O advento dos primeiros monarcas

Neste post, veremos como surgiram os primeiros monarcas na região hoje conhecida como Palestina (Filistia), e seus arredores; e como são pífias as tentativas de justificar a existência do Estado (ou da monarquia) através desses eventos históricos. Preste atenção também a tudo que apresentar-se-á dos filisteus.


No período do Ferro I, a partir de 1200, começa a expansão das aldeias para a planície, ocupando o espaço deixado pelas antigas e poderosas cidades-estado. Os camponeses, pré-israelitas, descem as montanhas e, num movimento ascendente, vão tomando as planícies.

É recomendável iniciar com uma definição formal: tomada da terra é apropriação de terra mediante nova distribuição do solo e colonização. Aí é importante perguntar se se trata de terra sem dono ou já colonizada por outros ou se existem formas mistas de ambos. O processo em si pode desenrolar-se de diversas maneiras: desde o simples roubo, passando pela conquista bélica propriamente dita, pela firmação de tratados com os proprietários anteriores, pela lenta infiltração até a criação de um novo direito na terra anteriormente sem dono. Os executores do processo de tomada da terra podem fazer parte de diversos agrupamentos sociais: habitantes de cidades e aldeias, agricultores, artesãos, comerciantes, também nômades. No caso destes último fala-se de sedentarização, i. é, do processo de fixação de grupos antes não-sedentários (Herbert Donner – Historia de Israel e dos povos vizinhos, p.143). — mais sobre isso no post

A terra fértil e plana possibilita ampliar em muito a produção agrícola, principalmente de cevada e trigo. O incremento de grãos faz aumentar a produção de alimentos, o que, por sua vez, permite o crescimento da população.

O excedente faz surgir a concentração de possibilidades nas mãos de alguns clãs que se permitem investir no comércio. Surgem, então, os administradores, profissionais, a pequena indústria e os pequenos monarcas.

O excedente agrícola, quando em menor quantidade, era conservado em jarros de cerâmica que eram enterrados no fundo da casa do clã. Quando em maior quantidade, era estocado em silos bem protegidos da chuva. Uma parte dos grãos guardados era para o plantio do ano seguinte; outra, para o consumo; e, eventualmente, uma terceira parte para o comércio. A estocagem do excedente foi, portanto, um passo gigantesco para a sobrevivência da tribo em tempos de calamidades.

Perceba, então, que estamos falando de uma ação espontânea, natural e lógica realmente simples: uma sociedade que não guarda tem grandes dificuldades para sobreviver quando chega a seca ou quando as pragas invadem a lavoura, ou, ainda, quando o povo é acometido por doenças.

Voltando bastante na linha cronológica, um texto que ilustra bem a questão da administração do excedente é a novela de José (Gn 37-50), particularmente os capítulos 41 a 47. Ao interpretar os sonhos do faraó, José o aconselha que durante os sete anos de boa colheita ele tome a quinta parte dos produtos da terra do Egito e a armazene. Vemos aqui, portanto, que José ensina ao faraó e a todo Egito como proceder, guardando o excedente dos anos de boa colheita para quando o tempo das vacas magras chegar. Em outras palavras, ele ensinou o óbvio. Porém, essa é exatamente a justificativa que alguns tentam usar para a existência da monarquia em Israel. Ou seja, atribuem a um texto bíblico descritivo uma função ideológica, prescritiva, para fundamentar a monarquia. Assim, José representa o projeto monárquico, e os irmãos, o projeto tribal. Os itens são, via de regra, de origem em uma interpretação alegórica. Vejamos:

Desde cedo, o jovem irmão quer ser rei. Esse seria o significado da túnica principesca que recebe do pai Jacó (Gn 37,3) e dos sonhos em que vê seus irmãos e seus pais se inclinando diante dele (Gn 37,5-11). O curioso é que, nos encontros posteriores dos irmãos com José, eles se inclinam diante dele, cumprindo o que ele sonhara. A monarquia tenta se justificar na necessidade de se guardar o excedente para o tempo da penúria, de forma que o povo tenha o que comer, como se isso já não fosse feito por toda a parte, e como se pessoas comuns não fossem capazes de se preparar a médio e longo prazo. Ora, o que se apresenta na história de José é algo excepcional, e que só poderia mesmo ser prevenido com base em orientação divina: se não fosse como foi, a terra seria simplesmente exterminada pela fome (Gn 41,33-36).

Além disso, há outro problema: quando o tempo das vacas magras chega, os reis não partilham com o povo os alimentos que armazenaram, mas os vendem ou trocam pelas terras dos camponeses ou pela sua liberdade. Eis aqui onde a mentalidade estatista encontra seu ápice.

Curiosamente, é isso que faz José quando o povo vem lhe pedir alimentos (Gn 47,13-26). Primeiro, ele vende os alimentos. Quando as pessoas não têm mais dinheiro, José se apossa dos rebanhos. Quando não têm mais rebanho, José troca alimentos pela terra. Quando o povo não tem mais dinheiro, nem animais, nem terra, é obrigado a se vender como escravo para não morrer de fome, e José reduziu todos à escravidão, de uma extremidade a outra do Egito. Dessa forma, tudo passa para as mãos do faraó/rei. Uma vez de posse de tudo, José entrega sementes aos camponeses para que plantem as terras do rei e lhe entreguem a quinta parte das colheitas. “Esta é uma regra que vale até hoje”, diz o texto, dando-nos uma dica daquilo que seria escancarado em 1Samuel 8, e mostrando “as maravilhas” do tributo por parte do Estado. Os únicos que ficam isentos do tributo e da venda da terra são os sacerdotes (Gn 47,22-26b). Isso nos revela algo importante que veremos mais adiante.

