O Anel dos Nibelungos (Ato 3 – 4/6)

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IV – Siegfried forja Notung

– Como é, anão, já está pronta a minha espada? – diz Siegfried, retornando ao final do dia.

Mime ainda está sob o efeito de seu delírio. Ao ver a figura do jovem avançando sobre si, ele corre para atrás da bigorna, aterrorizado.

– O que houve, covarde? – grita Siegfried, dando uma longa risada.

Mime julgou ver no jovem a figura de Fafner transformado em dragão e, agora, treme de medo, escondido sob a bigorna.

– Vamos, saia daí, verme! Como pode ser tão covarde?

– Aquele que não tem medo… fundir a espada….

– O que está dizendo? Vamos, mostre-me a espada.

– Siegfried, você deve conhecer o medo…!

– Medo? O que é isto?

– Oh, o medo!, o medo!…

Mime sai de seu esconderijo e se aproxima de Siegfried; o nibelungo traz já cristalizada em sua mente uma certeza: o jovem herói, que ele criou, é, sem dúvida alguma, aquele ao qual o andarilho referiu-se, “aquele que desconhece o medo”.

“É ele, sim… só pode ser ele!”, pensa o anão, sentindo que está chegando a hora de pôr suas mãos no anel ambicionado. Mas, para que isto aconteça, Siegfried deverá refundir a espada Notung e, depois, enfrentar e matar o dragão. Quando tudo isto tiver ocorrido, então, ele, Mime, dará um jeito de se apoderai’ do anel. Nem que, para isso, tenha de dar um fim no jovem que, agora, está postado à sua frente e que tem desenhada na face aquela mesma confiança que o anão se habituou a ver no rosto dele desde menino.

De fato, desde pequeno, o jovem Siegfried jamais demonstrara ter a menor noção do significado desta pequena, mas imensa palavra. Nunca, com efeito, o brilho do pavor luzira em seus olhos; jamais o espasmo do terror percorrera seus sólidos músculos.

Como podia haver um ser que não sabia o que era o medo?

“Oh, mas Siegfried precisa ter, ao menos, a curiosidade de conhecer este pio fundo sentimento!”, pensa Mime, enquanto continua a observá-lo atentamente.

– Siegfried, você deve aprender o que é o medo – repetiu o anão, com um tom aliciante.

– Medo? Mas não é este sentimento vil, que o faz tremer como um junco vinte vezes ao dia? – diz Siegfried ao nibelungo, com escárnio na voz. – Não, os deuses jamais haverão de permitir que tal sentimento desonre as minhas entranhas!

– Não pode ser vil, garoto, o sentimento que nos preserva a vida!

– Ao medo, oponho a prudência!

– Lérias! Prudência! E o que é a prudência, rapazinho, senão uma forma mitigada do medo? Sim, não passa de um medo suavizado, mas sempre o bom e velho medo! Um homem que ignora o medo, desconhece a sensação mais intensa e frenética que uma alma pode sentir; sem ele, uma aventura, por mais prosaica que seja, não terá jamais sabor, nem valor algum!

– Ora, tolices! Sei, perfeitamente, desfrutar uma aventura, sem que precise sentir em meu peito este sentimento ignóbil!

– Não pode sentir, pois o desconhece… O medo, meu jovem, é como um tempero, que nunca provou, uma sensação que nos impele para trás e para diante, ao mesmo tempo; um vacilar frenético das entranhas e um desejo ainda maior de dar outro passo –

só mais um\ (oh! e quanto nos custa, então!) -, mesmo que ele signifique a nossa própria a ruína, a nossa própria destruição, a nossa própria morte!

– Para que poluir a coragem com este sentimento baixo? Não, anão, tenho a certeza que, no dia em que for apresentado a este sentimento, terei perdido aquele que é o apanágio de toda alma verdadeiramente livre e nobre: o total destemor!

– Destemor!… Coragem!… Não, você nem sequer pode saber direito o que seja o destemor e a coragem, pois como poderá conhecê-los sem antes ter conhecido o medo?

Como pode conhecer o amor, sem antes ter conhecido o ódio? O dia, quem nunca esteve nas trevas? Conhece, então, o verdadeiro prazer, aquele que nunca sentiu em sua carne o punhal aguçado da dor?

– E, como você pretende me ensinar o significado desta palavra, ser vil e rastejante?

