.6; 23.19; 26.1), que desde então é muitas vezes chamada de “Gibeá de Saul” (1 Sm 11.4; 15.34; Is 10.29). Foi aí que, por ocasião de escavações norte-americanas, vieram à tona os alicerces da fortaleza de Saul, guarnecida por quatro torres. Depois de se ter iniciado uma construção moderna no lugar, nada mais se pode ver das mesmas.

A característica da monarquia e da organização do Estado de Saul já foi, várias vezes, descrita adequadamente33. Tratava-se de um reinado militar de uma nação; sua tarefa inicial consistia unicamente em enfrentar de modo eficaz a ameaça filisteia. Não se tem a impressão de que esse reinado tivesse funções de política interna dignas de menção. Em todo caso, a tradição não contém nenhum indício de que Saul tivesse de administrar a justiça, promulgar leis ou garantir — ou até rever — os limites territoriais das tribos reunidas em seu Estado. Relacionado com isso está o fato de que a monarquia de Saul não necessitava de um aparelho de Estado; sua base era formada pelo contingente recrutado do exército popular das tribos. O único detentor de um cargo, citado nominalmente pelas fontes, é Abner, o tio ou sobrinho de Saul, que ocupava o cargo de comandante do exército popular (sar haçaba; 1 Sm 14.50s.; 17.55 e passim). Além disso, 1 Sm 21.8 ainda menciona um edomita chamado Doegue, que leva o título de ’abbir haro‘im, “o poderoso dos pastores”: um cargo que certamente não foi de primeiro escalão e acerca de cujas funções nada sabemos. Deve-se pressupor a existência de um modesto orçamento público; os recursos devem ter sido usados prioritariamente, senão exclusivamente, para a cobertura de gastos militares.

Foi também por razões militares que Saul começou a reunir, em torno de si, uma guarda pessoal, pelo visto como contrapartida para a ágil guarda filisteia. Esta novidade se baseia na percepção correta de que o exército popular das tribos, de difícil mobilização, não satisfazia, em todos os casos, as exigências militares da monarquia (1 Sm 14.52). Aos membros dessa guarda Saul concedia feudos de propriedade da coroa (1 Sm 22.7) em troca de seus serviços militares e sabia como empregá-los militarmente (1 Sm 18.13). Além disso, no entanto, não existia um funcionalismo nem um aparelho administrativo no sistema estatal de Saul. Ele não era necessário, e, por isso, não foi preciso criá-lo.

Sobre a estabilidade interna da monarquia de Saul nada sabemos. Não sabemos, p. ex., se a autoridade de Saul valia em todos os lugares e de forma inconteste. Que isso não tenha sido o caso — por causa dos diferentes graus de integração de tribos e de cidades — e que Saul, só aos poucos, tenha obtido o reconhecimento das tribos35, são suposições que ultrapassam o que as fontes informam. Também não está claro se já durante o tempo de Saul foram feitos planos para solidificar a monarquia através da sucessão dinástica. Naturalmente não se pode excluir a possibilidade de que Saul tenha brincado com a ideia de que um de seus filhos — Jônatas? — poderia tornar-se seu sucessor. Mas os parcos vestígios da ideia de um governo dinástico da família de Saul (1 Sm 18.17ss.; 20.31; 2 Sm 3.20ss.; 2.8s.) provêm todos da tradição sobre Davi e se referem preponderantemente à época após a morte de Saul.

