Para entendermos melhor a relação entre as palavras e a magia, um breve estudo dos Dez Mandamentos (ou “as dez palavras”) dos hebreus pode nos ajudar, pois a relação é plena.
A maior parte do texto abaixo foi adaptado de Geerhardus Vos, “Teologia Bíblica – Antigo e Novo Testamento“, p.168.
As primeiras quatro palavras (mandamentos) lidam especificamente com a relação do homem com Deus. Mas trataremos aqui apenas das três primeiras, pois elas formam um grupo por si, protestando contra os três pecados típicos e fundamentais do paganismo: o pecado da polilatria, o da idolatria e o da magia.
O primeiro mandamento serve de pano de fundo para entendermos os próximos, que são os que nos interessam aqui.
A PRIMEIRA PALAVRA
Será observado, mais adiante, que a primeira palavra não é uma negação teorética da existência de outros deuses além de Yahweh. Nem é, é claro, uma afirmação, direta ou implícita, da existência de outros seres divinos. Ela deixa toda essa questão de lado e se limita à imposição de que Israel deve ter somente um objeto de adoração: “não terás outros deuses (ou deus) diante de mim”. <<
O Decálogo, enquanto Lei, não é uma Lei no sentido moderno da palavra. Ele não se dá ao trabalho, por meio de cláusulas envolvidas e qualificações amontoadas, de cobrir cada brecha por causa de má-compreensão ou evasão da Lei. Moisés era um legislador, não um escriba. O plano sobre o qual a matéria é posta, por não ter levantado o problema do monoteísmo abstrato, é, na realidade, mais elevado do que qualquer forma de fundamentação do mandamento. Dizer que não existem outros deuses e, portanto, vocês estão confinados a me servir somente, é um motivo menos digno para a fidelidade de Israel para com Yahweh, do que dizer, como o Decálogo na verdade diz: “Eu sou Yahweh teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa da escravidão. Não terás outros deuses diante de mim”. Além do apelo ao senso de gratidão pela libertação recebida, há também o vislumbre de uma alusão quanto a ofensa à honra de Yahweh, caso outros objetos de adoração fossem colocados ao seu lado. As palavras “diante de mim” ou “além de mim” expressam a indignidade que tal transgressão seria para ele, subjetivamente.
A SEGUNDA PALAVRA
“Não farás para ti imagem de escultura, nem semelhança alguma do que há em cima nos céus, nem embaixo na terra, nem nas águas debaixo da terra. Não as adorarás, nem lhes darás culto; porque eu sou o Senhor, teu Deus, Deus zeloso, que visito a iniquidade dos pais nos filhos até à terceira e quarta geração daqueles que me aborrecem e faço misericórdia até mil gerações daqueles que me amam e guardam os meus mandamentos” (Êxodo 20:4-6).
Duas coisas são proibidas nessa perspectiva: a adoração de imagens de escultura (esculpida, aqui, significa “feita de metal”), e a adoração de qualquer das formas da natureza.
Mais interessante e importante, todavia, é a investigação sobre em que base a idolatria é proibida. A exegese tradicional do segundo mandamento está habituada a encontrar a razão na natureza espiritual (incorpórea) de Deus, que faz que toda representação corporal seja uma deturpação, depreciativa quanto a Deus, porque na escala do ser, o incorpóreo está acima do corpóreo, também chamado de “carne”. Ainda que reconhecendo a verdade da ideia em si, não podemos considerá-la como uma exegese completamente satisfatória da segunda palavra. Deve haver uma razão especial pela qual fazer e adorar imagens provocam o ciúme de Yahweh. Curiosamente, a palavra significa, especificamente, zelo conjugal, ciúme numa relação marital. Isso implica que, quando as imagens entram em cena, a relação monogâmica entre Yahweh e Israel é substituída por um laço poligâmico ou até mesmo promíscuo com senhores de outras religiões.