– Ora, sou eu, justamente, a pessoa indicada para isto! Pois não sou o rei do medo?

Venha, acompanhe-me até a floresta! – Mime toma Siegfried pela mão e o conduz até uma clareira.

– Veja, aqui estamos em meio às árvores. O que sente quando olha tudo isto que o cerca, sem saber direito o que se esconde atrás de cada uma destas folhas?

Por um instante, os dois contemplam a majestosa grandiosidade das árvores, cujos caules de uma largura espantosa mais parecem rochedos que se estendem para o alto e as frondes formam um manto esverdeado. O som da floresta é feito do ciciar dos insetos; dos balidos e rugidos das feras; do vento, que se espedaça de encontro aos infinitos obstáculos, que se lhe antepõem; e do murmúrio (que, às vezes, se converte em verdadeiro fragor) das águas que correm céleres pelos córregos e regatos – este ruído intenso e vário sobrepõe-se a tudo. Mime, absorvido por ele, sente crescer, dentro de si, todo o medo, todo o receio e toda suspeita, que somente as coisas incertas podem trazer.

Siegfried, entretanto, permanece sereno e diante da pergunta que o anão renova “E, então, o que sente?”, ele só responde:

– Paz, Mime, sinto uma imensa e fecunda paz.

– Oh, sim, a paz…! – diz o anão, debochando. – O mesmo sentimento que sente o passarinho inadvertido, instantes antes de ser abocanhado pela cobra!

– Deverei, a partir de hoje, enxergar cobras e serpentes por todo o lado, alma de rato? Deverei, por causa disto, transformar, desde hoje, minha vida em um círculo infernal de apreensões e suspeitas? Não, prefiro antes disto estar morto!

– Oh, sim, esteja certo de que logo estará, caso ignore por muito mais tempo o verdadeiro significado do Medo! Ouça, sinta o que se esconde por atrás disto a que chama, simploriamente, de paz: neste mesmo instante, aqui dentro desta mata que julga paradisíaca, milhões de pequeninos seres, indefesos e imprudentes como você, estão sendo impiedosamente massacrados. Logo atrás daquela árvore, que parece o emblema da serenidade, pode estar a espreitar algum animal feroz, pronto a nos desferir o seu bote mortal, que poderá nos reduzir a um monte de ossos ensangüentados antes que possa piscar os seus lindos olhos azuis.

Siegfried faz um gesto de enfado com as mãos e dá as costas ao anão.

– Mime, esta sua conversa idiota não assustaria nem o bebê de um camundongo!

Voltemos logo para nossa caverna.

– Está bem, reconheço que sou incapaz de lhe infundir o medo; mas existe algo que o fará conhecer melhor do que eu, o que seja este sentimento.

– Esta criatura ainda não nasceu, nibelungo falastrão.

– Nem um dragão monstruoso, ao qual devesse matar?

– Um dragão?

– Sim, um imenso e terrível dragão, que guarda um tesouro e um pequeno objeto alvo da cobiça dos deuses e dos homens!

Mime sente que chegou a hora de despertar a cobiça também do seu afilhado. Um homem podo desconhecer o medo, pensa ele, mas jamais a cobiça.

– Um tesouro…!

– E um anel!

– O que tem este anel de tão importante?

– Este anel, caro jovem, poderá lhe dar todo o tesouro do mundo, o que o dragão guarda e todos os outros! Ele é um anel diferente, é um Anel de Poder!

– Anel de Poder?

– Sim, com ele você será o ser mais poderoso do mundo, maior do que os próprios deuses.

– E, para adquiri-lo, devo matar este dragão de que fala?

– Exatamente! Mas, antes, deverá forjar a espada invencível, igual àquela que seu pai viu quebrar-se em suas mãos, um dia, em combate.

Siegfried tem os olhos brilhosos; sua vida, finalmente, parece ter adquirido um propósito, um significado.

– Eu tentei, meu amigo, oh!, quantas vezes tentei!, mas não consegui jamais refundir a velha espada! E, agora, eu descobri o motivo de meu fracasso. É que sou covarde, demasiado covarde. E somente um ser que desconheça inteiramente o medo, poderá juntar outra vez os pedaços da velha Notung.

– Eu o farei, então, anão incapaz! – exclama Siegfried, correndo em direção à caverna. Mime segue atrás, confiante que ele o conseguirá.

– Onde estão os fragmentos? – brada o jovem, agarrando o fole para manejá-lo com fúria sobre as pequenas línguas de fogo que ainda ardem na forja.

