O Anel dos Nibelungos (Ato 2 – 2/4)

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II – Brunhilde, a Valquíria

Desde que Wotan havia entregue o anel mágico aos gigantes em pagamento pela construção do Valhalla – seu novo e magnífico palácio -, um único pensamento habitava sua mente noite e dia: como fazer para recuperar o anel do poder? Alberich, aquele que o forjara, já não detinha mais a sua posse, mas Wotan, o mais sábio dos deuses, não era ingênuo o bastante para imaginar que o anão iria deixar as coisas neste estado, sem pretender readquiri-lo a qualquer preço.

“Não, anões podem ser pequenos em tudo, menos na persistência!”, pensava Wotan todos os dias, sempre que se sentava em Hlidskialf, o seu trono mágico, de onde podia observar tudo o que se passava nos nove mundos existentes: Hel e Niflheim, as regiões infernais; Jotunheim, a terra dos gigantes; Midgard, a terra dos mortais; Nidavellir, a terra dos anões; Svartalfheim, a terra dos gnomos das Irevas; Alfheim, a terra dos gnomos felizes; Vanaheim, a terra dos Vanes, os deuses inferiores; e acima de todos, Asgard, a morada dos deuses.

Entretanto, neste momento, não era tanto o anão quem mais o preocupava, mas os gigantes – ou, mais especificamente, Fafner, o perverso que havia matado seu irmão, Fasolt, na hora da partilha do Ouro do Reno. Do que mais seria capa/ este ser perverso, pensava Wotan, agora que detinha a posse de um objeto tão terrível e poderoso ao mesmo tempo? (Sim, por trás de tudo, ainda era o fatídico anel o que determinava as ações dos principais habitantes do universo.) Wotan sabia que, por suas forças, não podia violar um acordo gravado em sua própria lança. Ele dera o anel em pagamento pelo Valhalla e nem mesmo ele podia violar este pacto.

Wotan, temendo que Fafner pudesse repovoar Jotunheim com nova população de gigantes e lançar um devastador ataque contra Asgard, decidira juntar-se a Erda, aquela mesma deusa da terra que o admoestara, publicamente, quando ele não quis entregar o anel ao gigante. Ele e Erda haviam se tornado amantes nas profundezas da terra e ali gerado as nove Valquírias – virgens guerreiras encarregadas de recolher nos campos de batalha os melhores guerreiros pura povoar o Valhalla que ficava, assim, transformado em uma espécie de campo de treinamento paradisíaco. Ali, estaria reunida, com o passar dos anos, a estirpe dos melhores guerreiros mortos – os Einheriar -, os quais, no dia do Crepúsculo dos Deuses, estariam aptos a enfrentar o ataque dos Gigantes naquela que, segundo a predição, seria a grande batalha que poria fim ao universo e, quiçá, aos próprios deuses…

Wotan fazia todas estas reflexões já instalado nos magníficos salões do Valhalla.

Com todos os defeitos que pudessem ter aqueles dois perversos gigantes, não haviam feito, afinal, um mau trabalho, pensava o deus ao observar as maravilhas daquela faustosa construção. Nada menos do que 540 portas davam acesso aos majestosos salões pelos quais podiam passar até oitocentos homens postos lado a lado. O ouro recamava todas as paredes em lâminas de um dourado espelhado, enquanto que o soberbo teto era todo recoberto por uma miríade de escudos brilhantes. Seu esplendor não terminava aí. Milhares de lanças prateadas esplendiam, apontadas para o alto, sustentando esta magnífica abóbada, a tal ponto polidas que, à noite, seu brilho era mais que suficiente para iluminar todo o imenso salão onde se assentava o mais poderoso dos deuses.

Fazia poucos instantes que uma grande recepção havia se encerrado – a mesma recepção que se dava todas as noites aos guerreiros que jamais paravam de chegar e que conduzidos até ali pelas mãos das nove guerreiras virgens e imortais. Depois de terem passado o dia inteiro em acirrados torneios – nos quais as feridas, que se distribuíram mutuamente, eram perfeitamente reais -, haviam estes guerreiros se assentado nas mesas douradas do salão principal do Valhalla para gozar da companhia de seu deus e guerreiro-mor, o poderoso Wotan. Uma refeição esplêndida os aguardara, composta, basicamente, de postas assadas do grande javali Saehrimnir – o qual tinha a propriedade fabulosa de ser inteiramente consumido e ressurgir intocado na noite seguinte. A carne era acompanhada pela bebida predileta dos imortais, o hidromel, a qual era obtida da grande cabra, Heidrun, que vivia sobre o telhado do Valhalla, alimentando-se da folhagem mágica da árvore Lerad. Todos os dias, a cabra enchia um gigantesco tonel com o produto das suas tetas, do qual se serviam, generosamente, os milhares de habitantes daquele estranho e viril paraíso.

***

O dia amanhece nas montanhas. Wotan está agora solitário, tendo apenas a companhia de seus dois corvos – Hugin e Muniu -, que estão assentados cada qual sobre um de seus ombros. Estas duas aves têm uma única tarefa: cobrir com seu vôo o mundo inteiro e trazer ao deus, no final do dia, tudo quanto viram e ouviram. O semblante de Wotan está rígido; duas fundas rugas desenhadas sobre a testa denotam a preocupação que lhe vai na alma.

– Sigmund e Hunding duelarão, então, daqui a instantes!… – diz ele, alisando a negra barba que lhe desce pelo peito. Eleja sabe que seu filho conseguiu retirar a espada do freixo, tal como previra. Durante anos, Wotan vagara com ele pelas florestas sob o nome de Lobo somente para ver chegado este momento: o de lhe conferir a vitória sobre o oponente, vitória que o tornará apto a retomar de Fafner o temível anel antes que este ponha fim à gloriosa estirpe dos deuses.

