O Anel dos Nibelungos (Ato 3 – 2/6)

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II – A revelação do anão

Mime está só em sua caverna. O ruído cavo e repetitivo de um martelar reboa, ampliado pelas paredes da caverna, enquanto relâmpagos ritmados espocam ao ritmo das batidas, lançando uma chuva de faíscas para todos os lados. Trepado em um alto tamborete, o anão malha, vigorosamente, sobre uma bigorna. Uma espada vermelha, recém retirada do fogo, recebe os golpes furiosos do martelo para, dali a pouco, ser introduzida num grande tonel cheio de água. Um chiado, como o de uma cascavel de aço, escapa, fazendo borbulhar a água e levantando do tonel um espesso vapor, que envolve o anão em uma nuvem sufocante. Ele retira, a espada, ainda gotejante, e a observa com um ar desconsolado.

– Mais uma espada inútil!… – exclama Mime, lavado em suor. – Uma espada digna de um gigante, mas que Siegfried logo fará em pedaços, como se fosse de brinquedo!

O anão pode, perfeitamente, prever este resultado, pois não tem sido de outra maneira desde que Siegfried – hoje um jovem no vigor de seus vinte anos – começou a ter força para quebrar uma espada com um simples golpe. Uma criança ainda, lembra Mime.

Sem dúvida, as profecias de sua mãe faziam sentido: aquele jovem era predestinado e, certamente, tinha o sangue de um deus a correr em suas veias.

– Jamais terei a habilidade de forjar uma nova Notung! – diz ele, referindo-se à espada sagrada de Sigmund, cujos pedaços mantinha guardados. E, sem ela, jamais poderá Siegfried (ou ele próprio) matar o dragão que mantém sob sua estrita vigilância o Anel de Poder, que, um dia, já esteve na posse de Alberich, seu irmão.

“Um nibelungo já o teve em suas mãos…!”, pensa ele, noite e dia, alisando imaginariamente, entre o polegar e o indicador, o delicado e ambicionado objeto. “Por que não poderia retornar para as mãos de um anão – retornar, desta vez, para as minhas próprias mãos?”

Mime escuta o ruído de alguém que se aproxima. Acostumado à única presença de Siegfried, o anão prossegue a caldear a sua espada sem se voltar para confirmar.

– Aí está você, outra vez, anão inútil e incompetente, a brincar de forja-dor! – diz a voz inconfundível e insolente de seu filho. (Mime acostumou-se a chamá-lo assim, pois jamais revelou ao jovem a sua verdadeira origem.)

– Faço o que posso, jovem exigente – diz o anão, limpando o suor da testa.

– É por isso que nunca é o suficiente! – exclama Siegfried, com um riso forte. – Está explicado! Mas, desta vez, trouxe algo comigo que talvez o faça ganhar nova inspiração –

completa o jovem, que traz consigo, nada menos, que um enorme urso preso por uma correia.

Mime desvia o olhar da espada e, quando dá de cara com aquela fera de dentes amarelos e arreganhados, toma o maior susto de sua vida. Largando tudo, corre a se esconder atrás da forja. – Você está louco, jovem irresponsável? -exclama o pobre ser, deixando transparecer apenas o topo da cabeça e dois olhos redondos e assustados.

– Vamos, covarde! – diz Siegfried, renovando seu riso másculo. – Ele está preso ao meu pulso, não lhe fará mal algum!

O jovem vê, então, a espada que o anão deixara cair ao chão.

– Ah, mais uma…! – diz Siegfried, com um sorriso de desdém. – Quando é que vai aprender, ferreiro preguiçoso, a fazer uma espada digna de meu braço forte?

Vendo, no entanto, que Mime continua agachado atrás de seu esconderijo improvisado, Siegfried desamarra o urso e lhe dá uma chicotada com a correia, expulsando-o de volta para a floresta.

– Vamos, velha ratazana, pode sair de seu buraco!

Mime reaparece aos poucos, espiando pela abertura da caverna, com receio de que o urso ainda esteja ali fora, apenas à espreita de que ele ponha sua cabeça para fora para o devorar numa única dentada.

Siegfried, entretanto, está entregue ao estudo da espada. Seu olhar denota um profundo desprezo pela técnica deficiente do anão.

