O MONOTEÍSMO DOS HEBREUS

Há concordância neste ponto entre a escola crítica e nós, na medida em que aquela não somente concorda que os profetas foram monoteístas, mas até mesmo os considera como os descobridores e os primeiros campeões da fé. Controvérsia de fato, poderia surgir com a ala esquerda da escola somente, ou seja, com aqueles que dizem que o monoteísmo explícito é um produto exílico ou pós-exílico.

Com os outros, a seguinte questão deve ser debatida sobre se o monoteísmo pré-exílico de Amós para trás era somente uma maneira nascente, inconsistente ou era o monoteísmo comprovado. A importância, portanto, ainda permanece, tanto para um propósito positivo como para efeito de controvérsia, que os fatos sejam declarados como eles nos são fornecidos pelos profetas mais antigos.

Nós encontramos neles declarações explícitas nas quais pelo menos a divindade dos deuses pagãos é negada, apesar disto, é claro, não negar a esses deuses a inexistência absoluta. Amós chama os falsos deuses após os quais os antigos judeus andavam de “suas mentiras” [2.4; cf. Is 1.29,30]. Isaías tem um termo sarcástico para nomear os ídolos, ’elihim. Isto, apesar de não ter a mesma etimologia de el, a faz relembrar, mas ao fazer da palavra um diminutivo, ela representa os deuses pagãos como “deusinhos”, ou (etimologicamente falando) como “aqueles que não servem para nada”. O deus falso falha em estar à altura do conceito de deidade plena [2.8, 18, 20; lO.lOss.; 19.1, 3; 31.7]. Em Oséias, que cronologicamente vem entre Amós e Isaías, não temos tal declaração explícita, à exceção de suas referências às imagens. N o capítulo 1, versículo 10, contudo, ele chama Yahweh de “o Deus vivo”, o qual pode ser uma reflexão sobre os ídolos “mudos”.

O monoteísmo é, de igual modo, pressuposto pela maneira na qual os profetas mais antigos se expressaram com relação às imagens e à adoração de imagens. As imagens eram representadas com o o trabalho da mão de um homem e a adoração delas é ridicularizada. Essa polêmica contra os ídolos é encontrada tanto em Oséias como em Isaías [Os 2.10; 4.12; 14.3; Is 2.18, 20; 17.7,8; 31.7]. Pode-se objetar que tal ridicularização atinge somente as imagens, com as quais os deuses não estavam identificados. Pode-se levantar também a objeção de que a mesma polêmica é direcionada contra as imagens de Yahweh em cujo caso não estaria implícita a negação de sua existência ou divindade. Com relação à primeira objeção deve-se responder que tal distinção entre o deus e sua imagem é uma ideia totalmente moderna.

A mente idolátrica forma um conceito bem mais realístico da imagem do que aquele de uma reprodução simbólica da deidade. De alguma maneira, nem sempre compreensível para nós, a imagem e o deus parecem um; por meio da imagem, controle era exercido sobre a deidade. Isto somente, apesar de tudo, faz que a ridicularização, feita por Oséias, Isaías e alguns dos salmistas, seja satisfatória e pertinente. Onde a distinção teológica entre a imagem e a coisa representada é introduzida, a ridicularização se torna imediatamente insatisfatória e irrelevante. Mas essa ação por parte dos profetas por meio das imagens é dirigida aos deuses pagãos. Se é um vexame para o deus ser feito de um material qualquer, então isso deve ser porque o deus está na verdade unido com a matéria. Uma associação mais distante ou refinada com a matéria, pelo princípio do simbolismo, não se justifica.

Nós devemos então nos referir ao que já foi dito em conexão com a segunda palavra do Decálogo.1 Para os pagãos, a presença magicamente divina existia na imagem. Uma deidade que se deixa fabricar ou encaixotar dessa maneira, para ser manipulada pelo homem, expõe-se ao ridículo. Esse ridículo, assim, prova aproximadamente somente que o deus pagão é falsamente investido com divindade por seus adoradores. N o período um pouco mais tardio da polêmica, isto se tornou aparentemente diferente. Logo, a linguagem empregada é tal a ponto de sugerir que não há nada na imagem a não ser matéria. A partir desse ponto de vista posterior, o ridículo se torna, é claro, mais pungente e incisivo: ele não deixa nada sem ser destruído. Porém, talvez, no período mais inicial, o assunto não havia sido tão bem refletido pela mentalidade popular.

A segunda objeção ao argumento era: parecia como se os profetas, por meio do seu ato de ridicularizar as imagens, houvessem atingido a existência do próprio Yahweh, uma vez que o que eles dizem não é raramente ou, ainda mais, primariamente endereçado ao culto das imagens de Yahweh. Essa objeção é igualmente injustificada. Os profetas, na verdade, queriam atingir “Yahweh”, ou seja, o falso deus representado pelas imagens, como aquelas em Dã e Betei. Oséias coloca o deus de Dã e de Betei no mesmo pé de igualdade com os deuses estrangeiros ou as deidades incorporadas em Israel ou ainda os deuses nativos de Canaã. Ele abertamente o chama de “Baal”.

