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O Anel dos Nibelungos (Ato 4 – 6/7)

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VI – A morte de Siegfried

Siegfried estava divertindo-se com estas conjeturas, quando escutou o ruído da trompa de seus companheiros de caçada: Gunther e Hagen, acompanhados de alguns vassalos, logo surgem em seu encalço.

– Onde estava, Siegfried? – pergunta-lhe Gunther, ansioso.

– Desviei-me da trilha em busca de um urso; mas, como vêem, o perdi! No entanto, encontrei três amáveis donzelas saídas deste rio, que me predisseram a morte para ainda hoje. Que tal lhes parece?

Gunther desvia os olhos, sem nada responder; suas pernas tremem e, ao saber que a própria natureza já tomou conhecimento do seu negro intento, sente, desde já, o remorso apoderar-se do seu espírito.

– Ora, tolices! – diz Hagen, intrometendo-se. – Vamos aproveitar esta pausa para descansar e fazer uma bela refeição!

Os homens de Gunther armam fogueiras e um grande javali é posto no espeto.

Enquanto os homens esperam que o animal doure, Hagen aproveita para fazer algumas perguntas a Siegfried.

– Vamos, grande herói! Distraia-nos com o relato de suas façanhas! É verdade que você tem o poder de conversar com os pássaros?

Siegfried, lisonjeado pelo apelo dos homens, que em coro pedem que lhes narre os seus feitos, acomoda-se ao pé de um grande freixo e começa a lhes narrar, pormenorizadamente, a sua vida desde o seu nascimento.

– Sim, Hagen, de fato, já tive o poder de entender o canto dos pássaros -diz Siegfried, com um tom de ironia na voz -; mas, desde que as mulheres passaram a me enviar seus alados cantos, sinceramente, perdi todo o interesse em escutar o ingênuo piado deles!…

Um coro de risos acompanha a observação de Siegfried que, estimulado pela platéia, retoma toda a sua história até chegar ao episódio em que forjara a espada de seu pai. Depois, reconta os episódios principais de sua vida, como o combate contra o dragão Fafner e o aviso que recebera do pássaro a respeito da traição de Mime, seu pai adotivo.

– E, então, cortou mesmo a sua cabeça com a afiada Notung? – pergunta alguém, sem poder acreditar no que dizia a lenda.

– É claro! – afirma Siegfried, com orgulho. – Que outra coisa poderia ter feito a um cão que pretendia atentar contra a minha própria vida, fingindo-se meu amigo?

Gunther desvia a cabeça, outra vez, sentindo o aguilhão do remorso antecipado penetrar fundo em sua alma.

Hagen, ao perceber que a conversa toma um ramo perigoso para seus objetivo, levanta-se e vai buscar um odre, no qual conserva uma bebida muito especial.

– Vamos, tome deste hidromel – diz ele, estendendo a Siegfried um copo com uma poção que tem o dom de lhe restaurar a memória. – Já deve estar com a boca seca de tanto narrar seus gloriosos feitos!

Siegfried bebe de bom grado e, imediatamente, sente os efeitos regenerativos da bebida em seu cérebro. Como num quadro vivo, vem-lhe à mente o dia em que penetrou, pela primeira vez, na montanha circundada pelas chamas e de como conquistou o amor de Brunhilde.

– Vocês… consumaram, então, o seu amor? – indaga-lhe, sutilmente, o filho de Alberich, sentindo que esta é a hora perfeita para denunciá-lo perante Gunther, que ainda reluta em levar à morte Siegfried.

– Naturalmente – diz Siegfried, sem perceber que Hagen pretende induzir Gunther ao ódio contra ele.

Gunther fica desconsolado, pois, agora, já sabe que, de um jeito ou de outro, Brunhilde foi deflorada por Siegfried e não por ele, seu legítimo marido, o que por si só já lhe é desonra suficiente. Siegfried, entretanto, alheio a tudo, prossegue a narrativa de suas aventuras, sem perceber que acabou de selar, definitivamente, a sua própria morte.

Estão todos nisto, quando, de repente, dois corvos surgem voando e ficam fazendo círculos sobre a cabeça de Siegfried.

Todas as cabeças voltam-se para as duas negras aves, que crocitam, nervosamente, até que, por fim abandonam o local, perdendo-se em meio à mata espessa da floresta.

