O Anel dos Nibelungos (Ato 1 – 2/4)

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II – O preço do Valhalla

– Wotan, os gigantes chegaram e querem falar com você!

Fricka, a esposa de Wotan, deus supremo, é quem lhe dá o aviso. Sua voz trêmula trai um profundo receio.

– Ai de nós! Eles vieram cobrar o preço de sua ambição!

– Cale-se, Fricka!… – diz Wotan, franzindo ainda mais as sobrancelhas hirsutas.

Wotan, um ser incrivelmente corpulento, de negras barbas que lhe atoaIham o peito, está parado diante da janela de seu palácio. Dali, ele contempla as torres de uma outra construção, à grande distância, no alto das montanhas. Suas torres douradas brilham e Wotan as admira com um orgulho desmedido. Ao mesmo tempo, uma preocupação traz uma nota sombria e profunda ao seu olhar.

– Peça que me aguardem – diz o deus, depois de uma longa pausa. – A hora da Ragnarok ainda não soou; ainda sou, portanto, o deus supremo por aqui.

Wotan referia-se à grande conflagração final que poria fim ao seu reinado e de toda a corte dos deuses. Toda Asgard, a morada dos deuses, vivia sob o peso desta que era a mais funesta de todas as profecias: o dia do Crepúsculo dos Deuses. Wotan sabia que era o mais poderoso dos deuses. Mas sabia também que era mortal como qualquer outra criatura. Nenhuma outra corte celestial poderia ser, assim, mais sombria: deuses que se sabiam mortais!… Deuses que, embora poderosos, sabiam que seu poder, cedo ou tarde, seria esmagado por forças invencíveis.

Wotan sente uma confusão de sentimentos dentro do peito. O seu novo castelo, o Valhalla, estava finalmente pronto: uma construção esplendorosa que era um monumento definitivo ao seu poder, à sua virilidade e à sua inteligência supremas. Mas ele sabe também, que há um preço a pagar, um preço demasiado alio para todos: Wotan vendeu a própria juventude dos deuses aos Gigantes que agora estão à sua porta para cobrar o seu preço.

A um canto da peça, está encostada Gungnir, a lança de Wotan. É nela que de inscreve todos os seus pactos e acordos. O deus ruma para ela e a toma em suas grossas mãos. Ao longo da lança, em caracteres rúnicos, estão inscritos os termos do acordo ditado por sua ambição. Poucas vezes ele lera aquela incômoda inscrição, mas agora via-se obrigado a relê-la para ver se descobria alguma brecha que pudesse lhe ser favorável. Mas, não, os termos eram inequívocos:

“Pela construção do Valhalla,

Palácio magnífico e novo lar de Wotan,

Divindade suprema,

Os gigantes Fafner e Fasolt,

Últimos remanescentes

Da raça magnífica dos Gigantes,

Passam a ter o direito de levar consigo

Freya, deusa do amor, da juventude e da beleza.”

Nada podia ser mais claro: em troca do Valhalla, Freya, irmã de sua mulher!

– Loki, o maldito!… é ele o culpado de tudo! – esbravejou Wotan, fincando a lança sobre o solo. Um som cavo reboou por todo o palácio.

Loki, filho também daquela raça nefasta dos Gigantes! Criatura inquieta e turbulenta, maldito irmão de criação que só lhe trazia problemas.

Na verdade, Loki não lhe trazia somente problemas: muitas vezes, inclusive, já tirara os deuses de sérias dificuldades. Loki era uma espécie de curinga entre as divindades, aquele trazia problemas, mas que, ao mesmo tempo, sabia encontrar as soluções mais originais e inesperadas para eles. Alguns dias antes, Wotan havia encarregado o utilíssimo embusteiro de uma importante missão.

“Loki”, dissera ele ao semideus, “encarrego-o de descobrir em todo o mundo algo mais valioso do que a própria Freya, deusa do amor! Somente assim poderei romper os termos do acordo irretratável, que fiz com os Gigantes!”

– Fricka, Loki já retornou de sua missão? – disse Wotan à sua esposa.

– Não, os únicos que aí estão, são os malditos gigantes para levar minha irmã de vez para Jotunheim!

Jotunheim era o país dos Gigantes. Era para lá que Freya deveria levar lambem as suas maçãs da juventude.

– Oh, Wotan! Como pôde trocar minha irmã pela sua vaidade? Você trocou o Amor pelo Poder…!