Em todo caso, fica evidente, portanto, que a monarquia só privilegia um grupo, aquele ligado à corte e à cidade. O povo das aldeias tem que trabalhar para sustentar os monarcas das cidades, mas quando a crise chega, o povo mesmo é a primeira vítima. Qualquer semelhança com os tempos atuais não é coincidência: faz parte da natureza do Estado.

Outra justificativa ainda mais patética para a existência dos monarcas é a proteção. O excedente, bem como a terra fértil da planície, desperta o interesse de outros povos. Quando a fome assola um povo e ele sabe que o povoado vizinho tem alimentos estocados, não pensa duas vezes em saquear seus armazéns. “Por isso”, diz-se, “é preciso a proteção de um exército que, para os monarcas, só a monarquia pode oferecer”. Ao que parece, todos conseguem conceber a ideia de grupos treinados e pagos para segurança, mas desde que seja de uma única maneira, bem específica: a terceirização do serviço pela centralização estatal. Ah, claro. Único caminho, não é?

Eles deixaram o Egito, sobreviveram no deserto, conquistaram Canaã, durante séculos mantiveram sua independência de outras nações, tudo com uma religião unificada, e eles fizeram tudo isso sem rei. Como aconteceu isso? Bem, a própria ausência de rei aponta para a presença de Deus. Esse é o ponto desses livros. Por que os livros de Samuel e de Reis estão na Bíblia? Para ensinar que Deus é o Rei de seu povo. No fim, nenhum outro rei pode prometer a libertação que o povo de Deus precisa. Por sua vez, essa é a razão por que o pedido do povo por um rei é uma rejeição a Deus. (Mark Dever – A Mensagem do Antigo Testamento, p.271).

Temos o caso, entre tantos na Bíblia, dos filisteus.

O arqui-inimigo, que ameaçava seriamente o soerguimento de Israel como potência foi a Filistia. Repelidos em suas tentativas de penetrar no Egito, os Filisteus se estabeleceram em grandes números, na planície marítima da Palestina, pouco depois de 1200 a.C. Cinco cidades foram transformadas em fortalezas dos filisteus: Asquelom, Asdode, Ecrom, Gaza e Gate (veja 1 Sm 6:17). Sobre cada uma dessas cidades independentes governava um “senhor”, que supervisionava o cultivo das terras próximas. Embora competissem ativamente com os fenícios, no campo do lucrativo comércio marítimo, conforme foi relatado por Wen-Amom, os filisteus ameaçaram dominar Israel durante os dias de Sansão, Eli, Samuel e Saul – com exceção do último, os demais são juízes de Israel (Saul também age, na prática, como um). Independentes entre si, os cinco governantes das cidades se unificavam ocasionalmente para propósitos políticos e militares. (Samuel J. Schultz – A Historia de Israel no Antigo Testamento, 123).

O livro de Juízes apresenta o declínio moral da nação israelita e o livro de 1Samuel inicia-se nesse contexto e, no capítulo 4, os filisteus pegam a arca da aliança, que não só simboliza a presença e o poder de Deus com o povo, como também é o centro da adoração dos israelitas. No capítulo 6, a arca retorna a Israel. O capítulo 7 apresenta Samuel levando Israel ao arrependimento nacional para longe da idolatria e, ao mesmo tempo, obtendo uma grande vitória contra os filisteus. É aqui que Samuel estabelece Ebenézer que, em hebraico, significa “pedra de ajuda” – Samuel pôs uma grande pedra para lembrar aos israelitas a ajuda que o Senhor lhes deu nesse local contra os filisteus. Ironicamente, no capítulo 8, Samuel recebe, nesse mesmo local, o que, provavelmente, foi uma de suas atribuições mais difícil: Israel pede um rei. Após esse pedido, Samuel volta-se, no mesmo momento, para o Senhor e pede sabedoria, e o Senhor lhe diz: “Não te tem rejeitado a ti; antes, a mim me tem rejeitado, para eu não reinar sobre ele” ( 8.7). A seguir, Samuel adverte a nação sobre o perigo de ter um rei como as nações ao redor deles. Contudo, o povo persiste em seu pedido, e, depois, o Senhor diz a Samuel: “Dá ouvidos à sua voz, constitui-lhes rei” (8.22).

Samuel diz ao povo que nem mesmo os reis podem protegê-los e salvá-los. Acho também que é por isso que em 13.19-22, o autor conta que Israel não tinha armas. Apenas Deus dá vitórias a Israel. Ora, eles viviam na colina e não tinham tecnologia para forjar o aço e, talvez, o bronze. Os filisteus eram os cosmopolitas da época — avançados, no que diz respeito à inteligência e à tecnologia. Todavia, a própria força dos filisteus tornou-os instrumentos inadequados para Deus usar a fim de ensinar a respeito de si mesmo ao mundo. As desvantagens aparentes de Israel — não ter rei nem armas — eram sinais de que dependiam de Deus! Isso os tornou exatamente o povo que Deus queria para demonstrar seu poder e força. (Mark Dever – A Mensagem do Antigo Testamento, p.271).