– Aqui estão! – diz o anão, esparramando os fragmentos diante de Siegfried.

Siegfried lança todos os pedaços sobre um cadinho e começa a dissolvê-los.

– Pare, o que está fazendo? – exclama o anão. – Você deve usar a solda quente para poder unir novamente os pedaços.

– Não, idiota! – grita Siegfried, vermelho do esforço de atiçar as flamas, que já cresceram a ponto de lhe lamber os braços. – Não percebe que os fragmentos não podem ser mais religados? Não, nada de soldas; é preciso refundir a espada inteiramente, criar uma nova Notung!

Depois que os pedaços da espada estão inteiramente dissolvidos, Siegfried derrama o aço derretido sobre um molde, até que nem mais uma gota do metal derretido reste no rubro cadinho. Em seguida, ele o mergulha na água; um chiar medonho ergue-se, como se uma criatura estivesse a se debater dentro do líquido. Um vapor muito denso envolve os dois e se evola para fora da caverna, parecendo uma nuvem aprisionada durante muito tempo e, agora, finalmente liberta, buscando o céu de sua ansiada liberdade.

– Pronto, já podemos começar a forjá-la! – exclama Siegfried, retirando da água o metal, que ainda arde. O jovem pega o martelo e, após depositar a espada rudimentar sobre a bigorna, começa a malhá-la vigorosamente. As sombras tio ferreiro improvisado e do anão projetam-se nas paredes da caverna como a de dois ciclopes, envoltos por uma chuva de faíscas, que explode a cada golpe viril do martelo. Siegfried canta uma canção que fala de uma espada, que lhe chega as mãos na hora em que mais precisa dela, tal como seu pai um dia a louvara.

O suor escorre copiosamente dos braços e da testa de Siegfried. Mime observa-o atentamente. “Suor, sim, é claro!”, pensa o anão, que sente germinar em si um plano – um plano para se apoderar do tesouro e, acima de tudo, do Anel de Poder.

Assim, enquanto Siegfried está entregue ao seu árduo trabalho, Mime corre para sua despensa. Lá, após dar uma busca rápida em suas plantas e folhas medicinais, encontra o que buscava: uma planta narcótica com a qual pretende preparar uma infusão maléfica, destinada a mergulhar Siegfried no sono, tão logo este tenha terminado de abater o dragão que monta guarda ao anel.

“Sim, depois do terrível combate, ele não poderá deixar de estar sedento!”, pensa o anão. “Então, estarei, com toda a certeza, ao seu lado para lhe fazer chegar aos seus lábios a doce bebida que lhe mitigará a sede!”

Mas seu plano é bem mais perverso; após ter ministrado ao herói a poção sonífera, tomará de sua própria espada, a Notung, e cortará simplesmente fora a cabeça de Siegfried (onde escutou isto de cortar uma cabeça?)

– Mime, anão surdo! – grita uma voz jovem e triunfante.

O irmão de Alberich é despertado de seus perversos devaneios, como se ele próprio já estivesse sob os efeitos maléficos da droga soporífera.

– Pois não, mestre Siegfried! – diz o anão, correndo até o local da forja.

Quando lá chega, entretanto, tem o privilégio de observar uma cena magnífica: Siegfried, sob a luz intensa da fornalha, brande sua espada Notung, fazendo com ela verdadeiros malabarismos, como uma criança.

– Veja, anão covarde! Dou-lhe minha cabeça a prêmio se não for a velha Notung outra vez!…

Siegfried avança até a bigorna e ergue com as duas mãos a espada sobro sua cabeça, fim seguida, vibra-a com toda a força sobre a bigorna, que se parte em duas sob o tremendo impacto do golpe.

– Aí está! – exclama o herói, radiante de felicidade. – Depois, aproxima-se de Mime como se pretendesse partir em dois o próprio anão. – Calma, não se assuste, mestre da covardia! Estou pronto para enfrentar o dragão, que você chama de temível! Leve-me até ele e veremos se poderá me ensinar, afinal, o significado desta palavra que tanto o fascina!

Mime garante que assim o fará: na manhã seguinte, levará Siegfried até a cova do dragão Fafner e, ali, finalmente, o jovem terá a oportunidade de se defrontar com o Medo

– e também, assim deseja ele secretamente, com a própria Morte.

V – O dragão e o anel


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