– Chamas, então, a este reles alfinete de espada? – diz ele, relanceando um olhar para o anão, que traz a cabeça baixa, na humilhação do artesão, cujo trabalho só é merecedor da repulsa e do escárnio do freguês.

Siegfried aperta o cabo estriado em suas fortes mãos para lhe tomar o peso. A lâmina prateada faísca, refletindo as chamas que ainda ardem na forja, mas mesmo seu brilho é pobre, fruto de um metal impuro e mal trabalhado. O jovem sente que ela é também leve demais, um pé de vento mais forte seria capaz, de desviar o rumo incerto de seu golpe. Em suma, um péssimo artefato, incapaz de matar uma corça ou mesmo um esquilo.

A bigorna está diante de Siegfried e ele não hesita em dar àquele frouxo produto da incompetência o destino que merece: erguendo-a, arremessa-a sobre o ferro com toda a força. A espada estala e se fraciona em mil pedaços.

– Aí está, imbecil, o produto de sua inépcia! – diz o jovem, dando as costas para o humilhado anão. – Deveria, antes, tê-la quebrado em sua cabeça dura!

– Oh, você é um ingrato, isto sim! – diz Mime, ocultando-se novamente atrás da forja por medo da ira do herói. – Como pode dizer tais coisas a quem tanto o ama?

Siegfried dá um sopro de desdém e vai até a entrada da caverna. Mime aproveita, então, para correr até a pequena despensa e trazer um prato de sopa e um pedaço de carne para o jovem na tentativa vã de apaziguá-lo.

– Veja, é de comida que precisa! – diz o anão, estendendo-lhe o prato. -Uma boa sopa e um pedaço de carne assada vão lhe restituir o bom humor!

Siegfried volta-se, furioso, e num repelão lança à distância o prato, que vai se espatifar numa das paredes da caverna.

– Oh, é só isto que tem mesmo para me retribuir! – exclama Mime, profundamente magoado. – Nem todos os meus esforços serão, algum dia, capazes de fazer com que me retribua com um pouco de carinho, com um pouco de afeição!

– Oh, anão cínico, não me fale de afeição! – exclama Siegfried, enojado. – Suas palavras são hipócritas e seus gestos ressumam a falsidade. Bem sei que a maldade dirige todos os seus passos e todos os seus atos!

Siegfried, sem dizer mais nada, ganha rapidamente, a floresta.

– Espere, fique e conversemos! – diz o anão, acenando sua mãozinha. Mas o jovem já embrenhou-se em meio à mata. – Oh, ele voltará – diz Mime, baixinho, para si mesmo. –

Ele sempre volta.

De fato, dali a instantes Siegfried retorna, cabisbaixo. Mime sorri, discretamente.

– Por que sempre termino por retornar? – diz o jovem, olhando para o anão com rancor. – Se é tão sábio quanto pretende, me explique o motivo.

– Porque você gosta de mim, porque sou seu pai e sua mãe; tudo é assim na natureza, o filhote depende sempre da mãe.

– Mãe, você?! – exclama Siegfried. – Não, você não poderá nunca substituir minha mãe. O que foi feito dela, por que razão nunca me explica? Por que tudo na natureza tem um pai e uma mãe – as aves, as corças, os lobos e os ursos e somente eu sou privado de conhecer minha mãe, ou, ao menos, de saber quem ela foi, vamos, me diga anão maldito!

– Já lhe disse, meu querido filho: eu sou seu pai e também sua mãe. Que falta poderia sentir desta personagem, se eu, desde que você era pequeno, supri a falta dela, dando-lhe atenção, alimento e afeto?

– Você nem sequer é meu pai!… Como poderia ser? – Siegfried fala, apontando para a floresta. – Todos os seres da natureza se parecem com seus próprios pais. O filho de um gamo é em tudo idêntico ao pai; o filho de um javali, certamente traz as mesmas presas do pai; e, assim, todos os outros seres. Mas, comigo o mesmo não se dá. Estive outro dia agachado junto a um regato para saciar minha sede, quando vi meu reflexo desenhado nas águas: meu rosto não se parecia em nada com o seu – em absolutamente nada! Como explicar tamanha contradição entre nossas duas figuras? Não, um sapo não pode ser pai de um peixe! Pense nisto, farsante: um peixe poderia acreditar-se filho de um sapo?