Aqui foram decretadas as amarras de Israel definitivamente. Mas nós precisamos compreender melhor o contexto dito anteriormente.

A partir das diversas cidades-estados nas planícies e nas áreas de colonização israelita nas montanhas formou-se gradativamente na Palestina um organismo coeso, da mesma forma como ocorreu com os povos vizinhos de Israel: os amonitas, moabitas e edomitas no Leste e Sudeste, como também os arameus no Norte e Nordeste, que fundaram estados nacionais. Também na planície litorânea meridional surgiu uma potência nova que logo se tornou uma ameaça para Israel como um todo: os filisteus. Não eram semitas (por isto são chamados no AT de “incircuncisos”); antes, chegaram à Palestina dentro do movimento migratório dos povos do mar, por sua vez relacionado com a migração dórica. E, enquanto que no período dos juízes os ataques de tribos ou povos inimigos ficaram limitados no tempo e no espaço, a hegemonia crescente (cf. Jz 3.31; 13-16) e finalmente duradoura (1 Sm 4ss.; 10.5) dos filisteus, com seu superior armamento de ferro (cf. 13.19s.; 17.7), obrigou todo o Israel a agir em conjunto sob uma liderança permanente, Assim, por volta de 1000 a.c., a monarquia foi instituída [por pressão da política interna, por pura falta de organização e de atitude dos anciãos], surgindo, assim, um Estado Hebreu (1 Sm 8-12). (Werner Schmidt – Introdução ao Antigo Testamento, p. 26)

Os filisteus eram remanescentes dos povos do mar que se estabeleceram na costa do Mediterrâneo ao norte de Gaza, no sul de Canaã, por volta de 1500 a.C. Possivelmente, conforme desenhos e inscrições encontradas no Egito, também eram maiores fisicamente do que os cananeus e os futuros israelitas. Os filisteus combateram os egípcios e dificultaram seu domínio na região. Conquistaram as melhores terras e com o tempo tornaram-se o povo arqui-inimigo da Israel emergente, muito antes da monarquia israelita (Jz 13-16). No contexto internacional, eram, pois, os filisteus que ditavam as ordens na terra de Canaã naqueles dias. Evidentemente, é preciso distinguir os filisteus de quando se instalaram em Canaã dos filisteus mencionados na Bíblia.

ADENDO IMPORTANTE: Outro povo importante que nessa época estava começando seu declínio foi o povo Heteu (ou Hitita). A extensão da cultura dos heteus foi efetivamente retratada por estas tábuas, e agora se sabe que estes povos antigos eram cavaleiros renomados, que reivindicavam a distinção de terem introduzido o cavalo e, igualmente, o carro puxado por cavalos no Oriente Médio. Também foram importantes no desenvolvimento da Idade do Ferro (aproximadamente no século XII a.C.) na Palestina, pois textos heteus cuneiformes mostraram que eles monopolizaram a fundição e a manufatura de ferro, para todos os propósitos comerciais, até a época em que o poder heteu foi fragmentado, por volta de 1200 a.C. Como isso se relaciona com os filisteus, não sabemos ao certo, pois o povo inimigo dos heteus era o povo hurriano. Você pode ler um post completo nos post: Os Heteus (ou Hititas).

De qualquer forma, a real explicação da superioridade dos filisteus sobre os israelitas se acha no fato de que os filisteus conservavam o segredo da fundição do ferro. Esse, provavelmente, é um dos mais antigos registros práticos de “propriedade intelectual” local. Os hititas da Ásia Menor contavam com oficinas de fundição de ferro desde antes de 1200 a.C., mas os filisteus tornaram-se os primeiros a usar esse processo na Palestina. Resguardando cuidadosamente esse monopólio, mantiveram Israel à sua mercê. Isso é claramente refletido em 1Sm 13:19-22: “Ora em toda a terra de Israel nem um ferreiro se achava…”. Não somente os israelitas não tinham ferreiros que fabricassem espadas e lanças, mas chegavam a depender dos filisteus para que afiassem seus instrumentos agrícolas. Com essas avassaladoras disparidades contra eles, os israelitas estiveram a pique de se sujeitarem a uma escravidão sem esperança ante os filisteus.

O Início da Idade do Ferro. A Idade do Ferro no Oriente Médio começa em c. 1200. A aplicação bem difundida dos novos métodos de refino do minério de ferro e a manufatura de instrumentos e armas de ferro encerraram a Idade do Bronze precedente (sendo o bronze uma mistura de cobre e estanho). A palavra hebraica correspondente a ferro (barzel) é emprestada do hitita; justamente, a metalurgia do ferro parece ter sido introduzida no distrito de Kizzuwatna, no leste do império hitita. É provável que já em 1400 (antes da conquista hitita de Mitani em c. 1370), os reis de Mitani tenham enviado objetos de ferro como presentes para os faraós egípcios. Entre as primeiras referências ao ferro no Antigo Testamento estão a cama de ferro (ou sarcófago) de Ogue, rei de Basã (Dt 3.11, se devidamente interpretado), as rodas de carros com aro de ferro, dos cananeus (Js 17.16) e de Sísera (Jz 4.3), e o monopólio filisteu da metalurgia do ferro (ISm 13.19, 22). Entretanto, o monopólio desfrutado pelos hititas e, mais tarde, pelos filisteus logo foi quebrado. Pelo século XII a.C., o ferro era comum no Oriente Médio. (William S. LaSor – Introdução ao Antigo testamento, 182).