Há um número de declarações nos profetas mais antigos, como há em outras partes do Antigo Testamento, que falam vividamente de outros deuses e que lhes atribuem ações ou movimentos aparentemente implicando sua existência. É possível que isso seja em razão da crença na existência demoníaca, subdivina. Entretanto, é também possível que tais declarações devam ser explicadas com base na personificação retórica. Não é sempre fácil dizer qual dos dois está envolvido. Algumas vezes, o contexto dirá [cf. Is 19.1; 46.1; M q 7.18]. N o salmo 96.4, lemos: “Yahweh é temível mais que todos os deuses”, mas, logo em seguida, o versículo 5 acrescenta: “todos os deuses dos povos não passam de ídolos; Yahweh, porém, fez os céus”, no versículo 7 todos os povos são convidados a dar glória e força a Yahweh [cf. SI 135.5,6,15ss.].

O poder ilimitado atribuído a Yahweh em todo lugar tem como seu correlato o monoteísmo dos profetas. Sem dúvida, essas afirmações não cobrem exatamente o que entendemos por “universo”, em sua vasta extensão como se tornou conhecido no curso da História. Mas essa objeção não é relevante. A única questão é se qualquer poder rival em qualquer esfera conhecida de realidade foi atribuído a qualquer ser divino ou subdivino. Não há nenhuma evidência disto.

Caso a teoria crítica do desenvolvimento gradual do monoteísmo na era dos profetas seja verdadeira, nós deveríamos esperar que a crença monoteística aparecesse nos escritores anteriores numa forma menos desenvolvida e nos posteriores numa forma mais desenvolvida. Nós deveríamos estar preparados para descobrir que Amós e Oséias eram consistentemente menos monoteísticos em suas formas de declaração do que Isaías e Miquéias. Ou deveríamos antecipar, entre os séculos sete e oito, um progresso em Jeremias além de Isaías. Mas nenhuma diferença desse tipo é encontrada. Mais ainda, o monoteísmo dos profetas em nenhum lugar é associado por eles com a natureza ética única de Yahweh. A teoria moderna sustenta que a ênfase do ético à custa do caráter gracioso de Yahweh é que gerou a convicção monoteística. Miquéias 7.18 argumenta no sentido exatamente oposto.

A NATUREZA E OS ATRIBUTOS DE YAHWEH

Voltamos nossa atenção agora ao ensinamento profético sobre a natureza e os atributos de Yahweh. Yahweh é chamado de “espírito”, mas isso tem uma conotação um tanto quanto diferente daquela em nossa terminologia doutrinária. Ele não expressa imaterialidade, mas a energia de vida em Deus. Seu oposto é “carne”, que significa inércia inata da criatura, considerada separada de Deus [Is 31.3]. “Carne” não é associada ainda com o pecado, como mais tarde no Novo Testamento. Entre os atributos distinguidos não há nenhuma tentativa de classificação. Em Isaías 57.15, dois aspectos da manifestação divina em direção ao homem são distinguidos: o transcendental, em virtude do qual Deus habita nas alturas, e o condescendente, em virtude do qual ele se inclina e habita com os humildes dentre os seus servos. Isso aborda num sentido genérico a tão bem conhecida distinção entre os atributos comunicáveis e incomunicáveis. Os atributos que pertencem à classe de transcendentais são: onipotência, onipresença, eternidade, onisciência e santidade.

ONIPOTÊNCIA

O poder ilimitado de Yahweh é fortemente enfatizado por Amós, primariamente para o propósito ético de ampliar o terror do juízo que se aproxima. O Antigo Testamento não possui uma palavra para o conceito de onipotência. Mas Amós, de maneira figurativa e descritiva, consegue comunicar vividamente a impressão do que ela consiste. Yahweh forma as montanhas, cria o vento, faz as estrelas e o órion. Ele convoca as águas do mar e as despeja sobre a face da terra. A mudança do dia para a noite, e vice-versa, obedece sua vontade. Com o um conquistador controla a terra ocupando os lugares altos, assim ele pisa sobre os lugares altos da terra. Ele envia fogo, fome, pestilência e todas as pragas e também o mal, sendo tudo isso, mais uma vez, instrumentos da execução de seu julgamento [2.5; 3.6; 4.6, 9,10,13; 5.8; 7.4], Declarações similares são obtidas em Isaías em conexões similares. O caráter brusco e imediato do efeito produzido é especialmente salientado por esse profeta. Yahweh opera por uma palavra, e isso é tão-somente uma maneira de dizer que ele trabalha sobrenaturalmente. Ele mantém com a criatura a relação do oleiro com o barro, uma figura de grande expressão da onipotência bem como da soberania. N o futuro, ele mudará toda a face da terra, fazendo do Líbano um campo frutífero e do campo frutífero uma floresta [2.19, 21; 9.8; 17.13; 29.5, 17]. As declarações mais fortes estão na segunda parte da profecia [40; 42; 45], Quanto a Miquéias, podemos comparar 1.2-4.

