O Anel dos Nibelungos (Ato 3 – 3/6)

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III – Um torneio de enigmas

Mime ainda está entregue às suas dúvidas e devaneios, quando ouve, novamente, passos do lado de fora da caverna.

“Ué, será Siegfried, que já retorna?”, pensa ele, que ainda tem os fragmentos da espada diante dos olhos.

Mas, pela primeira vez em muitos anos, seus olhos pousam, agora, sobre uma pessoa muito diferente do seu afilhado. Trata-se de um velho, envolto em um longo manto, trazendo à cabeça um chapéu, cuja aba desabada lhe oculta um dos olhos. Na sua mão direita, porta uma pesada lança, que lhe serve também de cajado.

– Bom dia, velho ferreiro – diz o andarilho, fazendo menção de entrar na caverna.

– Ora, o que quer por aqui, vagabundo? – esbraveja Mime, disposto a correr com o importuno.

– Oh, nobre fazedor de espetos, isto, então, são modos de se tratar um velho que pede um instante de asilo? – diz o outro, fingindo-se magoado.

Mime vê-se diante da velha obrigação da hospitalidade, a qual mortal algum – ou mesmo os deuses – podem se subtrair. Apesar de estar distante do convívio humano há mais de vinte anos, Mime sente outra vez aquele velho asco, que tanto o desgostara anteriormente, renovar-se em sua boca.

“Hospitalidade… Bá!”, pensa ele, olhando com rancor para o velho importuno. – Está bem, entre de uma vez e não se demore! Tenho um importante trabalho a concluir!

O andarilho deita um olhar aos pedaços da espada, mal envoltos no tecido e faz menção de tocá-los. – Oh, é isto que pretende, então, concluir?

– Não toque seus dedos imundos nestes fragmentos! – diz o anão, enrolando os restos de Notung e os ocultando da vista do andarilho. Depois, tomando de uma bilha, enche um grande copo d’água e o estende ao velho. – Toma, aqui está a água para matar sua sede. – Com a outra mão, estende um velho pedaço de queijo e julga com isto estar dispensado de mais alguma coisa.

– Oh, muito obrigado – diz o velho, entornando toda a água e guardando o pedaço rançoso do queijo numa dobra de seu manto esburacado. – A sua gentileza é deveras reconfortante.

– Bem, e o que mais?… – diz o anão, com as pequeninas mãos apoiadas em sua cintura roliça.

– Ora, deixe de rabujice e vamos trocar duas ou três palavras – diz o andarilho, sorridente. – Faz muito tempo que não troco uma palavra com alguém tão simpático.

– Que duas ou três palavras interessantes, com o perdão da observação, poderá ter você para trocar?

– Tenho, quando menos, a sabedoria das trilhas e das veredas; quem sabe não tira algum proveito?

Mime desiste de expulsar o velho de sua presença e se senta, derreado. O velho, aproveitando-se da vacilação do anão, puxa, lentamente, sua espada.

– O que é você, um maldito ladrão? – diz o anão, dando um salto veloz para trás.

– Oh, não, não…! – diz o velho, todo sorridente, ao mesmo tempo em que abana apaziguadoramente a mão. – Esteja tranqüilo! Quero apenas fazer-lhe um pequeno desafio, um instante breve de recreação, que servirá para nos distrair nestes poucos instantes de minha pousada junto a si. Que tal lhe parece?

– Desafio?… Que espécie de desafio?

– Oh, um desafio muito divertido, na verdade, um torneio de enigmas. Não gosta de um bom torneio de enigmas?

Mime não responde. Uma ligeira curiosidade roça o seu espírito, agora que o receio o abandonou. Depois de estudar melhor a figura do andarilho, finalmente, responde: –

Bem, de fato, não desgosto de todo…

– Ótimo – diz o andarilho, depondo ao chão a sua espada. – Faça-me, então, tios perguntas – quaisquer perguntas que queira – e, se eu não for capaz de respondê-las, corte-me fora a cabeça.

– Está gracejando? – diz o anão, confuso.

– Falo sério – diz o andarilho. – Um desafio não tem graça, se não for para valer. É, ou não é?

– De fato… é…

– Muito bem, vamos lá. A espada está ali, pode testar o gume, se quiser. l’aça-me, logo, a primeira pergunta, espertíssimo anfitrião.

– Bem… er… – Mime está atrapalhado e não sabe por onde começar. Pego de surpresa e com o olhar faiscante daquele único olho a descoberto pousado sobre si, faz, então, atarantado, a primeira pergunta: – Que povo habita sob a terra?…

– Fácil: os Anões! – exclama o andarilho, abrindo um largo sorriso. Mime coca a cabeça, desconcertado.

– Vamos, a segunda!

– …Que povo habita a superfície da terra?

– Ora, os Gigantes! – diz o velho, confiante.

Mime sabe que só tem mais uma chance. Apesar de não ter vontade alguma de cortar a cabeça do pobre andarilho, nem por isto está disposto a ser vencido e humilhado dentro de sua própria casa. – Muito bem – diz ele, alçando-se em bicos de pés. – Que povo habita as alturas nebulosas?