Voltemos agora ao caso dos reis.

O “direito” do rei

A monarquia nem sequer era unânime no mundo da Bíblia. É possível perceber nas narrativas tradições favoráveis à monarquia (1Sm 8,1-5.21-22; 9,1-10,16; 11) e tradições contrárias a ela (1Sm 7; 8,6-20; 10,17-27; 12).

Um exemplo que pode nos ajudar facilmente com isso é o contexto de 1Samuel 7, o pano de fundo da origem da monarquia israelita, cuja origem é profundamente idólatra e remete a um desejo pecaminoso por um líder; e pior: à semelhança do faraó! – um tipo de bezerro de ouro particularmente poderoso. O capítulo 7 de 1Samuel marca um momento novo na história do povo de Israel, a saber, o período de retorno da Arca da Aliança, que permaneceu sete meses em território filisteu. (adaptado de: Yago Martins, No Alvorecer dos Deuses, p. 127).

Mesmo com o retorno da Arca, lemos que o povo estava cometendo idolatria com imagens que representavam divindades de outros povos: “E Samuel disse a toda a nação de Israel: ‘Se vocês querem voltar-se para o Senhor de todo o coração, livrem-se então dos deuses estrangeiros e dos postes sagrados, consagrem-se ao Senhor e prestem culto somente a ele, e ele os libertará das mãos dos filisteus’. Assim, os israelitas se livraram dos baalins e dos postes sagrados, e começaram a prestar culto somente a Iavé” (1Samuel 7:3-4).

Sob a liderança de Samuel como juiz, Israel foi capaz de ganhar uma ascendência sobre os Filisteus. Quando Eli, o sumo sacerdote, permitiu que seus filhos Hofni e Fineias tomassem a arca da aliança, representando o trono (reinado) e a misericórdia de Deus Yahweh, para dentro da batalha, os Filisteus foram vitoriosos; a arca foi capturada. Foi uma derrota humilhante para Israel e a causa da morte de Eli (1Sm 4). Deus Yahweh, no entanto, revelou sua soberania sobre o deus Filisteu, Dagom (1Sm 5.1-5) e sobre a saúde e vida dos Filisteus. Yahweh, administrando a criação, fez com que os Filisteus devolvessem a arca (1Sm 6) e manteve sua santidade no meio de Israel quando setenta pessoas de Bete-Semes foram mortos por violarem a arca, olhando para dentro dela […] Os Filisteus pensaram que Israel não estava pronto para a batalha e que seria facilmente vencido. Deus Yahweh, demonstrando seu poder soberano e o governo sobre as forças criacionais, fez com que os Filisteus entrassem em pânico (1Sm 7.10). O comentário se segue: “durante toda a vida de Samuel, a mão do Senhor foi contra os Filisteus“. Israel recuperou o território que havia sido tomado dele. Sua herança foi restaurada (1Sm 7.13, 14). (Mauro Meister – Teologia bíblica – Antigo Testamento, p. 104).

Nesse período, Samuel governava Israel como profeta e juiz, decidindo as questões do povo (1Samuel 7:15-16). Ele o fazia em representação profética da vontade de Iavé, e lhe dava honras por isso (7:17). Tudo ia muito bem até que Samuel envelheceu e seus filhos, aparentemente, tomaram seu lugar como liderança de Israel. A solução do povo, porém, foi algo que nem de longe provinha da mão de Deus, mas sim um retorno aos antigos pecados que assolavam o povo: “Tu já estás idoso, e teus filhos não andam em teus caminhos, escolhe agora um rei para que nos lidere, à semelhança das outras nações (v.5). (Yago Martins, No Alvorecer dos Deuses, p. 127).

Entre os textos críticos à monarquia e que podem servir de referência para compreender o que foi o sistema monárquico, com sua estrutura de exploração, destaca-se justamente a resposta de Samuel ao pedido do povo: 1Samuel 8, particularmente os versículos 6 a 20, […] que descreve como nenhum outro o que representou a monarquia para o povo em Israel. Segundo o relato, os interessados pela realeza são os anciãos de Israel. São eles que se dirigem a Samuel e pedem que este constitua sobre eles um rei, pois Samuel já está velho e seus filhos não seguem seu exemplo. Na sua origem, os anciãos eram os chefes dos clãs e faziam parte do chamado “conselho de anciãos”, uma espécie de colegiado onde cada um representava seu respectivo clã nas decisões políticas da tribo (Ex 3,16; 4,29). Na monarquia, esse grupo passa a formar um conselho composto por homens de alto poder aquisitivo, grandes proprietários de terras, e com forte influência política na corte (2Sm 27,4.15; 1Rs 20,7-9). Perceba a estreitíssima semelhança com o grupo dos sacerdotes, favorecido na novela de José. Esses anciãos, por sua vez, são denunciados pelos profetas como opressores do povo e exploradores dos pobres (Is 3,14-15). No Novo Testamento, o próprio Jesus trava um embate direto com o conselho de anciãos (Mc 11,27); razão pela qual esse grupo faz parte dos que tramam sua morte (Mt 26,3). É evidente que aqui em 1Sm 8,4 os anciãos representem um poder similar ao que podemos ver em 1Rs 20,7-9, participando das intrigas da corte e influenciando grandemente a escolha do rei.