O SENHOR DOS EXÉRCITOS

Um dos nomes permanentes de Yahweh está associado com esse atributo de onipotência. O nome é “Yahweh dos Exércitos”. Ele ocorre de várias formas, algumas mais plenas, outras mais compactas. É difícil dizer se a variedade é em função de um processo de expansão ou abreviamento. A forma mais longa é “O Senhor Yahweh, o Deus dos Exércitos”. Este (com o artigo antes de “exércitos”) é encontrado somente em Amós 3.13.0 nome mais comum é “Yahweh Zebaoth”. Este é um nome de Deus especificamente profético, que não aparece no Pentateuco, Josué ou Juizes. Nós o encontramos pela primeira vez em Samuel e Reis, depois em oito salmos, em todos os quatro profetas mais antigos, em todos os outros profetas, à exceção de Joel, Obadias, Jonas e Ezequiel. Finalmente, ele ocorre em três passagens em Crônicas. Yahweh Zebaoth é provavelmente uma abreviação, já que um nome próprio não pode estar no estado construto. Outra abreviação é com relação ao simples “Zebaoth”, mas ela não é encontrada no Antigo Testamento. A Septuaginta, em um número de casos, transliterou “Zebaoth”, e isso foi passado para duas passagens no Novo Testamento [Rm 9.29; T g 5.4], Nos textos em que a Septuaginta traduz o nome, ela tem ou “o Senhor dos poderes”, ou, “o Senhor, o Todo Soberano”.

A palavra tsabha tem, fora do nome, quatro significados, e, para cada um deles, uma das quatro interpretações do nome. Esses quatro significados são: um exército de guerreiros humanos, a hoste de espíritos sobre-humanos, a hoste de estrelas e a soma total de todos os seres criados. Pensa-se que o último, proposto por Wellhausen, é corroborado por Gênesis 2.1, em que o escritor fala “dos céus e da terra e todas as suas hostes”. Enquanto que o plural do pronome mostra que hostes da terra não é uma frase inconcebível, contudo, é evidente que a referência precedente a “céus” induziu o escritor, por efeito de zeugma, a posicionar “a terra” na mesma construção. Não está provado por meio disso que esse era o m odo comum de combinar “hostes” com terra. Todavia, há verdade na observação de Wellhausen que, em Amós, o nome tem as associações cósmicas mais abrangentes. Com o detalhe de que isso é em razão de outra causa, com o veremos agora. Alguns têm encontrado duas outras instâncias desse uso cósmico: uma em salmo 103.20-22, a outra em salmo 148.1-4. Nessas passagens, porém, uma distinção clara é traçada entre as obras de Yahweh no céu e sobre a terra e suas hostes, o que mostra que o último deve ser procurado numa esfera específica da criação inteligente, ou seja, entre os servos celestiais de Deus.

Wellhausen, além de colocar essa interpretação peculiar sobre a expressão, tem também defendido a visão de que o nome foi criado por Amós. Mas isso é improvável, porque já em Amós o nome tem várias formas, e porque o profeta em nenhum lugar tenta explicá-lo. Ambas características indicam que o nome estava em uso antes dele. Na verdade, ele ocorre em passagens que, segundo a visão de Wellhausen, seriam mais antigas do que a data de Amós. A fim de levar sua conjectura até o fim ele tem de declarar que essas passagens estão interpoladas ou alteradas na sua forma original. Não há nenhuma necessidade literária para isso. A interpretação que entende as hostes como os corpos astrais tem algumas coisas a seu favor. “A hoste do céu” ocorre mais frequentemente nas passagens que falam da idolatria astral [Dt 4.19; 17.3; Jr 8.2; 19.13; 32.29; Sf 1.5]. Na religião pagã, isso é geralmente baseado na crença de que as estrelas são seres vivos ou, de algum modo, são identificadas com espíritos super-humanos. Tem sido sugerido que esta referência da frase “hoste do céu” é originalmente idêntica com a referência dela aos anjos. Isso então dataria de um tempo quando uma crença similar ainda prevalecia entre os ancestrais dos hebreus.

Seu uso em nome de Deus envolveria um protesto contra essa espécie de idolatria, sendo intimado que Yahweh é superior a esses seres, Senhor sobre todas as criaturas. Havia também uma crença, não raramente associada com a precedente, de que os anjos-estrelas foram colocados sobre as nações pagãs para governar sobre elas com a permissão de Deus, e a crença nessa forma parece ter existido e sobrevivido entre os judeus. Existem alguns contextos em Deuteronômio em que há referência a essa crença. No capítulo 29, versículo 26, lemos: “e se foram, e serviram a outros deuses… e que ele não lhes havia designado”. Em 32.8, a Septuaginta tem um texto divergente do hebraico, que lê: “Quando o Altíssimo deu as nações por sua herança, quando ele separou os filhos dos homens, estabeleceu as fronteiras dos povos de acordo com o número dos anjos de Deus”. O hebraico lê: “de acordo com o número dos filhos de Israel”. Mas a diferença na leitura entre o original e a versão grega antes sugere que os tradutores da Septuaginta ou leitores estiveram sob a influência dessa ideia peculiar e, consequentemente, mudaram o texto. E existem sérias objeções à ideia de que o nome era entendido dessa maneira no antigo Israel. Nos profetas anteriores, ele não ocorre em contextos em que as estrelas são mencionadas. Amós 5.8, em que ele fala do sete-estrelo e do órion, não o emprega [cf. também Is 40.26], As estrelas são chamadas uniformemente de “hoste” do céu, no singular. E elas nunca são chamadas de “a hoste de Yahweh”.

