O Anel dos Nibelungos (Ato 1 – 4/4)

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IV – A maldição do anel

Wotan e Loki retornaram com Alberich, saindo por uma passagem secreta cio castelo. Depois de se ver dominado pelos dois, Alberich decidira colaborar, principalmente após descobrir que o objetivo de Wotan se restringia a se apoderar cio seu ouro. “Se é somente o ouro que ele quer, não há problema; posso, perfeitamente, recuperá-lo!”

pensou o anão, acariciando o anel que levava escondido no bolso. “Enquanto eu tiver comigo esta preciosidade, Mime estará inteiramente sob o meu domínio. Ele e todos os demais escavarão todo o ouro do mundo!”

Já no palácio de Wotan, Alberich, acorrentado, ainda esperneava.

– Vamos, libertem-me já! Sim ou não, sou um soberano!

– Silêncio, Alberich I e Único! – disse Loki, ironizando.

– Você estará livre, Alberich, tão logo nos traga o seu ouro – disse Wotan. – É

imprescindível que isto seja feito, caso contrário, Asgard inteira perecerá.

– Ah, é? – exclamou o anão, indignado. – E que tenho eu a ver com seus acordos escusos? Por que devo pagar o monstruoso preço da sua vaidade?

– Silêncio! Ordene a seus escravos que tragam todo o ouro em seu poder e lera garantida a sua liberdade.

– Um ouro ilegitimamente adquirido, a propósito – atalhou Loki.

Alberich preferiu silenciar. Sim ou não, se era isto o que queriam, então, o teriam.

Um emissário foi enviado às pressas ao país dos Nibelungos. No mesmo dia, retornou com vários anões, os quais traziam em carroças todo o ouro que o anão havia furtado das ninfas.

– O Ouro do Reno! – exclamou Loki, tão logo o teve diante dos olhos.

Alberich já estava quase conformado em perder todo aquele tesouro; ele sabia, perfeitamente, como obter mais. Mas, neste instante, Loki pôs os olhos sobre o elmo.

– Queremos o Elmo de Tarn também! – disse ele, cobiçando o objeto.

– Está louco! – explodiu Alberich. – Nem morto tomarão de mim o meu precioso elmo!

– Será nosso, sim senhor! – disse Wotan. – Obrigue seu irmão Mime a lazer outros cem iguais para você.

Wotan parece inflexível. As maças da juventude estilo em poder de Freya que, por sua vez, está nas mãos dos seus implacáveis credores. Ele sabe perfeitamente que, sem este alimento sagrado, os deuses logo estarão envelhecidos e encontrarão a morte, tal como os habitantes da Midgard. E se os gigantes não julgarem o ouro recompensa bastante pela construção do Valhalla?

“O Elmo de Tarn servirá, perfeitamente, para lhes aplacar a ira!”, pensa o deus, enquanto alisa, pensativamente, as suas negras barbas. Mal pode perceber que alguns fios prateados já se intrometem no meio, dando os primeiros sinais da aterradora velhice, flagelo de todos os mortais.

– Os deuses caducos! Quá! Seria muito engraçado vê-los neste estado! -diz Loki, aproveitando a deixa para se divertir um pouco. Seu gênio folgazão, na verdade, não pode ficar muito tempo sem uma boa brincadeira.

– Sim ou não, já estão, ao que parece! – resmunga Alberich, olhando de soslaio para Wotan, que permanece irredutível. Vendo, no entanto, que não há outro jeito, o nibelungo cede, afinal, e entrega também o maravilhoso elmo.

– Pronto, aqui está! – diz ele, estendendo a peça a Wotan. – Agora, deixem-me partir!

– O que é isto no seu dedo? – diz Wotan, atraído pelo brilho incomum que irradia do fatídico anel.

– I-isto? N-nada! – balbucia o anão.

– Oh! é o mais belo anel que já vi! Ficará conosco também! Alberich fica paralisado por alguns instantes.

– Não, antes a minha vida, mas o anel, não!