– Irra!, ganhei! São os deuses! – exclama o andarilho, aplaudindo-se todo.

Mime cruza os braços, dominado pelo rancor. “Velho desgraçado! É um maldito truque, é claro!”, pensa ele, tentando justificar a sua derrota. “Distraiu minha atenção com o subterfúgio da espada para que lhe fizesse perguntas tolas como as que lhe fiz!”

Subitamente, dá-se conta de que perdeu não uma, mas três boas oportunidades para esclarecer suas dúvidas referentes ao expediente a ser adotado para refundir a espada Notung e obter o cobiçado anel. “Oh, maldito idiota!”, pensa o anão, enterrando as unhas nas palmas das mãos.

– Muito bem, agora, é a minha vez – diz o velho, placidamente.

– Sua vez?! – exclama o anão, voltando a si.

– Sim, tal é a lei dos desafios. Agora, eu pergunto e você responde. Se não é capaz de fazer uma pergunta que lhe seja útil, deve submeter-se às minhas questões.

Mime observa, aterrado, a espada.

– Não se preocupe com sua cabecinha, meu amigo. – Não serei eu a cortá-la; lembre-se de que estou preso ao dever da gratidão ao meu hospedeiro.

Mime afrouxa os músculos e sua respiração se torna normal outra vez. -Está bem, velho sabichão, faça as suas perguntas e depois dê o fora daqui.

– Atenção, lá vai – diz o velho, alçando a fronte. – Qual foi a estirpe amaldiçoada por Wotan, senhor dos deuses?

Mime concentra-se todo e, por fim, responde: – Os Walsungs.

– Muito bem, um ponto para você! – diz o andarilho.

Mime, na verdade, não poderia deixar de acertar, uma vez que conhece toda a história dos infelizes pais de Siegfried. Ao mesmo tempo, indaga de si para si: “Como ele está a par desta terrível história?” Mas o velho não lhe dá tempo para novas reflexões e lhe lança, de imediato, a segunda indagação:

– Esta é um pouco mais longa, preste bem atenção – adverte o andarilho. – Como se chama a espada que, uma vez refundida, servirá para que o jovem Walsung, criado por um certo nibelungo, versado nas artes das forjas, possa enfrentar um dragão que, outrora, foi um perverso gigante chamado Fafner? Ele adquirirá a posse de um valioso objeto, que este guarda com todo o zelo, trazendo com isto proveito não só ao jovem, mas, principalmente, ao seu amável e dedicado tutor…

– Notung é o nome da espada! – diz o anão, em triunfo, observando o invólucro onde estão guardados os fragmentos da espada.

– Meus parabéns, acertou! – diz o andarilho, cumprimentando o anão, que tem já o pequeno peito estufado, como o de um peru. – Agora, só falta uma pergunta! Atenção, mais uma vez, meu sábio anfitrião!

O anão afia as orelhas.

– Quem será capaz de refundir Notung, a espada que matará o dragão’? -diz o velho, pondo toda a sua entonação nesta última indagação.

Mime fica paralisado. “Quem poderá refundir Notung?”, pensa ele, aturdido.

– Bem, talvez… penso eu…

As palavras, entretanto, não saem inteiras de sua boca. Por um instante, chega a imaginar que seja ele próprio, mas algo lhe diz que jamais será capaz de tal feito.

Siegfried, quem sabe? Mas, não… e se não for? Siegfried é humano e esta tarefa parece além do alcance de qualquer braço humano.

– N-não sei responder, velho enxerido…! – diz Mime, vencido, afinal.

– Ora, que pena! – diz o velho, sorridente. – A resposta é fácil: somente aquele que desconhece o medo será capaz de refundir a velha espada Notung! Eis, aí, a resposta!…

Mime recupera-se logo da decepção e relanceia o olhar até a espada do velho andarilho no receio de que sua cabeça corra perigo.

– Você prometeu que não atentaria contra a minha cabeça! – diz ele, erguendo-se, por precaução.

– Não se assuste, pequeno covarde – diz o velho, levantando-se também. – Já se vê que não poderia ser mesmo você a fundir a nova espada, ah! ah! ah!

– Ora, adeus, senhor intrujão! – diz Mime, apontando a saída da caverna para o andarilho.

Wotan – pois não era outro, senão ele, o velho andarilho – guarda a espada e toma o cajado, rumando para a saída que lhe aponta o anão. Antes, porém, de sair, volta-se uma última vez para trás e diz, risonhamente:

– A sua cabeça, amiguinho, fica aos cuidados daquele que desconhece o medo.

Mime sai atrás do velho, depois que ele já transpôs a soleira de sua caverna, e o observa até que desapareça totalmente embrenhado na mata.

“Aquele que desconhece o medo! Aquele que desconhece o medo!” – Estas palavras ficam reverberando em sua cabeça com tanta insistência que por alguns instantes, ele julga ver surgir, de dentro da própria floresta, Fafner, o gigante convertido em dragão, com a boca escancarada a lhe indagar com ar de escárnio:

– Onde está, pobre idiota, aquele que desconhece o medo?

IV – Siegfried forja Notung


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