A Data do Êxodo

A cronologia do Êxodo apresenta problemas que sem dúvida estão entre os mais complicados em toda a história hebraica. Ela foi assunto de acalorado debate por vários anos, e as dificuldades, de maneira nenhuma, estão solucionadas no presente. As duas principais interpretações conflitantes têm uma diferença de mais de um século e meio, e ambas encontram sustentação, até certo ponto, pelas narrativas bíblicas. A data mais antiga coloca o Êxodo no reinado de Amenhotep III, da Décima Oitava Dinastia, ao passo que a data mais recente o considera como tendo ocorrido na Décima Nona Dinastia, quando Ramsés II governava o Egito.

A data do século XV se baseia, parcialmente, em uma observação cronológica de 1 Reis 6.1, que afirma que Salomão começou a construir o Templo quatrocentos e oitenta anos depois do Êxodo, e parcialmente na data da conquista de Canaã, incluindo a queda de Jerico, assim como em outras fontes arqueológicas. Supondo que a referência a Salomão considere uma data ao redor de 961 a.C, o Êxodo teria ocorrido em aproximadamente 1441 a.C. As escavações de Garstang em Jerico possibilitaram israelitas invasores antes de 1400 a.C.21 Também se afirmou que o contato diplomático entre Jerico e o Egito foi interrompido sob o governo de Amenhotep III (1413-1377 a.C), tornando Amenhotep II (1436-1422 a.C.) o faraó do Êxodo. A queda de Jerico tinha sido precedida pela ocupação israelita de Moabe, que, segundo Jefté em Juizes 11.26, se estendeu por um período de trezentos anos. Se a época de Jefté for entendida como 1100 a.C, a ocupação do território Moabita teria ocorrido em aproximadamente 1400 a.C, que, mais uma vez, atribuiu ao Êxodo uma data no século XV a.C.

Circunstâncias da história egípcia também forneceram provas a favor de uma data nesta época, tornando, desta maneira, Tutmés III, o grande edificador do império, o faraó da opressão israelita. Um mural na tumba de Rekhmire, o vizir de Tutmés III, retrata uma cena de fabricação de tijolos, em que escravos estão ume – decendo montes de barro do Nilo, acrescentando areia e palha picada, e colocando a mistura em moldes para assar ao sol. O mural traz uma inscrição que lembra o conselho dado pelos capatazes aos hebreus escravizados: “A vara está na minha mão; não sejam ociosos”.

A menção aos habiru invasores nas tábuas de Tell al-Amarna (de aprox. 1400- 1360 a.C.) foi interpretada como particularmente significativa na atribuição de uma data anterior para o Êxodo. Os habiru foram comparados aos hebreus conquistadores, e as agitadas condições políticas refletidas nas tábuas foram consideradas como sendo as que existiam em Canaã antes da invasão dos israelitas. Desta maneira, o pedido de Abdi-Hiba, governador de Jerusalém, em carta ao faraó Akhenaton, na qual solicitava ajuda contra os saqueadores habiru, foi considerada como uma versão cananeia nativa das conquistas de Josué:

Que o rei… envie arqueiros contra os homens que transgridem contra o rei, meu senhor. Se houver arqueiros (aqui) neste ano, então as terras… (ainda) pertencerão ao rei, meu senhor. Se não houver arqueiros, as terras… (não mais) pertencerão ao rei…

Os argumentos para a atribuição da data do Êxodo no século XIII a.C. se baseavam, em parte, na referência encontrada em Êxodo 1.11, que implica que os israelitas estavam em escravidão quando as cidades de Ramessés e Pitom estavam sendo edificadas ou ampliadas, fazendo de Seti I ou Ramsés II o faraó da opressão israelita. Inscrições contemporâneas mencionam que o povo que trabalhava para Ramsés era conhecido como Apiru, que é identificado, por muitos estudiosos, com os Habiru. Uma stela encontrada em Ramessés registrava que a cidade foi fundada quatrocentos anos antes que o monumento fosse erigido, e uma vez que a data do monumento era aproximadamente 1320 a.C, a capital dos hicsos teria sido fundada em 1720 a.C. Como observamos anteriormente, a conexão entre a invasão do Egito pelos hicsos e a ocupação dos hebreus da terra de Gósen, foi considerada como implícita pela tradição em Êxodo 12.40, que apresenta uma permanência de quatrocentos e trinta anos de Israel no Egito, e que provavelmente se baseia na era de Avaris. Esta interpretação é defendida pela referência em Números 13.22, que afirma que Hebrom foi construída sete anos antes que Zoã (Avaris), usando o período de Avaris como um meio para a datação. Com base nessa informação, o Êxodo teria ocorrido cerca de quatrocentos e trinta anos depois que Avaris-Tânis foi fundada, fornecendo a data aproximada de 1300 a.C.

Novas evidências a favor de uma data no século XIII para o Êxodo emergiram do trabalho de Glueck na Transjordânia. Ele descobriu que depois da época de Abraão, os territórios de Edom e Moabe ficaram privados de população até a metade do século XIII a.C. Fundamentado nesse dado, ficou evidente que as condições da população que precisava do circuito de Edom, e as difíceis campanhas contra os amonitas em Hesbom (Nm 20-21) dificilmente teriam existido até o século XIII, e depois disto Edom esteve densamente povoada.