Diante da recusa peremptória, Wotan sente estar diante de algo, realmente, muito valioso. Arregalando seu único olho, ele diz, com voz estentórea:

– Vamos, passe já para cá o anel; de agora em diante, ele é meu!

Wotan toma a mão de Alberich e arranca o anel de seu dedo. Um guincho de desespero parte da boca do anão, que cai de bruços sobre o chão, arrancando os cabelos. Alberich é desamarrado em seguida.

– Vamos, já pode ir embora – diz Wotan, admirando o anel que já está em seu dedo.

Uma sensação inigualável de prazer banha sua alma.

– Maldição eterna a todo aquele que se apossar do meu anel! – grita Alberich, completamente fora de si. – Jamais terá paz e a preocupação consumirá o espírito do seu possuidor, pois a inveja colocará sempre alguém à sua frente para lhe roubar o bem mais precioso do universo! Oh, o meu anel!, o meu precioso anel!

Ninguém, entretanto, está disposto a dar ouvidos às suas lamúrias. Alberich parte, cabisbaixo, com a alma envolta no mais negro desânimo.

Wotan está diante da janela do seu palácio. Daqui a pouco, Fafner e Fasolt chegarão para restituir a ele Freya, sua valiosa cunhada. Enquanto isso, ele observa novamente as torres do Valhalla. Desde que colocou o anel em seu dedo, a magnífica construção parece ter adquirido um brilho especial. Um estranho poder há naquele anel que parece conferir uma força tremenda à vontade! Wotan nunca se sentiu tão vigoroso, tão disposto a enfrentar seu destino. Se Heimdall fizesse soar agora as trombetas para a Ragnarok, Wotan estaria pronto para a batalha, aquela que, segundo as profecias, haverá de pôr um fim a tudo – ao mundo, aos deuses e a todas as criaturas.

– Wotan, os gigantes já chegaram – diz uma voz que, a princípio, o deus não reconhece.

Fafner e Fasolt, os dois irmãos, de fato, adentram o salão, conduzindo Freya, que parece mais abatida do que nunca. Quando eles vêem a pilha de ouro a faiscar sobre o mármore, alteram imediatamente a cor dos seus semblantes. Fafner, o mais ambicioso, sente um frêmito agitar o seu largo peito. “Aí está o ouro, então!”, pensa ele. “Que maravilha!; logo será todo meu!”

– Está cumprida a minha parte no acordo – diz Wotan, apontando para a pilha dourada. – Restituam-me agora Freya, sem mais demora.

Fricka, esposa de Wotan e irmã da deusa aprisionada, entra no recinto com o rosto lavado de lágrimas.

– Oh, Freya, minha querida irmã! Você está de volta!

Fricka tenta trazê-la para si, mas é impedida pela mão vigorosa de Fasolt.

– Um momento – diz ele, afastando Fricka. Ele toma as clavas sua e de seu irmão e as finca ao chão.

– Freya, fique no meio das clavas – diz Fafner, com um sorriso deliciado, afinal, fora ele quem tivera aquela idéia. – Elas servirão de medida para que se calcule o ouro que Freya verdadeiramente vale.

Um grito de revolta escapa da garganta de Fricka.

– Por que razão pretendem humilhá-la deste jeito, perversos? Não queriam o ouro?, pois bem, aí está! Peguem-no e desapareçam de nossas vistas!

– Silêncio, mulher! – diz Fafner, enquanto ajeita Freya entre as estacas improvisadas.

– Agora, vamos empilhar o ouro até que não reste um único fio de cabelo dela acima da pilha!

Aos pés da bela Freya começa, então, a ser empilhado o ouro. Lentamente, a deusa do amor desaparece atrás da coruscante pilha de ouro.

– Ótimo, ótimo! – diz Fafner, esfregando as mãos. – Mas ainda falta muito!

– Vamos, Loki, acabe logo com isto – diz Wotan, sem querer observar a cena humilhante. Fasolt, o outro gigante, também está à parte; não lhe agrada nada a brincadeira do irmão, embora o tenha auxiliado.