Muito pode ser dito a favor de uma opinião que desfruta de bastante popularidade no momento, de que as “hostes” são os exércitos de Israel dos quais Yahweh é o capitão. A aceitação geral quanto a isso é em virtude dela favorecer a ideia crítica de que Yahweh era originalmente um deus guerreiro. Ainda assim, isso não é um obstáculo para que o aceitemos. Há um aspecto de guerra no conceito profético de Deus. Isaías, especialmente, revela certo deleite em descrever as características marciais de Yahweh. Isso de maneira alguma infere, como os críticos parecem pensar, que Yahweh tenha alguma vez sido exclusivamente um Deus guerreiro. Um argumento a favor dessa intepretação tem sido tirado do fato de que somente nas “hostes” militares a palavra é usada no plural, enquanto que para as estrelas e anjos ela sempre ocorre no singular. O nome tem o plural; que mais então essas “hostes” podem ser senão as “hostes” de Israel? [cf. Êx 7.4; 12.41; SI 44.9; 60.10; 108.11],

Duas coisas, contudo, de alguma maneira diminuem a força desse argumento. A primeira é que nas passagens de Êxodo, a multidão do povo em geral, e não os soldados de Israel, é que é chamada de “as hostes de Yahweh”. O uso do nome “hostes” não é, então, em razão de associações militares. Ele surge simplesmente da numerosidade do povo. E nas passagens de Salmos, as hostes não são chamadas hostes de Yahweh, mas “nossas hostes”. Uma contraconsideração é a seguinte: precisamente naquelas passagens em que Deus é designado como “Yahweh das Hostes”, quando têm ocasião para se referir aos exércitos de Israel, eles não empregam o termo “hostes”, mas alguma palavra diferente [lSm 4.16,17], Outro argumento acrescentado a favor do sentido militar é que em várias ocasiões “Yahweh das Hostes” ocorre em combinação significante com a arca, que era um escudo de guerra [lSm 1.3,11; 4.4; 2Sm 6.2]. As primeiras duas passagens não falam da arca em particular mas somente do tabernáculo, e outra razão terá de ser encontrada para a sua associação mesmo com a arca, uma vez que não há nada de militar na história de Ana. Quanto a 1 Samuel 4.4 e 2Samuel 6.2, nos quais os arredores são mais ou menos militares, parece improvável que o uso do nome Yahweh das Hostes é induzido pela arca como o expoente disso. Na sequência dessas referências, fala-se da arca repetidamente, e mesmo assim isso não traz o nome sob discussão. Deve haver outra razão pela qual isso deveria ser feito precisamente nas duas passagens citadas. E a razão não é difícil de descobrir, pois nas duas os querubins sobre a arca são mencionados com ela. E isso aponta para outra explicação que examinaremos agora.

Um próximo argumento, cuja força não pode ser negada, é tirado de 1 Samuel 17.45 e salmo 24.10. No primeiro, Davi diz para Golias: “eu vou a ti em nome de Yahweh das Hostes, o Deus dos exércitos de Israel, a quem tens afrontado”. Nesse texto, “O Deus dos exércitos de Israel” parece na verdade explanatório de “Yahweh das Hostes”. A passagem de Salmos não é igualmente convincente. “Yahweh das Hostes” (v. 10) não é necessariamente o equivalente de “Yahweh poderoso na batalha” (v. 8). A estrutura da passagem parece antes climática, de modo que “Yahweh das Hostes” signifique bem mais do que “Yahweh poderoso na batalha”. Se assumirmos que para Davi o sentido marcial estava realmente associado a ele, teremos de considerar isso como, provavelmente, a mais antiga interpretação lançada sobre o nome, uma, contudo, que no curso do tempo, nos profetas e em Salmos, deu espaço para outra, tida como mais adequada para descrever o caráter central de Yahweh.

Nem é necessário que a razão de tal substituição seja lançada exclusivamente nos conceitos ampliados desse período posterior de revelação. Há algo mais a ser levado em conta. Os profetas provavelmente sentiram que os tempos haviam mudado. Enquanto que no tempo de Davi a tendência da religião de Israel estava totalmente voltada para o sacudir do jugo estrangeiro, no período dos profetas, quando no geral excessiva confiança havia sido colocada em recursos militares, e o propósito divino era quebrar essa disposição mental irreligiosa, não teocrática, a ênfase não mais poderia estar sobre o que pudesse ser feito com ajuda humana, mas antes sobre o que Yahweh poderia miraculosamente realizar. E, portanto, as “hostes” assumiram um caráter diferente; elas são agora expoentes da interposição celestial, sobrenatural de Deus nos assuntos de seu povo. Isso está bem em afinidade com a condenação de alianças políticas, que é um ingrediente constante da pregação profética desse período.

Até onde diz respeito aos profetas, então, somos levados de volta à visão mais antiga, que interpreta “hostes” como a multidão de anjos. Isso é o que melhor satisfaz todos os fatos no caso. Nós já descobrimos que a ocorrência do nome em 1 Samuel 4.4 e 2Samuel 6.2 é em razão da menção do querubim. Alguns exemplos mostram a mesma conjunção. É o Yahweh adorado pelos serafins que Isaías chama de Yahweh das Hostes. Em Isaías 37.16, a oração de Ezequias, Yahweh é chamado de Yahweh das Hostes com o estando assentado acima dos querubins. O único lugar onde o nome ocorre em Oséias está num contexto que menciona o anjo de Yahweh [12.4,5], Em Salmos 89, o mesmo ocorre só uma vez, no versículo 8, e no contexto antecedente os anjos estão em primeiro plano.