Uma data ainda mais posterior para a queda de Jerico (1250 a.C), foi sugerida por Vincent, um eminente arqueólogo palestino, que baseou suas conclusões, até certo ponto, na descoberta de imitações de vasos micenos em Jerico. Provavelmente teriam sido importados de origens gregas quando a civilização minoana de Creta (de aprox. 2000-1000 a.C.) exercia uma importante influência cultural sobre as terras do Mediterrâneo, e pertenciam propriamente ao período Final Bronze II (de aprox. 1375-1200 a.C), com o término dessa influência não mais foram importados. No entanto, outras considerações arqueológicas têm um peso muito forte contra uma data tão tardia para o Êxodo, incluindo o fato de que toda uma série de cidades cananeias, tais como Laquis e Betei caíram no século XIII a.C.

Fica evidente, com base nesta breve exposição da situação, que nenhuma seqüência de datação deixa de apresentar suas dificuldades. A data do século XV apresenta problemas também para a cronologia do período patriarcal, pois interpretando as narrativas do livro de Gênesis tal como estão escritas, pareceria que houve um período de duzentos e cinquenta anos entre a chegada de Abraão a Canaã e a migração de Jacó para o Egito. Se a afirmação de que Israel esteve no Egito por quatrocentos e trinta anos (Ex 12.40) for considerada independentemente do movimento dos hicsos, supostamente significaria que Abraão entrou em Canaã por volta de seiscentos e quarenta e cinco anos antes do Êxodo, aproximadamente em 2086 a.C. Uma vez que ele tinha setenta e cinco anos de idade nesta época (Gn 12.4), seu nascimento teria ocorrido por volta de 2161 a.C., algum tempo antes da Terceira Dinastia de Ur (de aprox. 2070-1960 a.C.). Esta data parece um pouco precoce, a julgar pela tendência das migrações na Mesopotâmia depois do século XII a.C. Se, no entanto, Abraão entrou em Canaã em torno de 1900 a.C, como os indícios arqueológicos relativos à destruição de Sodoma e Gomorra parecem indicar, uma permanência prolongada dos israelitas no Egito indicaria uma data no século XIII para o Êxodo.

De acordo com Gênesis 15.13, os descendentes de Abraão iriam sofrer aflições em terra estrangeira por quatrocentos anos, ao passo que a tradição de Êxodo 12.40 estende a permanência a quatrocentos e trinta anos. A versão grega Septuaginta do último texto, no entanto, reduziu o período a duzentos e cinquenta anos. Provavelmente há duas tradições envolvidas aqui: a primeira, indicando uma estada prolongada, parece ter computado a extensão da permanência a partir da época em que os hicsos entraram no Egito (1720 a.C), ao passo que a septuaginta calculou a “servidão” real a partir da época em que os hicsos foram expulsos. Em qualquer caso, as duas tradições indicariam uma data mais próxima do início do século XIII a.C, se as migrações dos patriarcas estivessem conectadas com a era de Avaris.

Parte da dificuldade na interpretação correta da referência de 1 Reis 6.1, está no fato de que os povos orientais frequentemente usavam números para indicar coisas além de considerações puramente matemáticas. Na realidade, a atitude dos primeiros autores bíblicos com relação aos cálculos gerais tem muito em comum com a do beduíno árabe moderno. Quando é necessária uma maior exatidão cronológica, as genealogias são muito mais importantes, para a mente oriental, do que o método ocidental de cálculo em termos de dias, meses e anos. Esta é uma das razões para a constante presença das genealogias nas narrativas bíblicas, de modo geral, e também explica, em parte, o uso de “números redondos” para expressar duração de períodos aproximados de tempo.

Assim sendo, a expressão “quarenta anos” era um sinônimo do conceito de uma “geração”. Quando parece haver um tema ou ciclo que envolve setes ou quarentas e números similares, é provável que algo além de considerações puramente literais esteja envolvido. Quando a referência em 1 Reis 6.1 é examinada deste ponto de vista, descobre-se que abrange uma questão de doze gerações, de quarenta anos cada uma. Esse fato parece envolver um ciclo duplo, e pode se relacionar, de algum modo, à ideia de gerações sucessivas, como aplicada às doze tribos. Se o número for interpretado literalmente, no entanto, apontará fortemente para uma data no século XV a.C, para o Êxodo.