A idolatria é semelhante ao adultério. Porém, diretamente contra o Ser Divino.
A questão que está diante de nós, portanto, é por que e de que maneira o fabricar imagens mina a devoção integral de Israel a Deus e coloca outro objeto divino de devoção ao lado dele. Mas aqui é que entra o que nos importa.
Ora, é evidente que isso não pode ser explicado satisfatoriamente com base na imagem ser uma cópia simbólica da deidade, pois, no fim das contas, a última seria adorada ainda mais por intermédio da imagem. Para nós, que pensamos em termos modernos, admiração ou até mesmo adoração à fotografia de alguém dificilmente provocaria ciúmes. Tal situação estaria muito mais propícia para dar ocasião a uma satisfação egoísta. Devemos deixar de lado todo esse modo moderno de pensar sobre a questão e nos esforçarmos por reproduzir, em nós, os sentimentos com os quais a antiga mente idólatra considerava e usava a imagem que ela possuía de seu deus.
Essa é uma coisa bem mais complexa do que a fórmula de realidade e símbolo é apta para expressar. Apesar de não ser facilmente descrita em sua verdadeira natureza interior, podemos, talvez, defini-la, por subordinação, sob a categoria da magia.
Lembre-se: na Bíblia, o homem foi criado com o propósito de dominar/administrar a criação de Deus, e para isso, em pleno contato com a natureza, podendo alterá-la à medida que com ela interagia.
O Antigo Testamento, numa questão, não deixa lugar a dúvidas: na criação, a criatura foi investida de poderes e dons no desenvolvimento e uso dos quais é chamada para dirigir sua própria vida. Assim como se concedeu à terra e ao mar a capacidade permanente de produzir, dentro de sua própria esfera, plantas e, até, animais, assim também o homem dispõe de um amplo campo no qual governa com poderes absolutos: instalado como senhor do mundo criado graças à bênção divina no momento da criação, é chamado a povoar a terra em virtude de sua fecundidade natural, equipado com as armas suficientes para superar qualquer obstáculo à expansão de sua soberania. (Walther Eichrodt – Teologia do Antigo Testamento, p. 611).
Ao pecar decididamente no Jardim do Éden, a humanidade começou a ter sua relação com a natureza deteriorada. A noção da linguagem original, tal como da ética e da estética, foram se deturpando. Mas o mais importante: a relação da humanidade com a divindade foi quebrada.
Nesse contexto, magia é a reversão pagã do processo da religião, na qual o homem, em vez de se deixar ser usado por Deus para o propósito divino, reduz seu deus ao nível de uma ferramenta, a qual ele usa para o próprio propósito egoísta. Magia é cheia de superstição e, de certo modo, cheia do que tem a aparência de sobrenatural, mas é vazia da verdadeira religião. Em razão de que ela não tem o elemento da autocomunicação divina objetiva vinda do alto, ela tem a necessidade de criar para si mesma meios materiais de coerção que, deseja-se, farão que a deidade cumpra sua ordem. Em função da natureza do caso, esses instrumentos de coerção mágica se multiplicarão indefinidamente.
Ao tomar esses instrumentos para seu uso prático, o homem começará, mais tarde, a acreditar que os poderes que habitualmente pensa-se que atuam por meio deles são, de alguma maneira, subtraídos à divindade e armazenados nas formas de magia. Assim, a imagem, manipulada magicamente, tenderá inevitavelmente a se tornar um segundo deus ao lado do original, e tenderá até mesmo a superar o último em poder e utilidade.
Veja: a imagem não é o símbolo; ela se comporta como o rival e o substituto do deus. Desse modo, a representação sensual (relativo aos sentidos) que se faz também de Yahweh, por se tornar associada com a magia, leva diretamente ao politeísmo.