Mais ainda, essa interpretação explica mais facilmente as várias características associadas com o nome. O sabor de guerra surge do fato de que o Deus dos anjos é o Rei onipotente das multidões celestiais, que pode conquistar seus inimigos quando os recursos terrenos falham. Além disso, ele pode até posicionar suas hostes contra Israel, se necessário [Is 31.4]. Yahweh das Hostes é o seu nome de realeza. Isso o designa como o Rei todo-poderoso tanto na natureza como na História [SI 103.19-22; Is 6.5; 24.23; Jr 46.18; 48.15; 51.57]. No Oriente, o poder de um rei é medido pelo esplendor de sua comitiva.

A RELAÇÃO DE YAHWEH COM O TEMPO E O ESPAÇO

Em seguida à onipotência de Yahweh, consideraremos sua relação com o tempo e o espaço. Quanto à presença de Deus no espaço duas representações ocorrem. Ele habita em Sião, de onde ruge [Am 1.2], e onde tem seu trono real [Is 2.3; 8.18]. Oséias chama Canaã de terra de Yahweh [9.3]. Essas declarações não indicam qualquer limitação terrena da presença de Deus. Elas não são reminiscências de uma teologia bruta. Esses escritores representam Deus em outro lugar, como habitando no céu [Os 5.15, sobre um retorno ao céu; Is 18.4; 33.5; M q 1.2,3]. Em Sião, há uma presença de revelação graciosa. O mesmo, é claro, é verdade com relação ao céu, pois céu, não mais do que qualquer localidade na terra, pode circunscrever ou prender Deus. O céu é seu trono, e a terra é o estrado de seus pés. De acordo com Amós 9.2, o alcance do poder de Yahweh é absolutamente incapaz de ser limitado pelo espaço. E verdade que isso é expresso em linguagem antropomórfica popular. Não há nenhuma sugestão da ideia de que Deus está acima de todo espaço, e deslocado dele em sua vida interior. Ele, é claro, reconhece o espaço como uma realidade objetiva na existência da criatura, mas seu modo divino de existência não é afetado.

A mesma relação se aplica entre Yahweh e o tempo. Na linguagem popular, como os profetas usam, a eternidade só pode ser expressa em termos de tempo, apesar de que na verdade ela permanece completamente acima do tempo. Alguns têm encontrado em Isaías 57.15 o conceito teológico de eternidade como uma esfera que envolve Deus, da mesma maneira como o tempo é o ambiente em que o homem necessariamente habita, em função da estrutura de sua consciência. Mas as palavras traduzidas na Authorized e Revised Versions por “que habita a eternidade” também podem ser traduzidas como “que está entronizado para sempre”, o que confere somente a ideia ordinária de duração sem começo nem fim. Entre os profetas anteriores, somente Isaías é que reflete sobre esse misterioso e majestoso atributo divino. Na descrição do Messias [9.6], o título abhi‘ad, agora frequentemente traduzido como “pai para a eternidade”, pode talvez significar “pai de eternidade”, apesar disso ser um voo ainda mais alto no ambiente do transcendental do que a ideia de Deus habitando a eternidade.

Indiretamente, a eternidade acha expressão de várias maneiras. Na medida em que Yahweh é o Criador de todas as coisas, ele deve ter existido antes de todas as criaturas e anteceder todo o desenvolvimento na História. Ele é o primeiro e o último, porque lançou os fundamentos da terra e estendeu os céus [Is 44.6; 48.12,13]. Ele tem chamado à existência as sucessivas gerações dos homens desde o princípio [Is 41.4]. Com essas declarações, algumas vezes a autodesignação divina ocorre, “Eu o sou”, que significa, “Eu sou o mesmo”, não estando sujeito a mudança no decorrer do tempo, especialmente implicando uma garantia da imutável fidelidade de Yahweh. Esse seria o mesmo pensamento que encontramos expressado em Êxodo 3.14, na frase “Eu sou o que sou”, e que é desde então associado com o nome Yahweh como ele é.

ONISCIÊNCIA

A onisciência de Yahweh acha expressão em conexão com sua onipresença e sua habilidade de predizer as coisas. Porque ele está em todo lugar, sabe tudo o que ocorre. Ele declara para o homem o que seu (do homem) pensamento íntimo é [Am 4.13]. Oséias diz: “As iniquidades de Efraim estão atadas juntas, o seu pecado está armazenado”. Cada pecado cometido pelo povo está na presença de Deus; assim como o dinheiro bem guardado na bolsa não pode ser perdido, assim também é com o pecado [Os 13.12]. A eternidade de Deus está em cena aqui também. Existindo antes de tudo o que acontece, ele é apto para predizer muitas coisas que virão a suceder, e agora ele desafia os deuses pagãos a se compararem com ele nas próximas predições [Is 41.22-24; 43.9-13; 44.6-8]. Isso implica que sua presciência está intimamente ligada com seu propósito. Ela não é nenhuma adivinhação mágica de contingências incertas, mas é a sequência natural de seu plano. “Yahweh não faz nada sem que revele seu segredo aos seus servos, os profetas” [Am 3.7]. É inútil ocultar o conselho de alguém de Yahweh, como os políticos tentam fazer, trabalhando no escuro Visão libertária “municipalismo”