O curioso é que no caso de 1Sm 8, os anciãos justificam que a causa da rejeição de Samuel é sua velhice, mas Javé diz que não é a Samuel que eles rejeitam, mas a ele próprio, Javé, pois não querem mais que Javé reine sobre eles (1Sm 8,7). De fato, na monarquia o rei toma o lugar de Deus. Inclusive, o rei passa a ser chamado de “o filho de Deus” e recebe o adjetivo de o “ungido de Javé”, termo que em hebraico significa “messias” (1Sm 2,10,35; 24,10).

A pergunta é: se o rei toma o lugar de Deus, o que é feito de Deus, então? Ou seja, Javé desaparece na monarquia? Na realidade, não. O que muda é a forma de conceber a Javé. A monarquia é só outro elemento da história de Israel que Deus, ao invés de eliminar, apenas gerencia.

Seguindo o relato de 1Sm 8, encontramos nos versículos 10 a 18 um panorama bastante amplo, talvez único na Bíblia, de como será ou era a política de exploração dos reis em Israel e, certamente, nos reinos vizinhos. A primeira atitude do rei será a de convocar os filhos do povo para formar seu exército e combater em suas guerras: compor a infantaria, cuidar dos carros de guerra, dos cavalos, e organizar os combatentes. Portanto, a composição de um exército profissional e permanente é a especificidade por excelência que caracteriza a monarquia. A atitude seguinte será a introdução da corveia, ou trabalho forçado, para lavrar as terras do rei, fazer suas colheitas, construir seus armazéns, fabricar armas para o exército e as peças para os carros de guerra (1Rs 9,15-22). Lembre-se: Israel não tinha armas até então, mas não por não querer produzi-las, mas por ser impedido de fazê-lo por força do monopólio estatal dos filisteus. E se antes eram impedidos de produzir, agora seriam obrigados a produzir e usar até a morte se necessário.

Seguem depois as funções secundárias. Aqui predomina o verbo laqah, “tomar”. O rei vai tomar as filhas para perfumistas, cozinheiras e padeiras (1Rs 11,3); vai tomar do povo seus campos, vinhas e os melhores olivais (1Sm 22,7-8; 1Rs 21) para dar aos seus oficiais; vai tomar o tributo, as plantações e os rebanhos (1Rs 5,2-3; Am 5,11; Mq 2,2); vai tomar os jovens do povo para o trabalho forçado (1Rs 5,27). No final, tudo e todos serão propriedade do rei (Gn 47,13-26). Ou seja, com a monarquia há uma volta para a escravidão do Egito (Ex 13,3.14). É importante enfatizar que o texto deixa claro que o “direito do rei” não é vontade de Deus.

Saul

A Bíblia apresenta Saul como sendo o primeiro rei de Israel. O mais interessante na argumentação dos estatistas é que usam textos anteriores que anunciavam uma era futura de reinado como se fossem passagens prescritivas (cf. Dt 17:14,15). Uma das inúmeras falhas está em não perceber, por exemplo, que nem o povo, nem os anciãos sequer estavam interessados nessas predições dos textos anteriores. Uma prova disso é que Saul não era da tribo de Judá (Gn 49.8- 12), como deveria ser, mas benjamita (1Sm 9,1-2).

No próprio texto bíblico, uma das justificativas da realeza é a defesa do território de Jabes de Galaad, que havia sido atacado pelos amonitas (1Sm 11). O objetivo aqui é o controle de Jabes de Galaad, uma região rica em pecuária e por onde passava uma importante rota comercial. Isto é, o interesse é expansionista, uma vez que Galaad fica no além Jordão, fora do território israelita, já próximo da fronteira com Aram-Damasco. Pelo contexto, parece que estamos na época da dinastia amonita, em particular nos dias de Acab (873-852), quando o conflito por território com Aram-Damasco era intenso. Após a vitória contra os amonitas, todos vão a Gilgal, e ali Saul é proclamado rei. Por isso, Gilgal fica tradicionalmente conhecida como o local da inauguração da realeza (Os 9,15).

A figura de Saul é controversa: ora é abençoada, ora é amaldiçoada. De maneira que, para falar de Saul, a Bíblia apresenta duas tendências: uma mostra um Saul vitorioso, cheio de proezas, e outra mostra um Saul fracassado e até demente. Nem sempre há muita clareza para separar uma tendência da outra, pois as duas se misturam.

Como fica isso?