Até esse ponto, os romanistas e luteranos perceberam corretamente que existia uma relação íntima entre o primeiro e o segundo mandamentos. A posse de Yahweh do direito exclusivo de adoração por parte de Israel estava sob risco tão logo imagens foram introduzidas. Não é impossível que a “imagem de escultura” se refira particularmente a imagens de Yahweh, e que “semelhança” ou “formas” se refiram a deidades estrangeiras, ou mesmo seus totens. Tanto a primeira palavra quanto a última instigam o ciúme divino, e ambas são referidas no mandamento, não importando se essa sugestão quanto à “imagem de escultura” é correta ou não. O primeiro mandamento ordena ter um único Deus; o segundo investe contra a fonte principal de perigo para a observância daquele. Mesmo no significado duplo da palavra “idolatria”, essa relação das duas coisas ainda se faz sentir; ela significa, parcialmente, a adoração de outros deuses e, parcialmente, a adoração de imagens. Esses fatos são verdadeiros.
A TERCEIRA PALAVRA
A transição da segunda para a terceira palavra é natural, pois estamos ainda na esfera da magia. Dessa vez é a “palavra mágica” que é proibida.
“Não tomarás o nome do Senhor , teu Deus, em vão, porque o Senhor não terá por inocente o que tomar o seu nome em vão” (Êxodo 20:7).
Não é suficiente pensar em praguejar e blasfemar, como no uso atual desses termos. A palavra é um dos principais poderes na superstição pagã, e a mais potente forma de palavra mágica é o nome mágico.
Cria-se que mediante a pronúncia do nome de alguma entidade sobrenatural, essa podia ser compelida a fazer de acordo com as ordens de quem está fazendo uso da magia. O mandamento aplica a desaprovação divina de tais práticas especificamente com o nome “Yahweh”.
“Tomar” significa pronunciar. “Em vão” literalmente lê-se “para vaidade”. Vaidade é um termo bem complexo no qual as ideias do irreal, do enganoso, do decepcionante e do pecaminoso se misturam. Ela designa um largo ramo do paganismo, que também deve ter tido espaço no passado de Israel, e deve ter continuamente ameaçado usurpar a verdadeira religião. O uso do nome Yahweh para tal propósito era particularmente perigoso, porque parecia conceder a proteção da legitimidade.
Apesar de os modos antigo e moderno darem a impressão de, nessa questão, estarem a uma grande distância um do outro, contudo o que chamamos de praguejar e blasfemar não é essencialmente diferente desse antigo nome mágico, e, consequentemente, está sob a condenação do terceiro mandamento. Devemos nos lembrar de que, originalmente, o hábito de praguejar servia para um propósito bem mais realista do que atualmente. Perceba, aqui, a relação da magia e as palavras.
Se isso se tornou menos convencional, e, portanto, como alguns dissimulam, inocente, é em grande parte porque o homem moderno manteve muito pouco de religião, que faz que ele sinta que praguejar não possa ser, no fundo, religiosamente ofensivo. Em épocas não muito distantes, o emprego de nomes sobrenaturais com o propósito de maldição e objurgação tinha uma intenção bem realista.
Os nomes serviam para invocar os poderes sobrenaturais para prejudicar o inimigo ou para, miraculosamente, afirmar a verdade de uma declaração. O ato de praguejar é um remanescente de tais práticas. E, mesmo quando o que faz isso diz que não relaciona nenhum significado real a suas fórmulas, ainda assim permanece sempre, mesmo no uso mais impensado delas, mais ou menos o sentimento de que não importa muito se o nome do deus, que talvez não é acreditado mais, possa ser usado a serviço do homem no assunto mais corriqueiro. Essa pode ser uma pálida sombra do nome mágico; mas, em princípio, ela não é diferente da realidade.
O núcleo do pecado não reside exclusivamente em sua suposta eficácia, mas no desrespeito por Deus que está implícito. Ela é, como toda magia, o oposto da verdadeira religião. Daí a condenação enfática: “Yahweh não terá por inocente aquele que pronuncia seu nome por vaidade”.
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