SANTIDADE

Outro atributo transcendental é a “santidade” de Yahweh. O hebraico para o adjetivo é qadosh, o substantivo correspondente é ‘qodesti. O verbo é usado no niphal, piei, hiphil e hithpael. Mas essas formas verbais são derivadas do substantivo ou do adjetivo; portanto, não podem ser de ajuda na determinação do significado fundamental além daquele que o substantivo e o adjetivo dão, e esses não contribuem em nada quanto à etimologia, porque a raiz toda, com seus derivados, tem sido monopolizada pela religião, deixando-nos a conjecturar o que, fora da esfera da religião, o significado da raiz seria. E esse é o caso não só no hebraico, mas também nas línguas cognatas. Alguns comparam os radicais com aqueles da raiz chadash, “brilhar”, da qual o adjetivo para “novo” é formado, sendo que a coisa nova é a coisa que brilha. Isso estaria de acordo com o aspecto positivo da ideia bíblica de “santidade”, aquela de pureza, à qual a aplicação ética da ideia naturalmente se conecta. Outros entendem que ela deriva de um grupo de raízes que tem nos seus primeiros radicais a combinação de qad, na qual a ideia de “cortar”, de “separação”, é parte integral. Nessa visão, o ramo do conceito que denota altivez, majestade, está mais próximo do conceito-raiz. A última dessas derivações merece a preferência.

As razões para essa preferência são, primeiro: é mais fácil incluir tudo que diz respeito à ideia de santidade sob o conceito de separação do que, indo em direção contrária, começar com a noção de pureza. A transição de majestade para pureza parece mais fácil do que aquela de pureza para majestade. Em segundo lugar, o oposto de qadosh é chob, este significa “solto”, “aberto”, “acessível”: é natural, então, assumir que qadosh é originalmente “separado”, “cortado”, “não ultrapassável” [ISm 21.5; Ez 42.20; Am 2.7], E, em terceiro lugar, certa sinonímia pode ser observada entre a ideia de santidade e aquela ligada com a raiz cherem. O hiphil da última raiz significa “devotar”, e isso se inicia da ideia de separar (cf. “harém” e “Hermom”).

Começando então com o conceito de “cortar”, devemos nos dispor a traçar o desenvolvimento da palavra, e de que maneira ela veio a ser aplicada à deidade. O sentido original é negativo. E ele é prático, descrevendo uma regra de comportamento a ser observada com relação à deidade e seu ambiente. C omeçar a falar de um “atributo” de Deus só pode levar ao equívoco. “Santidade” não é, em primeira instância, o que Deus é, mas ela ensina o que não deve ser feito a um deus, ou seja, não se aproximar com uma atitude por demais familiarizada. “Inacessibilidade” expressaria isso melhor. Mas o sentimento seguinte é que essa regra de exclusão não é algo arbitrário; isso é pelo fato de que o divino é divino, e que isso insiste em ter essa distinção entre si e a criatura reconhecida. Assim, então, entra um elemento positivo por meio da consciência por parte de Deus de sua distinção e de sua decisão de mantê-la e dar a ela uma expressão externa. Um santuário não está aberto indiscriminadamente, a companhia da deidade e do santuário constitui uma barreira para a aproximação, a qual, quando violada, incita o ressentimento da deidade.

Até aqui, a noção não é aquela de revelação especial; ela não está confinada a Israel ou ao Antigo Testamento. Os fenícios, por exemplo, falam dos “deuses santos”. Porém, sob a influência da revelação especial, a ideia é imensamente aprofundada. É seguro dizer que nenhum semita pagão jamais olhou para o seu deus da mesma maneira que Isaías fez quando teve a visão no templo. Uma vez que a atribuição e o sentir da santidade são, no fundo, um reconhecimento de divindade, segue-se que o sentido verdadeiro, interno, consumado disso só pode ser alcançado onde a convicção da exclusividade, não de um deus como tal, mas de Yahweh como o único Deus verdadeiro, existir. Assim como a deidade ganha um novo significado quando passa do paganismo para Israel, assim também ocorre com a santidade. Note que a ideia de majestade e exaltação acima da criatura não é abandonada; ela é somente aprofundada e purificada, e fica com o uma proteção permanente contra toda familiaridade vulgar com Deus, que solaparia a própria base da religião.

Considerando a santidade divina dessa maneira, podemos facilmente perceber que ela não é realmente um atributo a ser coordenado com os outros atributos distinguidos na natureza divina. Ela é algo coextensivo com e aplicável a tudo o que pode ser qualificado a Deus: ele é santo em tudo que o caracteriza e revela, santo em sua bondade e graça, não menos do que em sua justiça e ira. A santidade se torna um atributo, estritamente falando, mediante sua restrição na esfera ética.