– Você está dizendo absurdos! – responde Mime, tergiversando.

– Absurdo é querer fazer crer que eu possa ser seu filho!

Siegfried, então, perdendo de vez a paciência, avança para o anão e o agarra pelo pescoço, suspendendo-o no ar.

– Vamos, maldito, fale de uma vez a verdade ou o esmagarei contra as paredes desta caverna!

Os pezinhos de Mime pedalam o ar, enquanto ele grita com a voz esganiçada: –

Largue-me, largue-me! Como ousa agredir seu próprio pai?

– Oh, ainda teima com esta mentira? – diz Siegfried, apertando ainda mais o pescoço do anão, cujas faces começam a tomar uma coloração perigosamente roxa.

– Está… bem…! Está… bem…! – silva o anão, sentindo que chegou a hora de falar a verdade. – Mas, antes, ponha-me no chão!

Siegfried larga-o e ele cai sentado sobre a palha que recobre o piso. Suas minúsculas mãos alisam o pescoço, massageando-o, enquanto retoma o fôlego.

– Vamos, desgraçado, conte tudo logo de uma vez! – diz Siegfried, ameaçando esganá-lo outra vez.

Mime, após terminar de se recompor, dirige-se ao filho adotivo, dando uma entonação de mágoa às suas palavras que, imagina, servirão ao menos para acalmar a fúria do outro.

– Sua mãe chamava-se Sieglinde e morreu no mesmo instante em que você nasceu.

Foi ela quem escolheu o seu nome, Siegfried.

– Sieglinde… – murmura o jovem, absorto naquele nome. – E que tal era ela?

– Oh, era uma linda jovem, com certeza… bem diferente deste sapo que lhe fala…

– Deixe de gracejos e me fale mais sobre ela.

– Ela chegou até mim, certo dia, fugida de um homem cruel, seu esposo, que a perseguia por algum motivo, que ela preferiu nunca me dizer.

– Ele era meu pai, então?

– Não, não era seu pai; quem o fosse, também jamais me disse.

– Está mentindo!

– Não, não estou! – diz o anão, sapateando sobre a palha. – Basta de agressões por aqui, meu rapazinho! Já disse que vou lhe contar toda a verdade, mas somente posso lhe contar a verdade que sei.

– E, qual é o resto de verdade que você sabe, tratante?

– Sei que seu pai morreu em batalha e que sua mãe trouxe com ela os restos da espada que ele portava no momento de sua morte.

Mime afasta-se e retorna, dali a instantes, com o embrulho contendo os restos de Notung, a espada que Wotan dera a Sigmund.

– Aqui estão os restos da velha Notung, a espada forjada pelo próprio Wotan!

Siegfried pega um a um os pedaços da espada. Pelo peso e textura do metal, pode sentir que está diante de uma arma verdadeiramente excelsa.

– Basta de conversa – diz ele, juntando os pedaços e os devolvendo ao anão. – Junte estes cacos e refaça a espada. Tem até o fim do dia para a entregar em perfeito estado.

Siegfried parte, desta vez, disposto a somente retornar no fim do dia. Mime, por sua vez, fica entregue aos seus pensamentos.

“Uma nova espada? Uma nova Notung?”, pensa ele, aflito. “Como poderei forjá-la?

Se fosse capaz de fazê-lo, certamente, já a teria em minhas mãos, bem como o anel!”

Mime sabe que somente de posse da espada mágica poderá alguém aventurar-se a enfrentar Fafner, que se converteu em um temível dragão para melhor guardar a relíquia ambicionada por deuses e homens.

– Oh, maldito fedelho! – exclama ele, dando livre vazão a seus verdadeiros sentimentos com relação ao filho de Sieglinde. – Não sabe, então, que, sem você e esta malsinada espada, jamais poderei ter acesso ao maravilhoso anel?

Algo em seu interior diz-lhe que somente o próprio Siegfried poderá forjar a nova Notung e que somente ele terá força e coragem para enfrentar o dragão, mas que, nem por isso, ele, Mime, estará impedido de estar por perto para ajudar o herói – uma modesta ajuda, mas que poderá ser de grande valia para que o anel lenha um novo possuidor.

– Sim, um novo possuidor…! – diz o anão, alisando amorosamente os dedos, como em seus mais belos sonhos.

III – Um torneio de enigmas


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