Também a questão dos limites territoriais do reino de Saul deve ser levantada. Qual era a extensão de seu reino? Pertenciam a ele os territórios de todas as tribos do Israel pré-estatal? Ou só de algumas? Infelizmente não se consegue ter plena certeza. Mas há, em todo caso, indícios que favorecem determinadas hipóteses. Particularmente importante é 1 Sm 2.8s.: “ Abner, o filho de Ner, o comandante do exército popular, tomou Tsbaal’36, filho de Saul, levou-o para o outro lado, a Maanaim, e o tornou rei sobre Gileade, sobre ‘Aser’, sobre Jezreel, sobre Efraim, sobre Benjamim e sobre todo o Israel.” Com exceção da fórmula final “sobre todo o Israel” , que é um tanto capenga e generalizante, o texto de 1 Sm 2.8s., que dá indicações surpreendentemente concretas, descreve a situação territorial do reino após a morte de Saul e antes da posse de Davi como rei de Israel. Ao reino de Isbaal pertenciam os territórios da Transjordânia habitados por clãs israelitas (= Gileade), as montanhas da Galiléia (= “Aser”, pars pro toto? [“como parte que representa o todo?”], a parte setentrional das montanhas da Palestina Central (= Efraim, Benjamim) e a Planície de Jezreel. Esta última, após a catástrofe de Saul, decerto pertencia ao reino de Isbaal só na teoria, dificilmente por causa das reais condições de poder e soberania. A ausência de Manassés se explica talvez pelo fato de Efraim não significar o nome da tribo, mas da região.

Inexplicável, no entanto, é a ausência do Sul, Judá — nem se falando de Simeão. Certamente se pode ponderar que, na época em questão, Judá já se encontrava nas mãos de Davi, que havia fundado um reino judaíta independente em Hebrom. Mas será que aqui se trata do rompimento de Judá com o reino de Saul? O relato sobre a fundação do Estado judaíta de Davi (2 Sm 2.1-4) não deixa entrever nada disso. De acordo com ele, tem-se, ao contrário, a impressão de que anteriormente Judá ainda não estava constituído como Estado. Por outro lado, se Judá tivesse pertencido ao reino de Saul, por que, então, o texto de 2 Sm 2.8s. não menciona Judá, mesmo que fosse apenas para reivindicar teoricamente a soberania sobre o território, como no caso da Planície de Jezreel? Essas reflexões parecem consolidar a suposição de que o sul judaíta da Palestina não tenha pertencido ao Reino de Israel sob Saul38. O Israel de Saul correspondia ao Israel do cântico de Débora (Jz 5); sua extensão territorial coincidia aproximadamente com a do posterior Reino do Norte, Israel, após Salomão. A causa disso deve ter sido sobretudo a existência do cinturão meridional de cidades cananéias, que separava o sul do norte da Palestina.

O que mais se pode alegar e se tem alegado em favor da inclusão de Judá no reino de Saul não se equipara a 2 Sm 2.8s. Operações militares de Saul na região de colinas judaíta — contra os filisteus junto a Socó (esh-Shuweke; 1 Sm 17) ou contra Davi em Queila (1èll Qila; 1 Sm 23) nada dizem sobre questões de soberania. Tampouco o aparecimento de Saul em Judá por ocasião da perseguição a Davi (1 Sm 23; 24; 26) justifica conclusões político-territoriais. O caso seria outro, se Saul tivesse convocado o exército popular judaíta. Sobre isto, no entanto, não se diz nenhuma palavra; Saul operava com seus mercenários. A presença do belemita Davi na corte de Saul (1 Sm 16.14-23) igualmente não é comprobatória; afinal, até um edomita fazia parte da companhia de Saul (1 Sm 21.8). De resto, 1 Sm 15 representa uma tentativa tardia, pós-exílica, de fundamentar teologicamente o fracasso de Saul: ele foi rejeitado por Javé. Em suma: a maior probabilidade é de que Judá não tenha pertencido ao reino de Saul. Essa hipótese também facilita a compreensão do que ocorreu depois da morte de Saul, bem como de vários traços da história de Israel no começo da época da monarquia.