– Ainda não é o bastante! – reclama Fafner. – Veja, sua cabeça está inteiramente a descoberto. Não há mais ouro, então?

Não, não há; o ouro acabou. Fafner já está pronto para desfazer o negócio e derrubar toda a pilha quando observa um objeto depositado no chão.

– Aquele faiscante elmo!… – diz ele. – Coloquem-no já sobre a pilha; isto bastará para que se chegue à altura de Freya!

Loki ergue o imponente elmo e o coloca sobre o monte dourado.

– Pronto! Está inteiramente coberta pelo ouro! – diz ele, sorridente.

Freya está convertida, agora, em um ser assustadoramente dourado, portando um capacete resplandecente. Fasolt aproxima-se, então, para observar melhor e ver se não falta nada mesmo. Depois de estudar por todos os ângulos, pára diante de uma fenda que se abriu em meio à pilha.

– Veja, Fafner! – diz ele, dando um grito de alerta. – Há um pequeno buraco ainda a ser preenchido.

Sim, de fato, por uma fenda aberta, percebe-se, nitidamente, um dos olhos assustados de Freya a observá-los. Fafner relanceia os olhos em todas as direções até divisar no dedo de Wotan o anel que este surrupiara de Alberich.

– O anel…! – exclama o gigante. – Vamos tapar esta fenda com o anel que está em seu dedo.

– Nunca! – exclama Wotan com um grito que reverbera por tudo. – Este anel me pertence e jamais fará parte do acordo!

– Wotan, meu esposo! Você enlouqueceu de vez! – diz Fricka, lamentosa. – Por causa de um mísero anel deixará que levem para sempre minha irmã e a nossa imortalidade? Lembre-se de que sem as maçãs da juventude estaremos todos condenados à mais irremediável decrepitude e à própria morte!

– Cale a boca, sua resmungona! – diz Wotan, surdo a qualquer apelo. – Já dei todo o ouro que estes dois tratantes queriam; até o Elmo de Tarn está em seu poder. Não lhes basta, então, tudo isto? Por que ainda querem este mísero anel?

– Será mesmo tão mísero, ilustre Wotan? – pergunta Fasolt, percebendo que um mistério envolve aquela pequenina e preciosa rodela de ouro. – Se assim c, vamos, passe-o já para cá e partiremos imediatamente.

– Não e não! Fora daqui os dois! – exclama Wotan.

O deus supremo está completamente fora de si. Uma chama de ira incendeia seu único olho que está grudado ao anel. Por nada neste mundo, vai se desfazer daquele pequeno pedaço de metal que lhe dá tanta segurança.

– Vamos, Fasolt, pegue a deusa e vamos embora! – diz Fafner, dando um chute na pilha dourada que se desfaz diante de todos. Atrás dela, surge outra vez a jovem Freya, pálida de medo, que é, imediatamente, agarrada pelas mãos firmes de Fasolt.

Neste momento, uma terrível escuridão abate-se sobre todos. Nuvens espessas recobrem o céu e estrondos ferozes de trovões reboam pelas montanhas. Em meio a uma luz azul e escura, surge uma figura feminina de ar severo e inquisidor.

– Wotan, entregue este anel amaldiçoado!

É Erda, a deusa da terra. Ela vive imersa num sono de sabedoria sob a terra, despertando em momentos de especial clarividência. Wotan e ela foram amantes em antigas eras e sua voz ainda tem grande poder sobre o deus.

– Não, Erda sagrada, desta vez, nem mesmo os seus ajuizados conselhos farão com que eu mude de idéia! – diz Wotan, com o anel enterrado na palma da mão.

– Wotan, eu insisto: devolva já este anel! Ele é maldito e a desgraça acompanha-o aonde quer que ele vá, trazendo a ruína para todo aquele que o possui.

– Ruína?! – diz Wotan, apontando para o ouro espalhado sobre o chão. – Você chama isto de ruína?

– Lembre de Alberich, Wotan! Entenderá, então, o que quero dizer com ruína!