Há certas passagens no Antigo Testamento que claramente ilustram esse conceito geral da santidade majestosa de Yahweh. O cântico de Ana [lSm 2.2], se dirige a Deus nestas palavras: “Não há santo com o Yahweh, porque não há outro além de ti, e não há rocha com o nosso Deus”; de novo, Oséias 11.9: “Eu sou Deus e não homem, o Santo no meio de ti (Israel)”. Nós podemos explicar a partir desse significado geral a associação entre santidade e a habitação de Deus nas alturas [Is 57.15]. Os céus são o mais elevado e íntimo santuário, onde Yahweh habita sozinho; por isso o contraste contundente, quando em oposição a isso é apresentada sua condescendência com o humilde. A mesma associação existe com a eternidade deYahweh. Isso é, da mesma maneira, algo tão especificamente divino que ela o coloca à parte de tudo que é criado e que existe no tempo. Na passagem imediatamente citada, Deus ser entronizado para sempre e sua santidade estão lado a lado. Habacuque exclama: “Não és tu desde a eternidade, ó Yahweh, meu Deus, ó meu Santo? Não morreremos” [1.12]. É o mesmo com a onipotência de Deus, pois esta também pertence somente a Yahweh. N o cântico de Êxodo 15, Deus é celebrado com o “glorioso em santidade, temível em louvores, o que opera maravilhas”. De acordo com Números 20.12, Moisés e Arão são repreendidos por não terem “santificado” Yahweh (ou seja, por não o terem reconhecido e proclamado com o “santo”), quando eles falharam em atribuir a ele a onipotência que poderia fazer a água correr da rocha em obediência à simples voz de comando. Especialmente no profeta Ezequiel, essa associação com a onipotência é frequente. Pode-se quase dizer que santidade é equivalente a poder supremo. Deus reclama que seu santo nome tem sido profanado entre as nações por meio do cativeiro de Israel, porque isso fez que os pagãos duvidassem de sua onipotência para proteger, defender e livrar o seu povo. Por conseguinte, a fim de santificar o seu nome novamente (ou seja, exibir a si mesmo como onipotente), ele os ajuntará e os trará de volta para a terra. “Meu grande nome” é agora intercambiável nesse profeta com “meu santo nome”. A resposta subjetiva do homem a essa majestade santidade consiste em temor e reverência [ISm 6.20; Is 6.2,3], nas quais mesmo os serafins, apesar de não terem pecado, reconhecem-nas com tremor [Is 8.13],

Mais familiar a nós é o aspecto especificamente ético de “santidade”. Isso é porque esse sentido da palavra quase foi monopolizado no Novo Testamento. Ainda assim, ele não suplantou inteiramente a majestade-santidade geral, como a segunda petição na oração do Senhor nos relembra. Porém, o que é de maior importância, o significado ético não está no Antigo Testamento simplesmente coordenado com o sentido de majestade, como se representassem duas ideias desconexas. A o contrário, o sentido ético expõe claramente a marca de seu desenvolvimento a partir da ideia de majestade. O desenvolvimento começa com a experiência que a majestade de Deus é muito mais intensamente sentida por um pecador do que por alguém sem pecado. Os serafins em Isaías 6 sentem a majestade e reagem a ela com temor; o profeta sente a mesma coisa, mas com o pecador; daí sua exclamação, “Ai de mim! Pois eu estou perdido; porque eu sou um homem de lábios impuros e eu habito no meio de um povo de lábios impuros”. Esse é um sentimento, não de temor geral, mas de dissolução moral. A reação sobre a revelação da santidade ética de Yahweh é uma consciência de pecado. Mas essa consciência de pecado carrega em si mesma uma compreensão profunda da majestade de Deus. Ela contempla a santidade não com o “pureza” simplesmente. Seria melhor defini-la como “pureza majestosa” ou “sublimidade ética”. Ela está associada com exaltação não menos do que o outro ramo. Especialmente em Isaías, essa interconexão entre majestade e pureza é claramente observável. O profeta gosta de falar dela em termos de dimensão em vez de intensidade. “Yahweh das Hostes é exaltado em juízo, e o Santo Deus é santificado em justiça” [5.16; cf. SI 15.1; 24.3].

Desse entrelaçamento com a ideia de majestade, podemos explicar mais adiante que a santidade se toma o princípio da punição do pecado. Isso nunca poderia ter vindo de mera pureza, que é um conceito negativo, pois a pureza pode ser satisfeita com uma mera repulsa ao pecado ou fechando-se contra o pecado. Contudo, tão logo o elemento de majestade se mistura com o de pureza, o último se torna um princípio ativo, que deve vindicar-se e manter a própria honra. A santidade operando desse modo é representada como a luz da glória divina se tornando numa chama que devora o pecaminoso [Is 5.24; 10.17; 33.14,15], O mesmo colorido recebido da majestade de Deus é perceptível em outros atributos éticos, benevolentes. De acordo com o salmos 103.lss., o “nome santo” de Deus fundamenta tais manifestações graciosas como as que estão enumeradas nos versículos. 2-5.