Por que há tantas evidências contra Davi (e a própria monarquia) paralelas a tantas outras a favor? O teólogo Mauro Meister resolve o caso todo em um único parágrafo:

O assunto básico era, no entanto, que os anciãos de Israel estavam rejeitando a Yahweh como seu Rei teocrático e seu relacionamento pactual com ele, e desejavam um líder que não fosse um agente mediador, representante de Yahweh no seu meio. Indubitavelmente, as influências satânicas estavam presentes; Satanás buscava trazer Israel completamente para dentro do seu domínio parasita. E o tempo para Satanás fazer este esforço especial era, precisamente, quando Deus Yahweh estava iniciando a revelação posterior do seu plano do reino e realização da sua meta de consumação através da eleição e unção de um rei que iria simbolizar, tipificar e servir como um ancestral do mediador divino, messiânico, que apareceria pessoalmente, em carne, quando o tempo alcançasse a plenitude para isso (Gl 4.4). (Mauro Meister – Teologia bíblica – Antigo Testamento, p.105)

A ideia é óbvia: Deus está nos mostrando o seu próprio sucesso através da tradição positiva de Saul, enquanto mostra o fracasso da monarquia e da vontade do povo através da tradição negativa.

A tradição que apresenta a visão positiva de Saul parece ser bem mais antiga. Por exemplo, em 1Sm 13-14 encontramos Saul no início do reinado, em guerra contra os filisteus pelo domínio da região. Aqui se mostra uma Israel ainda nos primórdios de sua formação, que poderíamos denominar de proto-Israel.

Em Israel ainda não havia ferreiros, e, por isso, os israelitas tinham que descer até os filisteus para amolar ou para consertar as ferramentas de trabalho do campo, como arado, machado, enxada, foice etc. Até o detalhe do preço foi lembrado: para amolar a relha do arado e da enxada se cobravam dois terços de ciclo; para amolar o machado e consertar os aguilhões, um terço de ciclo. Os israelitas também eram desprovidos de espadas e lanças para a guerra. Na hora da batalha, somente Saul e seu filho Jônatan as possuíam (1Sm 13,19-22).

Aqui, o monopólio do serviço e da força, mais uma vez, refletem com tamanha exatidão os tempos atuais que nos dá calafrios!

Um tipo diferente de ilustração encontra-se em 1Samuel 13.19-21. Nessa passagem, lemos que os filisteus não permitiam que os israelitas tivessem ferreiros, para que não fossem capazes de forjar espadas para seus exércitos. Por muito tempo, os tradutores tiveram dificuldade ao interpretar esses versículos. Parecia estranho não haver nenhum ferreiro entre os israelitas, pois o trabalho com metal já era conhecido havia séculos, em toda a região do Oriente Próximo. Informações recebidas posteriormente provam que esses versículos retratam exatamente a situação do povo de Israel na época. Os filisteus introduziram a Idade do Ferro na Palestina e, a princípio, mantiveram o monopólio do trabalho com esse material (Laird Harris – Introdução à Bíblia, p.110)

A identificação de Israel com os hebreus é outra referência da antiguidade dessas tradições (1Sm 13,3.7.14; 14,11.21). Há indícios de outros povos eram chamados de na região. Esses hebreus eram camponeses cananeus que perderam suas terras para os senhores das cidades-estado e, como sem-terras, passaram a viver à margem da sociedade. Com o tempo, muitos se tornaram bandos armados a serviço de reis locais, outros viraram assaltantes, outros, ainda, começaram a ocupar terras nas montanhas, fora do controle das cidades-estado. Em fontes extrabíblicas, como nas Cartas de Amarna (séc. XIV a.C.), esses hebreus são chamados de ápiros, substantivo que no hebraico tem a mesma raiz que hebreu. Provavelmente, Israel surge desse segmento, tanto que, aos olhos dos estrangeiros, os israelitas são hebreus (1Sm 14,11; Gn 39,14-17; 41,12; 43,32). No entanto, Israel não é constituída por esses tais hebreus-ápiros: ela se origina com hebreus-ápiros, mas não continua assim.

O que estamos dizendo, mais especificamente, é isto: não se deve confundir “hebreus” com “israelitas”, pois não são os mesmos povos. Você pode ler mais especificamente sobre isso no post: Os hebreus não são os israelitas.

Enquanto povo, Israel já tem uma identidade própria, mas os hebreus-ápiros continuam sendo classe marginalizada, que pode ser encontrada em todo Antigo Oriente, não só em Israel. Veja como o próprio texto do Antigo Testamento faz distinção entre hebreus e israelitas:

“Alguns hebreus que antes estavam do lado dos filisteus e que com eles tinham ido ao acampamento filisteu, passaram para o lado dos israelitas que estavam com Saul e Jônatas” (1Samuel 14:21).

1Samuel 14,21 ilustra bem o que estamos expondo aqui. O texto narra uma batalha de Israel, sob a direção de Saul e Jônatan, contra os filisteus. Os Israelitas são chamados pelos filisteus de hebreus: “Disseram os filisteus: eis que os hebreus saíram das cavernas que lá se haviam escondido” (1Sm 14,11b). Mas, ao mesmo tempo, havia hebreus a serviço dos filisteus que, inclusive, na hora da batalha acabaram passando para o lado israelita (1Sm 14,21). Ou seja, temos aqui dois conceitos de “hebreu”: um que se refere ao povo de Israel, enquanto nação ou etnia, e outro que se refere a um grupo mercenário a serviço dos filisteus, mas que poderia estar a serviço de outro monarca qualquer, e que muda de lado conforme bem lhe parecer. Portanto, estamos aqui lidando com fontes antigas ligadas a Israel e que mostram um Saul vitorioso, como é o caso de 1Sm 14,47-51, que afirma que por onde quer que Saul se voltasse se tornava vitorioso. Além disso, todos os personagens citados são da casa de Saul, o que é um indício de que o poder estava concentrado no seu clã.