Naturalmente o Estado de Saul não foi uma criação “ profana” — ainda mais porque os âmbitos do profano e do sagrado entre os povos do Oriente Antigo se relacionavam e se distinguiam um do outro de modo diferente do que ocorre na consciência do mundo ocidental. Javé era o Deus nacional do reino de Saul. Não se pode dizer que houvesse uma ruptura com as tradições religiosas de Israel na era da formação da monarquia. O papel que se atribuía a Javé na fundação da monarquia, sua iniciativa na eleição do rei, o íntimo relacionamento com o sistema carismático pré-estatal ainda permitem percebê-lo claramente. Por isso é concebível e possível que já sob Saul tenham sido dados passos iniciais modestos e vacilantes em direção a uma política religiosa42. Na verdade, não se consegue depreender muita coisa da tradição veterotestamentária que trata do assunto. Em todo caso, conforme 1 Sm 21.2-10 e22.6- 23, Saul tinha determinadas relações com os sacerdotes de Nobe no Monte Scopus, ao norte de Jerusalém (Ras el-Musharíf), se bem que infeliz- mente não sejam definidas nos detalhes. Disso se poderia concluir que ele perseguia a intenção de conferir a seu reinado, através da relação com um santuário, uma santidade especial; talvez ele quisesse até mesmo fundar um sacerdócio estatal, ou seja, uma espécie de “ igreja particular” , como os davididas mais tarde fizeram em Jerusalém. Se Saul fez tentativas nessa direção, elas fracassaram: irado, ele promoveu um massacre sangrento entre os sacerdotes de Nobe, porque haviam hospedado e favorecido seu concorrente, Davi. Teriam os sacerdotes de Nobe reconhecido os sinais dos tempos e se bandeado em tempo — mais do que em tempo — para o lado de Davi, o homem do futuro? Não o sabemos!

De qualquer modo, de maneira geral Saul não foi muito feliz no trato com as tradições religiosas de Israel. Mostram-no as tentativas, feitas em diversas épocas, de fundamentar teologicamente o fracasso de Saul, sua rejeição por Javé: o chamado episódio de Gilgal, em 1 Sm 13.7b-15a, talvez surgido em círculos sacerdotais anti-Saul; além disso, a narrativa, provavelmente pré-deuteronômica, da visita de Saul à feiticeira de Endor, em 1 Sm 28; e o grande capítulo da rejeição de Saul, 1 Sm 15 — uma criação pós-exílica. Todas essas tentativas, por mais diferentes que sejam, indicam infrações religiosas de Saul como causa de sua rejeição por Javé43. De forma especialmente impressionante isso se expressa na história muito antiga de 1 Sm 14.23b-46. Esta história narra como Saul, apesar de sua integridade e piedade pessoal, entra em graves conflitos religiosos. Durante uma batalha com os filisteus, não conseguiu impor a ordem de abstinência que ele mesmo havia dado. E, ao insistir no arcaico oráculo por sortes, colocou-se em oposição ao amor que os guerreiros tinham por seu filho Jônatas, o herói das batalhas contra os filisteus. Indubitavelmente essa curiosa incapacidade de Saul foi prejudicial para seu prestígio, sobretudo em círculos conservadores, mas naturalmente também junto aos representantes de uma nova era.

Talvez resida aqui, de fato, uma das razões para o princípio do fim de Saul, para a realidade que a consciência de Israel expressa da seguinte forma: “Javé tirou seu espírito de Saul, e um espírito mau tomou posse dele” (1 Sm 16.14s.; 18.10,12). Isto significaria que as funções “profanas” da monarquia entraram em conflito com as tradições sacras de Israel e que Saul não esteve à altura desse conflito. Em todo caso, as tradições sobre Davi relatam (1 Sm 16.14- 23; 18.10-12; 19.9s.) o aparecimento de uma enfermidade psíquica de Saul, um obscurecimento melancólico de sua alma acompanhado de surtos de fúria, do que se pôde concluir que Javé não estava mais com ele. Acabou se evidenciando que o carisma não é um dom vitalício; como havia sido concedido, também podia ser tirado, inclusive do rei. Revela-se nisso toda a problemática existente na combinação de liderança carismática e monarquia, que também mais tarde questionou, várias vezes, a existência do Reino israelita do Norte. O fato de ela ter mostrado seus primeiros sintomas na pessoa de Saul toma este rei uma figura trágica, o protótipo do governante fracassado em Israel.