– Ora, o anão tornou-se mais rico do que um dia poderia imaginar!

– Não é mais, Wotan: ele encontrou alguém mais esperto, que o desapossou de seu pérfido anel. E, assim, acontecerá com todo aquele que o possuir: estará sempre sob a mira da inveja dos que ambicionam tê-lo um dia para si!

Wotan, entretanto, permanece irredutível como uma criança. Erda dá-lhe as costas, dizendo antes de desaparecer numa grande nuvem escura para o interior da terra: “Dias de grande escuridão c dor aproximam-se para os deuses!”

Todos ficam abalados com a partida da deusa. Wotan está à parte e parece ‘lutar consigo mesmo. Sua mão, lentamente, abre os dedos, descolando-os com extraordinária dificuldade.

Ali está o anel, refulgindo com um brilho diferente de todos os outros. Estrias faiscantes percorrem-no com um dourado matizado, ao mesmo tempo, por todas as cores do espectro, um objeto de beleza e fascínio inigualáveis. Wotan fecha os olhos e cerra seus lábios. Sua respiração torna-se ofegante e ele parece estar a travar a maior batalha de sua vida. Um suor copioso escorre de sua testa, encharcando-lhe as sobrancelhas e a comprida barba. Então, depois de longo tempo, ele estende uma mão trêmula para os gigantes e diz num tom de derrota:

– Vamos, peguem-no e desapareçam para sempre!

Fafner, num pulo, apodera-se do anel. Fasolt, fascinado, aproxima-se do irmão.

– Vamos, deixe-me vê-lo! – diz ele, com os olhos arregalados.

– Idiota, recolha logo o ouro! O anel fica comigo!

Fasolt recolhe no seu fardo o ouro, mas não desgruda um instante da verdadeira preciosidade. Tão logo termina sua tarefa, volta-se para o irmão.

– Dê-me agora o anel!

– Imbecil! – ruge Fafner, agarrando o Elmo de Tarn e o enfiando com toda a força na cabeça do irmão. – Fique com isto e não me aborreça!

Fasolt lança longe o elmo e tenta arrancar à força o anel das mãos do irmão. Uma terrível luta começa, então, entre os dois. Fafner, aproveitando-se de um descuido, agarra sua clava e desfere um terrível golpe sobre a cabeça do irmão. Um ruído pavoroso de ossos quebrando-se faz com que as mulheres presentes lancem um estridente grito de horror.

– Loucos, parem com isto! – brada Fricka, esposa de Wotan.

Loki, entretanto, diverte-se a valer com a disputa e dá um grito de alegria quando vê Fasolt, moribundo, desabar ao chão com a cabeça aberta.

Fafner, sem se importar com o que fez, pega o anel e o esconde nas dobras de sua roupa. Depois, recolhe o elmo e o ouro e sai, rapidamente, daquele lugar, enquanto o irmão agoniza no solo.

Wotan observa os efeitos da maldição que começam a se concretizar diante de seus próprios olhos.

– Aí está, para vocês todos, o resultado de tanta ambição! – diz Fricka, olhando irada para o marido, que está acabrunhado, e para Loki, que observa o corpo de Fasolt com ar de desprezo. – O Valhalla é seu, finalmente, Wotan. Pode ocupá-lo agora: o preço acaba de ser inteiramente pago!

***

O dia amanhece. Wotan e Fricka rumam para o Valhalla, sua nova morada.

Heimdall, o vigia de Asgard, criou Bifrost, a ponte do Arco-íris que conduzirá todos ao magnífico palácio. À frente, segue o casal divino. No rosto de nenhum deles, brilha o menor sinal de alegria ou satisfação. Wotan sabe que por aquela mesma ponte terá de regressar, um dia, para travar uma negra batalha. E que, para o lugar aonde vai, não haverá prazeres que não tenham a mácula de um dissabor terrível e definitivo: o do Crepúsculo dos Deuses.

Fim do Primeito Ato.

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Segundo Ato


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