A segunda tendência dos relatos, que menospreza Saul, provavelmente é mais recente. Essa tendência vai por duas direções: (1) Uma delas critica Saul e a monarquia como um todo, e essa crítica é oriunda da teologia pós-exílica, que visa promover a teocracia e se caracteriza em frases como: “Pedir um rei foi um grave mal cometido contra Javé” (1Sm 12,17). Em contrapartida, ela enaltece a figura de Samuel, que age como um sacerdote intercedendo pelo povo e pedindo em troca o temor a Javé como único Deus (1Sm 12,20-24; 15,24-26). (2) A outra critica Saul, mas não a monarquia, sendo de registro posterior, e que tem o objetivo de fazer uma releitura das tradições do norte em favor da casa davídica e contra a casa de Saul. A evidência nessa releitura é a rejeição de Saul por parte de Javé (1Sm 15,23.26).

Outro fator que é preciso mencionar é que Saul ainda não pode ser identificado com um rei, no sentido mais estrito do termo. Ele deve ser identificado bem mais com um chefe, um líder tribal. Em 1Sm 11 vemos Saul trabalhando no campo como os demais, sem privilégios de rei, sem palácio, sem corte etc. A estrutura burocrática de Saul é precária e ligada ao seu clã (1Sm 14,50-51). Só tem um funcionário, que é Abner, chefe do exército e primo de Saul. Nem a cobrança de tributo é mencionada. O mesmo pode ser aplicado a Davi, como veremos mais adiante. Ou seja, com Saul e Davi ainda nos encontramos num período de pré-Estado. No conceito mais exato do termo, provavelmente Israel só vai atingir status de Estado desenvolvido no início do século IX, com Omri e Acabe. Por sua vez, Judá só vai chegar a esse estágio no final do século VIII e início do século VII, com Ezequias (716-687) e Manassés (687-642), e mais precisamente com Josias (640-609).

Davi, um líder popular do sul de Judá

Devido a essa situação dúbia do direito de sucessão de Davi, a narrativa bíblica ao longo do livro de 1º Samuel mostra uma forte preocupação em justificar a chegada de Davi ao poder. A expressão mais comum que se utiliza é: “Javé estava com Davi”. Em contrapartida, Saul é abandonado por Javé. Sem a presença de Javé, um espírito impuro se apossa de Saul, que só pode ser acalmado por um tocador de harpa e possuidor do Espírito de Javé (1Sm 16,14-23). Assim, Davi é habilmente introduzido na corte de Saul (Ex 2,1-10; Gn 39,1-6).

Outra tradição que versa sobre a entrada de Davi na corte de Saul acontece por via da história da luta de Davi com Golias (1Sm 17,1-58). Novamente Davi é contemplado porque deposita sua confiança em Javé.

As narrativas do primeiro livro de Samuel relatam que a entrada de Davi na corte inicia as intrigas entre ele e Saul na disputa pelo poder. Davi é amado por todos, enquanto Saul é odiado (1Sm 18,6-16). A tensão fica insustentável, a ponto de Davi ser obrigado a fugir. Nessa fuga ele é auxiliado por Jônatan, Micol, Samuel e Aquimelec.

Davi era um oficial do exército de Saul que, do ponto de vista puramente humano, conspirou contra o seu rei. Não podendo fazer frente ao seu antigo rei, Davi é obrigado a fugir para o deserto, onde forma um bando com pessoas endividadas que viviam à margem da sociedade (1Sm 22,1-8). Portanto, o conflito se amplia: de um lado se encontra Saul com um exército, e do outro está Davi com um bando mercenário mantido com tributos e saques (1Sm 25; 27,5-12). É possível que tenha sido nesse meio, no deserto e ao lado dos excluídos, dos sem-terra, que nasceu a história popular de um herói chamado Davi. História essa que foi ganhando corpo até se transformar em lenda.

Conforme a narrativa bíblica, a perseguição de Saul força Davi a buscar o apoio dos filisteus, os arqui-inimigos de Israel (1Sm 21,11-16; 27,1). Começa, então, a relação dúbia de Davi com os filisteus: ora está a seu serviço, ora está contra eles (1Sm 23,1-13; 27). Chama a atenção, na batalha de Israel contra os filisteus, na qual Saul e seus filhos perdem a vida, o fato de Davi estar do lado dos filisteus (1Sm 27,1-28,2; 31). Porém, antes da batalha iniciar, na planície de Jezreel, junto ao monte Gelboé, Davi se retira (1Sm 29). Com isso ele não é culpado da morte de Saul, apesar de ser o mais favorecido por ela. Os filisteus matam Saul e penduram seu corpo na muralha de Betsã (1Sm 31,10). O interessante é que a narrativa sinaliza que são os habitantes de Jabes de Galaad que resgatam o corpo de Saul (1Sm 31,11-13). Mais um indício da estreita relação entre Israel e a região de Galaad.