– Ótimo! – exclama o deus, erguendo-se. – Tudo corre como o esperado!

Mas, para que isso se confirme, é preciso que Brunhilde, sua filha predileta e uma das nove Valquírias, acorra ao campo do duelo para ajudar a dar a vitória a Sigmund.

Wotan prepara-se para mandar chamá-la quando, de repente, ouve o ruído de alguém que chega.

“Oh, não! De novo, Fricka e suas rabujices!”, pensa ele.

De fato, é a esposa de Wotan quem surge em meio às árvores, conduzindo a sua carruagem puxada por carneiros. Fricka traz em sua mão uma chibata de ouro e parece disposta a vergastar algo mais além dos animais exauridos.

– Wotan, o que você pretende fazer? – diz sua esposa, com a voz encolerizada.

– Como assim? – exclama Wotan, com o ar ausente.

– Não sabe, então, que sou a deusa do matrimônio? Pretende impingir mais esta humilhação a mim, ao favorecer o amor ilícito daqueles dois?

– Daqueles dois…? De quem está falando?

– Você sabe, perfeitamente, de quem estou falando! Estou me referindo àquele casal adúltero e incestuoso!

– Sigmund e Sieglinde, você quer dizer…

– Sim, os filhos que você, um deus, teve ao infringir os sagrados laços que nos unem.

– Por favor, Fricka, não comece…

– Pretendo não só começar, Wotan, como acabar com este romance nefasto.

Pretende mesmo defender Sigmund neste duelo que ele travará com Hunding?

– Claro, se é meu filho! Além do mais, as esperances do recuperar o anel estão todas depositadas em suas mãos.

– Nada disto importa! Este romance é infame!

– Eles se amam, Fricka, e isto é o que importa numa união! Pecaminosos são os votos que forçam uma união indesejada.

– Tudo isto são desculpas suas para encobrir um erro monstruoso.

Fricka assume, agora, uma postura inflexível.

– Wotan, pela honra dos deuses e por tudo o que é mais sagrado, você deve retirar das mãos de Sigmund a espada Notung.

– Nunca! – exclama Wotan, mostrando-se também irredutível.

– Sim, retire Notung das mãos de Sigmund e mantenha Brunhilde afastada dos duelistas. Sigmund deve ser morto para o bem de todos nós e dele próprio. Jamais permitirei, Wotan, que meu nome seja maculado por este favorecimento ilícito, jamais!

Wotan está encurralado. Fricka deu provas suficientes de que não cederá aos argumentos de seu marido e de que só estará satisfeita quando Sigmund tombar nas mãos de Hunding no duelo que está prestes a se realizar.

Depois que Fricka parte, Wotan fica entregue aos seus pensamentos. Não lhe resta outra alternativa, senão ceder às exigências de Fricka.

Neste momento, a valquíria Brunhilde, sua filha, chega às montanhas.

– Bom dia, meu pai! – diz ela, segurando as rédeas de seu cavalo. Ela é uma jovem de longos cabelos dourados e seu rosto de linhas firmes e belas denota um caráter nobre e altaneiro. – Estou pronta a ajudar Sigmund a derrotar Hunding.

– Esqueça, minha filha – diz Wotan, sombriamente. – Sigmund deve morrer.

– Como, meu pai? – diz Brunhilde, confusa.

– Fricka assim o exige. Sou seu esposo e não posso vilipendiá-la desta maneira, mesmo em favor de meu filho.

– Mas, papai, Sigmund tem a missão de resgatar o anel das mãos de Fasolt!

– Outro terá de fazer isto, não meu filho.

– Talvez o filho de Alberich, quem sabe?

– O que diz?

– Sim, papai, há rumores de que o nibelungo comprou com ouro o amor de uma mulher e planeja gerar com ela um filho, aquele que irá se reapossar do anel!

– O filho de um anão…? Não, fique tranqüila, o anel está muito bem guardado.

Fasolt, que detém a posse dele, transformou-se por artes daquele terrível objeto em um gigantesco dragão. Somente um herói, filho de um deus, poderia enfrentá-lo com sucesso. Infelizmente, não será Sigmund quem o fará, pois ele deverá morrer diante da espada de Hunding, esposo de Sieglinde.

– Não foi isso que combinamos anteriormente, meu pai!

– Fricka me fez mudar de opinião.

– Não, ela está errada!

– Silêncio! Você deve obediência tanto a ela quanto a mim!

Wotan, deus supremo, pode mudar de opinião, mas nunca de atitude; assim, depois de fraquejar momentaneamente diante de uma razão mais forte, ele reassume sua postura habitualmente inflexível e autoritária em defesa, agora, de uma razão inteiramente oposta à anterior.

– Não há outra solução – diz o deus, imperativamente. – Devo matar o filho que amo em nome de um princípio maior.

Brunhilde está inconformada. Ainda tenta esboçar uma reação em defesa de Sigmund, mas seu pai não lhe dá a menor chance de tentar salvar a vida do guerreiro.

– Você deverá tomar o partido de Fricka nesta luta; para tanto, deverá estar ao lado de Hunding, marido de Sieglinde.

– Papai… Deixe, por favor, que eu tome o partido de Sigmund!

– Atrevida!… Não me faça repetir a mesma ordem. Vá e cumpra!

Brunhilde toma as rédeas de seu cavalo e ruma, pesarosamente, para o local onde Sigmund e Sieglinde estão. É destino inelutável de Sigmund estar em breve nos salões do Valhalla na condição de mais um guerreiro morto a engrossar as hostes de Wotan.

III – A espada partida


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