Por certo uma das razões principais para o fracasso de Saul e para o fim de seu sistema de Estado foi o declínio pessoal do rei, a diminuição de sua força, o retrocesso da fascinação que inicialmente havia emanado dele. Mas, além disso, deve-se considerar que um reinado militar nacional sem infraestrutura institucional, sem administração e quase sem funções de política interna dificilmente poderia sobreviver ã sua missão histórica. Essa missão havia sido cumprida: a ameaça crônica de parte dos filisteus fora banida. Ao reino de Saul fazia falta agora tudo o que, para além dessa tarefa, pudesse tê-lo mantido com vida44. Por último o reino dependia só da pessoa do rei; sem ela, tinha de ruir. Assim, finalmente chegou a catástrofe, e parece destino da providência o fato de que o impulso para o fim partiu exatamente dos filisteus, contra os quais havia surgido a monarquia de Saul.

Sobre isso temos um relato em 1 Sm 31: a narrativa sobre a batalha no Monte Gilboa (Djebel Fuqu‘a). A posição inicial não pode mais ser reconstruída topograficamente com exatidão, porque as informações que 1 Sm 31 integrou no contexto geral da tradição sobre Saul e Davi não harmonizam mais em todos os pontos45. Mas o que se pode perceber com certeza é o seguinte: os filisteus invadiram a Planície de Meguido/Jezreel; procuraram, portanto, aproveitar militar e politicamente, a seu favor e em detrimento de Israel, o efeito separador da planície e do cinturão setentrional de cidades cananeias. Nota-se que, de fato, Saul havia livrado a região montanhosa da Palestina Central dos filisteus; mas não conseguiu criar um equilíbrio político-militar com os filisteus, muito menos obter a hegemonia sobre eles. Agora estava obrigado a entrar em disputas bélicas com eles; se não o tivesse feito, o Norte galileu teria sido separado da Palestina Central.

A situação se assemelha àquela de antes do início da batalha de Débora (Jz 4/5). Saul foi para a batalha com grandes dúvidas e pressentimentos sombrios. Mesmo que 1 Sm 28.3-25 seja uma tentativa pré-deuteronômica, feita a posteriorí, de explicar o fracasso de Saul, a informação básica não precisa ter sido inventada. De acordo com ela, Saul foi, antes da batalha, às escondidas e à noite, procurar a necromante de Endor (Endur) para solicitar-lhe um oráculo. A mulher fez subir da terra o espírito de Samuel, que confirmou os piores temores de Saul. Na manhã seguinte travou-se a batalha. Ela terminou com uma derrota catastrófica para Israel. Os filisteus perseguiram os bandos israelitas em fuga até o Monte Gilboa. Conseguiram interceptar os filhos de Saul em fuga, entre eles Jônatas, e matá-los. Inicialmente Saul mesmo conseguiu fugir, mas, em desespero, cometeu suicídio. Os filisteus só encontraram seu cadáver, e saciaram sua sede de vingança decepando-lhe a cabeça e dependurando seu corpo, junto com os cadáveres dos príncipes, do muro da cidade de Bete-Seã. Pouco mais tarde, os cidadãos de Jabes em Gileade furtaram, à noite, os cadáveres, queimaram-lhes as partes moles e os enterraram sob uma tamareira. Quando Davi se tomou rei de Israel e de Judá, mandou transladar solenemente os restos mortais de Saul e de seus filhos para a sepultura da família de Saul (2 Sm 21.12-14).

———- Retirado de: Herbert Donner – Historia de Israel e dos povos vizinhos, vol.1, p. 197ss.


Leia também:

O advento dos primeiros monarcas - Universo Anthares

O advento dos primeiros monarcas - Universo Anthares

[…] A fundação do Reino de Israel […]

Comments are closed.