A evidência que as escavações de Garstang em Jerico apresentaram a favor de uma data mais antiga, foi seriamente prejudicada devido a trabalhos posteriores no local, realizados sob a supervisão de Dame Kathleen Kenyon, a partir de 1951. Sellin, Watzinger e Garstang tinham demonstrado que Jerico estava habitada nos tempos neolíticos, e que diversas cidades foram erigidas no local durante a era calcolítica (4500-3000 a.C.). Cidades posteriores, que Garstang identificou alfabeticamente, datavam de 3000 a.C, e a quarta destas cidades, a Cidade D, construída aproximadamente em 1500 a.C. era considerada como sendo aquela destruída por Josué em 1400 a.C. Porém, escavações realizadas desde 1951 mostraram que praticamente nada é conhecido sobre o lugar, ao menos da maneira como existia nos tempos de Josué, devido à erosão natural e à destruição humana. Uma vez que não foram descobertos indícios de muros do Final da Idade do Bronze, e não foram encontrados restos de cerâmicas contemporâneas, tornou-se praticamente impossível dizer quando ocorreu esta destruição pelas mãos dos israelitas. Recentes descobertas em Jerico demonstraram, de modo inquestionável, a imensa antiguidade do local, e esclareceram ainda mais a natureza das comunidades neolíticas daquele local, anteriores à cerâmica. Entretanto, não houve nenhuma informação nova sobre a cronologia do Êxodo, e podem passar alguns anos antes que uma nova avaliação do problema da data seja possível.

Objeções à data no século XIII geralmente consideram as condições da Décima Oitava Dinastia como ideais para a escravização dos hebreus. Alguns estudiosos argumentaram que a referência à cidade do tesouro de Ramessés, em Êxodo 1.11, é uma referência ao edifício da capital original dos hicsos, Avaris-Tânis, aproximadamente em 1720 a.C, por meio de trabalho israelita, e não à sua ampliação, sob Ramsés II (1290-1224 a.C). Esta interpretação supõe que os israelitas entraram no Egito aproximadamente em 1870 a.C, durante o forte período do Reino Médio, e que foram escravizados quando os hicsos conquistaram o Egito, por volta de 1720 a.C. O nome “Casa de Ramsés” (Per-Re’emanese), pelo qual Tânis foi conhecida durante dois séculos (em aprox. 1300-1100 a.C.) é considerado como sendo uma forma modernizada da arcaica Zoã-Avaris, da mesma maneira que Laís (Gn 14.14) foi posteriormente modificada para Dã, com a referência sendo, no que diz respeito a Tânis, originalmente a capital dos hicsos.

A possível relação entre os habiru das tábuas de Amarra, os hebreus e os Aperu (Apiru) também foi apresentada como um argumento contra a data do Êxodo no século XIII. Nesta interpretação, a conquista da Palestina pelos hebreus foi, na verdade, a invasão dos habiru, da qual os príncipes dos estados cananeus reclamaram em correspondência enviada a Amenhotep III e Amenhotep IV. Infelizmente não está claro, de maneira alguma, que houvesse algum relacionamento entre os habiru, os hebreus e os aperu, e o problema é no mínimo muito complexo.26 Alguns estudiosos que identificam os habiru e os hebreus afirmaram haver alguma relação entre os habiru e os aperu, mas não houve, até hoje, nenhum indício claro sobre este tema.

As primeiras referências à presença dos aperu no Egito datam do tempo de Amenhotep II, que é o faraó do Êxodo, segundo a sequência de datação do século XV. Os aperu podem ter sido empregados, parcialmente, como tropas mercenárias, e definitivamente são retratados em inscrições dos tempos de Ramsés II, como trabalhadores realizando trabalhos manuais pesados em pedreiras e nos locais em construção. Mas mesmo que tivesse existido alguma relação entre os hebreus e os aperu, o fato de que estes últimos estiveram no Egito desde o século XV até a metade do século XX a.C indicaria que, pelo menos, alguns deles não deixaram o país com os hebreus, qualquer que tenha sido a data real do Êxodo.

Alguns estudiosos também questionaram a validade das explorações de superfície feitas por Glueck na Transjordânia; e até mesmo Albright, que apoiou suas conclusões genéricas, admitiu que algumas modificações podiam ser necessárias.27 Consequentemente, têm-se observado que a falta de população sedentária nas regiões da Arábia e Transjordânia, entre 1900 e 1300 a.C. não foi tão pronunciada como Glueck afirmou. Desta maneira, pode ter havido uma resistência suficientemente organizada entre os edomitas e os amonitas para justificar a situação descrita em Números 20-21. Seja como for, as conquistas dos israelitas peregrinos podem ter sido igualadas pelos feitos militares de outras tribos nômades guerreiras, ou de tribos cuja economia fosse de uma única variedade agrícola, como pode ter sido o caso dos edomitas e amonitas no século XV a.C.

Parece, com base nas considerações anteriores, que deve ser tomado um grande cuidado na interpretação de dados arqueológicos, e a sua correlação com as narrativas bíblicas. Embora as escavações arqueológicas frequentemente tenham um propósito útil, para esclarecer a história antiga e a vida social daquele tempo, também podem apresentar uma variedade de problemas especiais, e a natureza subjetiva de algumas das conclusões às quais podemos chegar, frequentemente provoca considerável diferença de opinião entre os especialistas. A data do Êxodo é uma das questões mais problemáticas com que o arqueólogo bíblico se depara, mas não é demais esperar que isto seja solucionado no futuro, por novas descobertas no Egito ou em Canaã.

——- Retirado de R. K. Harrison – Tempos do Antigo Testamento.


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