– Silêncio, mulher das mil recriminações! – bradou Wotan. – Lembre-se de que você também disse várias vezes que não via a hora de adentrar os luminosos e perfumados salões do Valhalla!

– Sim, disse, não nego – respondeu Fricka, de olhos baixos. Mas, em seguida reergueu-os com altivez. – Mas fiz isto apenas para lisonjear a sua vaidade, louca que fui…!

– Ora, vejam! Mas, então, é sempre a vítima! Sempre a atribuir aos outros os seus próprios erros e as desgraças que lhe acontecem! Basta, máquina de reclamar! Traga Fafner e Fasolt à minha presença e desapareça da minha frente!

Num instante, Wotan tem diante de si os dois gigantes. Fasolt tem o ar ponderado; a expressão de seu rosto é a de quem espera apenas, que se pratique a justiça dos acordos, anteriormente pactuados. Já seu irmão, Fafner, tem o ar colérico e um brilho evidente de cobiça inunda seus olhos. É ele quem dá a nota da conversa.

– Muito bem, Wotan – diz ele, apontando para a grande janela. – Lá está d Walhalla, o mais belo e magnífico de quantos palácios possam haver neste ou cm qualquer outro mundo! Está cumprida a nossa parte do acordo: queremos, agora, a nossa paga. Onde está a bela Freya?

Seus olhos cinzentos perscrutam tudo ao redor.

– Ora, vamos, esperávamos, que ela já estivesse aqui, à nossa espera!

Wotan dá-lhes as costas. Caminhando lentamente até a janela, vê mais uma vez as diversas torres do novo palácio, que faíscam sedutoramente.

– Fafner e Fasolt…! – diz Wotan, com um meio sorriso. – Não esperavam, realmente, que o pagamento chegasse a tanto, não é mesmo?

– O que está falando? – diz Fasolt, dando um pulo. – Foi o pactuado!

– Está gravado aqui, não vê? – retruca Fafner, mostrando a lança ao deus.

– E, se tivesse sido apenas uma brincadeira? – diz Wotan. Por baixo de sua espessa barba, percebe-se um sorriso estranho, que tanto pode ser de simpatia quanto de uma velada ameaça.

– Você brinca conosco, Wotan, mas não estamos aqui para graças! – diz Fafner, cuja face está marcada por duas manchas vermelhas.

Wotan, pouco acostumado a se explicar, também perde logo a paciência.

– Ora, vamos, ela é bonita demais para dois tolos como vocês! Escolham outra coisa!

Fasolt está sem fala; rígido como uma estaca, apenas observa o semblante alterado do deus soberbo. Já Fafner está tomado pela cólera: o sonho de ver os deuses privados da juventude persegue-o desde pequeno e, agora que estava prestes a vê-lo realizado, não permitirá que tudo se perca por entre seus dedos.

Neste momento, porém, ouve-se um rumor vindo do lado de fora da janela.

– Vejam! – exclama Wotan, exultante. – É Loki quem chega!

Dali a instantes, Loki está entre eles. Ele tem um olhar inquieto, emoldurado por cabelos vermelhos, longos e escorridos. Um grande broche dourado prende seu manto leve e esvoaçante.

– E então, Loki? – pergunta Wotan, ansioso.

– Nada encontrei, poderoso Wotan – diz ele, com uma voz carregada de frustração.

– Como nada, seu tratante? Você não sabe o que estes dois vieram fazer aqui?

Fafner e Fasolt encaram-no com o semblante irado.

– Naturalmente que sei, poderoso deus.

– Então apresente a solução, miserável! Afinal, foi graças aos seus pérfidos conselhos que me meti neste maldito negócio!

– Graças a mim?… Perdão, Wotan, mas eu nunca o induzi a nada!

– Você fez, ao menos, o que lhe mandei fazer?

– Sim, Wotan, percorri o mundo todo e, em todas estas andanças, nada descobri que tenha mais valor do que o Amor.

Um sorriso de triunfo ilumina o rosto de Fafner.

– Vamos fechar logo este negócio! – diz ele, adiantando-se.

– Contudo, escutei falar de algo, que talvez os interesse… – diz Loki, com um ar enigmático.

Wotan ergue num arco as suas sobrancelhas desgrenhadas.

– Escutou o quê?…

– Bem, ouvi dizer, que há um certo Alberich, um nibelungo, que diz ter encontrado algo infinitamente mais valioso que o Amor.