Se entendemos que o fim do reino de Saul se deve à intervenção do faraó Sheshonq (926 a.C.), então é possível que a batalha no monte Gelboé, na qual Saul e seu filho Jônatan foram mortos, não tenha sido contra os filisteus, mas contra o exército egípcio do faraó Sheshong. A memória guardou a batalha e o local, mas, devido ao conflito permanente com os filisteus e à ausência egípcia, estes foram substituídos por aqueles. Ou, então, os filisteus estavam a serviço dos egípcios quando da derrocada, o que também é possível.

Assim termina o que podemos chamar de fase inicial do reino de Israel Norte, que deve ser localizado no planalto central entre Benjamim e Efraim, com a base em Gibeon. Posteriormente se estendeu ao norte, em direção ao vale de Jezreel, e ao leste, na direção de Galaad, na Transjordânia. Tudo indica que também se estendeu em direção ao sul, Judá, como atestam as escavações no sítio arqueológico de Khirbet Qeiyafa. Provavelmente não pôde se estender em direção ao oeste por causa da presença dos filisteus. É difícil saber exatamente o que é histórico em tudo isso, uma vez que o material bíblico que temos em mãos é bem posterior aos acontecimentos narrados. Somam-se a isso as ideologias da casa davídica e, posteriormente, sacerdotal, que encobrem fontes primitivas que aqui e ali trazem uma tênue memória das origens da monarquia em Israel Norte.

Os feitos de Davi

Com a morte de Saul pelos filisteus ou egípcios, a narrativa bíblica mostra que Davi começa a ganhar terreno. Seu pequeno reino começou em Siceleg, que recebera dos filisteus (1Sm 27,5-7), e se estendeu até Hebron, onde foi ungido rei sobre a casa de Judá (2Sm 1-4). Em Hebron, Davi vai reinar por sete anos e dois meses.

Conforme o relato bíblico, ao mesmo tempo que Davi é feito rei sobre Judá, o filho de Saul, Isbaal (homem de Baal), cognominado Isboset (homem da vergonha), é feito rei sobre toda Israel em Maanaim, na região de Galaad (2Sm 8-11). Isso quer dizer que a casa de Saul continua a reinar, provavelmente também subjugada pelos filisteus ou egípcios, por quem fora derrotada na guerra que resultou na morte de Saul e Jônatan. Há, portanto, dois pequenos reinos coexistindo e sobrevivendo na região: um estabelecido em Hebron e outro na rica região de Galaad. Conforme nos conta a Bíblia, a disputa entre os dois reinos termina com a morte primeiro de Abner, chefe do exército de Saul (2Sm 3,22-27), e depois de Isbaal, filho de Saul (2Sm 4,1-12). Há que se mencionar que Davi sempre é inocentado das mortes dos seus inimigos (2Sm 3,28.37).

Após a morte de Isbaal, Davi é ungido rei pelas tribos sobre toda Israel (2Sm 5,1-5). Não devemos entender isso como o domínio sobre toda a região que tradicionalmente é atribuída às doze tribos de Israel, que vai de Dã a Beersheva e de Galaad ao Mar Mediterrâneo. Não podemos esquecer que a base do reinado de Davi está restrita à árida região que fica entre Siceleg e Hebron, na fronteira do deserto de Judá.

Davi, após ter sido ungido rei, foi imediatamente desafiado pelos filisteus (2 Sm 5.17). Davi se relacionou de modos diversos com os filisteus antes de ser rei. Ele havia lutado contra eles e obtido vitórias para Saul (1 Sm 17.50, 51; 18.27, 30). Saul teve problemas militares com eles continuamente (1 Sm 13.1-14.52). O texto declara que “por todos os dias de Saul, houve forte guerra contra os filisteus”. Ele deveria ter libertado Israel dos filisteus (1 Sm 9.16), assim como Sansão deveria tê-lo feito (Jz 13.5). Ambos morreram sem fazê-lo; Sansão, na verdade, morreu entre eles (Jz 16.30). Contra eles também morreram na batalha Saul e Jônatas (1 Sm 31). Davi buscou refúgio entre os filisteus (1 Sm 27.1-7) e foi uma espécie de quinta coluna no meio deles. Os comandantes filisteus tinham razão em não confiar em Davi (1 Sm 29. 4, 9). Nessas experiências variadas contra os arqui-inimigos de Israel, Davi aprendeu muito sobre o caráter e habilidades deles. Assim, quando confrontado pelas forças militares filisteias, ele, sabiamente, se consultava primeiramente com Yahweh. Deus é quem lhe asseguraria a vitória. Duas vezes ele os derrotou com a ajuda de Deus Yahweh, o Senhor do pacto da criação, que usou sons naturais para aterrorizar o inimigo (2 Sm 5.24). Os filisteus abandonaram seus ídolos e fugiram até o extremo sul da terra prometida. Eles continuaram a ser uma ameaça e Davi teve que tratar deles novamente (2 Sm 8.1). Ele era conhecido em Israel como o rei que tinha libertado Israel dos filisteus (2 Sm 19.9). Até a sua velhice, os filisteus permaneceram uma ameaça na fronteira sul (2 Sm 21.15-22). Davi e seus guerreiros continuaram triunfantes sobre eles (2 Sm 23.9-16). Desse modo, o domínio do seu reino foi estabelecido e defendido na área sudoeste de Canaã. (Mauro Meister – Teologia bíblica – Antigo Testamento, p. 120).

—- Adaptado de José Ademar Kaefer – A Bíblia, a arqueologia e a história de Israel e Judá.

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