– Ora, vejamos se você ainda é um bom intérprete de aves! – diz Hagen ao herói, num tom bem-humorado. – Poderia nos dizer o que estas duas aves negras alardearam sobre sua cabeça?

Siegfried ergue-se e tenta acompanhar o vôo dos corvos.

– Estranho…! – diz ele, dando as costas para Hagen. – Elas gritaram o tempo todo uma única palavra: “Vingança! Vingança!”

Hagen, aproveitando o descuido de Siegfried, toma a sua lança – a mesma sobre a qual o herói fizera seu juramento de inocência – e a enterra nas costas de Siegfried.

Gunther ainda tenta impedi-lo de praticar o nefando ato, mas sua força é insuficiente e Hagen termina de enterrar, com toda a força, a lança nas costas do herói. Todos os demais erguem-se, horrorizados.

– Por que fez isto? – clamam diversas vozes a um só tempo.

– Estou punindo um perjúrio! – exclama ele, erguendo a voz, como se o próprio tom e a inflexão dados às palavras pudessem convencer mais do que elas próprias. – Brunhilde, esposa de Gunther, pertenceu antes a este vilão, que jurou, no entanto, não tê-la jamais maculado. Pode tal perfídia permanecer impune?

Gunther, horrorizado, sente, ao mesmo tempo, um misto de pena e de altivez invadir a sua alma; afinal, bem ou mal, acaba de ter sua honra resgatada.

Depois de proferir suas palavras, Hagen afasta-se, para não ter de assistir aos últimos instantes de sua vítima, que agoniza sobre a relva. A única coisa que deseja escutar agora é a voz imaginária de seu pai, Alberich, a lhe elogiar: “Muito bem, meu filho!

Hoje, finalmente, mostrou que é um filho digno de seu pai!” Agora, resta apenas estar atento para retirar do dedo de Siegfried, no momento oportuno, o anel ambicionado.

Enquanto Hagen divaga em seus loucos devaneios, alguns homens de índole piedosa põem Siegfried sentado, encostado ao mesmo freixo onde antes estivera acomodado para que expire com um mínimo de conforto. Ele, entretanto, está já imerso em uma espécie de delírio e dirige suas últimas palavras para sua amada Brunhilde –

pois, agora, é capaz de relembrar, perfeitamente, tudo quanto se passou entre ele e ela e de saber o quanto ainda a ama:

– Desperta, Brunhilde… desperta, ó minha noiva mais sagrada!

Seus olhos brilham e é como se ele a tivesse diante de si. Nada mais importa, nem mesmo a sua morte, tampouco a mão assassina que lhe vibrou o covarde golpe. Tudo o que lhe interessa tem agora – ou julga ter – bem ali, diante de suas vistas que, apesar de já nubladas para a vida, são capazes de enxergar com nitidez perfeita as regiões misteriosas, onde se abrigam e se escondem os sonhos e os desejos mais secretos.

Siegfried permanece imerso neste estado quase beatífico quando, subitamente, um suspiro paralisa sua garganta e sua cabeça tomba, inerte, para o lado. Siegfried está morto e a vingança de Brunhilde e seus cúmplices está, finalmente, completada.

***

A noite cai sobre a floresta. Os homens recolhem suas coisas, trazendo todos na boca o gosto amargo de uma morte a qual jamais seriam capazes de imaginar que poderiam um dia assistir. Os pássaros silenciaram, e mesmo o crepúsculo, que já se espalha por todo o céu, não os move a nenhuma cantoria, como é de hábito nestes seres quando o dia declina e o céu explode numa orgia de cores desencontradas como um pequeno caos que antecedesse a um cotidiano fim de mundo. Neste fim de dia, os pássaros nada têm a dizer: aquele que era capaz de lhes entender os trinados e os traduzir em palavras humanas está morto para sempre e nunca mais outro homem será capaz de substituí-lo.

O corpo de Siegfried é colocado sobre uma padiola e se improvisa, ali mesmo, sob as ordens de Gunther, um cortejo fúnebre. Quando todos adentram a floresta, no rumo de suas casas, a escuridão e o silêncio os envolvem totalmente. O sangue jovem e viril de Siegfried já foi bebido até a última gota pela terra e a natureza prepara-se também para uma vigília fúnebre até que o dia amanheça outra vez e ela, esquecida já da morte e voltada novamente para a vida, traga para os céus o canto de renovada alegria dos pássaros e o murmúrio manso das árvores e regatos.

VII – O fim de tudo


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