– Mais valioso? – exclamam os gigantes a um só tempo.

– Silêncio, escutemos o que este tratante tem a dizer! – diz Wotan, tomado pela curiosidade. – Vamos, Loki, desembuche de uma vez!

– As ninfas do Reno disseram-me que o anão esteve lá e lhes passou uma conversa.

Ao final de tudo, ele acabou por se apossar do Ouro do Reno!

O Ouro do Reno…! Sim, todos já haviam escutado falar daquele tesouro, que diziam estar oculto sob as águas do majestoso rio. Mas ninguém ainda o tinha visto.

– De posse deste ouro, Alberich forjou um misterioso e poderoso anel. Graças a ele, dizem elas, o anão acumulou um tesouro fabuloso em suas cavernas subterrâneas no país dos Nibelungos.

Tão logo escuta isto, Fafner chama seu irmão Fasolt à parte.

– O que você acha disto? – diz Fafner, com a mão em concha na orelha do irmão.

– Acho que se trata de mais um embuste! – diz Fasolt. – Você conhece Loki lauto quanto eu: ele é um descendente da nossa raça e você sabe que a maioria dos gigantes não prima pela lisura…

– Deixe de asneiras! – Fafner está fascinado por aquela história: uma montanha de ouro que pode passar de uma hora para a outra, como num passe de mágica, para as suas mãos, não é algo que se despreze. – Vamos dar um prazo a eles. Se nos trouxerem mesmo o tal ouro deste miserável anão, trocaremos Freya por ele.

Mas Fafner… não podemos sair daqui de mãos abanando!

– Certamente que não, caro irmão! Certamente que não!…

Fafner volta-se, então, para os dois, Wotan e Loki, que estão no centro da peça, aguardando o desfecho da conversa dos gigantes.

– Vocês têm um dia para nos entregar todo este ouro. Esta é nossa decisão.

– Ótimo! – exclama Wotan. – Amanhã vocês terão o que desejam.

– Um momentinho! – diz Fafner, erguendo o dedo. – Até lá, levaremos Freya conosco, na condição de refém.

– Uma refém? – diz Wotan, com as faces intumescidas.

– É claro! Não acha que sairemos daqui de mãos abanando, confiados apenas na palavra deste aí, não é? – diz Fasolt, apontando para Loki.

Um silêncio tenso paira sobre todos. Wotan sabe do risco que corre e teme a reação de Fricka, sua mulher.

– Muito bem, que assim seja! – diz ele, finalmente. – Loki, mande chamar Freya imediatamente!

Os três – Wotan e os gigantes – ficam a sós. Cada qual tem os pensamentos postos no objeto de sua ambição. As torres do Valhalla continuam a faiscar à distância. Nunca elas pareceram tão belas, luminosas e tentadoras! Fafner e Fasolt também têm os olhos da imaginação postos sobre o brilho do ouro de Alberich.

De repente, porém, um grito de mulher vem pôr fim aos saborosos devaneios dos três. Fricka, esposa de Wotan, entra sala adentro, conduzindo sua irmã, Freya, pela mão.

– Então, você fez o que eu temia? – diz Fricka, alterada. – Vai mesmo entregar minha irmã aos cúpidos desejos destes dois?

– Freya, passe para cá – diz, simplesmente, Wotan, tomando-a pela mão.

Solidamente presa pela mão potente do deus supremo, Freya é como um frágil graveto, que ele conduz para onde quer.

– Oh, meu poderoso cunhado! O que pretende fazer de mim?

– Acalme-se, bela Freya. Você ficará apenas por um dia na companhia de Fafner e Fasolt, até que tenhamos cumprido nossa parte do acordo. Não se preocupe, eles nada farão com você neste meio tempo. – Wotan olha para os dois, como num claro sinal de advertência.

O rosto fino da deusa da juventude e do amor está molhado pelas lágrimas, que lhe escorrem dos olhos como duas linhas irregulares, líquidas e cristalinas.

– Vamos, basta de conversa – diz Fafner, tomando a deusa, que já passou por três mãos em menos de um minuto.

– Não, Wotan, não!… – grita Freya.

Sua irmã arremessa-se, mas é impedida pelo marido.

– Quieta, não dificulte ainda mais as coisas!

– Oh, Wotan, maldito! – exclama Fricka, lavada em pranto. – Por causa da sua cupidez, Asgard inteira conhecerá logo o seu fim!

III – O elmo de Tarn


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