Lado a lado com a santidade de Deus em si, a santidade é atributo de certas coisas que estão mais ou menos estreitamente relacionadas com ele. O povo é santo, o céu é chamado de santo, o sabbath é santo, o monte de Yahweh é santo. Nós já vimos como isso é uma consequência natural do significado primário da palavra. Se é inacessivelmente majestoso, então se torna importante traçar um círculo de santidade em volta dele, que barrará o “profano”. Em nossa visão, a santidade atribuída a Deus é o conceito original, primário. A santidade de outras coisas é derivada. A santidade divina irradia, por assim dizer, em todas as direções, e cria uma luz inacessível.

Alguns escritores, porém, têm assumido a visão oposta da sequência dessas duas ideias. Eles assumem que, primeiro, certos objetos que entraram no culto da deidade foram considerados santos, e que depois esse modo de falar passou dos objetos para o deus que eles cultuavam. Tem sido sugerido até que a transferência pode ter sido ocasionada por meio das imagens, que eram tanto coisas sagradas devotadas à adoração da deidade, como identificadas com os próprios deuses. Mas isso teria sido um procedimento totalmente ininteligível. O que a santidade de um objeto, considerado como predatando o costume de se chamar os deuses de santos, poderia ter significado? Dizer que eles eram “consagrados” não é uma resposta, pois essa palavra pressupõe que a deidade é sagrada. A única resposta que poderia ser dada seria que as coisas eram separadas como a propriedade do deus, em outras palavras, “santidade”, quando atributo de uma coisa, seria o equivalente de “a propriedade do deus”. Contudo, nessa visão, torna-se bem incompreensível como a transição do atributo para a deidade possa ter ocorrido. Se a coisa é santa, porque ela é uma propriedade exclusiva, o que se quer dizer com Yahweh sendo uma propriedade exclusiva? A resposta aproximada a isso provavelmente seria: ele é a propriedade daqueles que são santos, ou seja, Israel. Porém, nessa visão, a ideia se tornaria algo puramente recíproco no qual o deus não teria nenhuma prioridade sobre o homem.

Essa certamente não é a impressão que recebemos do uso do Antigo Testamento que enfatiza tão fortemente a aplicação exclusiva da ideia a Deus. Além disso, a dificuldade surge que, nessa visão da matéria, a existência de propriedade privada precedeu no tempo o aparecimento da ideia de santidade. Diestel, que defende a prioridade da santidade da coisa ou, pelo menos, sua simultaneidade com a santidade do deus, procura provar sua teoria com dois argumentos. O primeiro é derivado do nome “o Santo de Israel”, frequente em Isaías, ocorrendo também em Jeremias e em Salmos. Ele faz esta expressão dizer: “Aquele que se consagra a Israel”. Gramaticalmente isso é possível, pois, no mesmo princípio, o sabbath é chamado de “o santo de Yahweh”, ou seja, dedicado a ele. Assim também com Arão. Ainda assim, a construção usual em tal entendimento teria vindo com a preposição lamed, “santo para Israel”. Mas uma objeção à visão de Diestel é que Isaías não usa o nome exclusivamente com referência favorável a Israel; algumas vezes o que ocorre é o oposto [5.19,24],

Por conta disso, é melhor interpretar o nome com o unindo dois pensamentos em um: Yahweh é o Santo, e Yahweh é o Deus de Israel. A ideia dele pertencer a Israel é de fato afirmada, mas ela encontra expressão na frase “de Israel”, e “Santo” permanece no sentido ordinário (ético-majestoso) para descrever sua natureza. O outro fato do qual Diestel se vale já foi tocado. Ele pensa que porque a santidade pode estar associada com o intento benevolente divino com relação a Israel isso deve achar sustentação no fato de ela ser um nome para a consagração de Yahweh a Israel. Nós vimos que essa combinação não tem outro propósito do que o de atribuir aos atributos em questão uma riqueza e uma qualidade únicas.

A santidade derivada de coisas e pessoas no serviço da deidade ou na vizinhança de seu lugar de habitação ocorre, como tem sido demonstrado, tanto nos círculos do paganismo como na religião revelada. Contudo, há uma diferença em princípio quanto à maneira na qual a ideia tem sido trabalhada. O pano de fundo do conceito no paganismo é do tipo físico, naturalístico. A santidade derivada era concebida como uma influência vaga, passando por sobre as pessoas e as coisas. Ela pode ser comparada com uma corrente elétrica, com a qual tudo na vizinhança de um santuário é abastecido. Ela faz que as coisas sejam perigosas ao toque. Isso é diferente em Israel. Apesar do mesmo caráter perigoso poder pertencer a certas coisas (a arca, por exemplo), ainda assim isso é somente em razão do livre ato santificador de Deus. Assim, Deus “santificou” o sabbath, não porque ele possuía inerentemente um caráter peculiar, ao qual mágica e superstição pudessem se ligar, mas porque era sua vontade que aquele dia carregasse uma importância peculiar lembrando e vinculando-o ao serviço de Deus.

A conotação específica de “santidade”, como um atributo do homem, tanto no Antigo como no Novo Testamento, deve ser cuidadosamente observada. Quando um homem é declarado ser eticamente santo, mesmo onde o conceito foi inteiramente espiritualizado, o significado nunca é simplesmente aquele de bondade moral, considerada em si, mas sempre bondade ética vista em relação a Deus. A ideia marca a consagração da ética à religião.

—– Retirado de: Geerhardus Vos – Teologia Bíblica – Antigo e Novo Testamento.


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