Dia após dia, o rei tinha ouvido os relatos incoerentes que o povo da montanha e o povo do vale traziam. Vendo o medo que espreitava por trás dos olhos arregalados das pessoas, os do rei se estreitaram ao pensar em como esse pânico que havia se apoderado de seus súditos poderia ser minorado. Não duvidava que houvesse, na verdade, um motivo grave para todo aquele padecimento mental. Ouvira com eles o balido das ovelhas fantasmas ecoando dos picos altos e longínquos das montanhas e, olhando da porta de seu dún real, vira os rebanhos brancos como a neve andando para lá e para cá pela relva, onde o povo das montanhas morava nas cavernas envoltas na névoa. Seus druidas buscaram o conhecimento das estrelas em vigílias noturnas e voltaram com o rosto assombrado para revelar a inutilidade de suas pesquisas.
— Não cabe a nós sondar, ó rei, os desígnios dos imortais. A mão de Manannan-Mac-Lir está visível no céu, e esses são seus rebanhos encantados, que só muito raramente aparecem diante dos olhos dos homens no decorrer das eras. Se é para o bem ou para o mal que ele os mostra para nós agora, não sabemos, mas é imprudência interferir nas manifestações dos deuses.
— Ai! Minha gente definha diante dos meus olhos — disse o rei —, e os doentes gemem em seus leitos enquanto o medo pálido abala seus corações. Não há nada a fazer para apaziguar a ira do Deus do Mar? Ou vós conseguis descobrir se a ira dele é contra nós?
— Voltaremos à nossa vigília, ó monarca, e ao amanhecer vos traremos qualquer notícia que nos seja entregue — responderam humildemente os druidas, retirando-se da presença real; estavam cansados das longas vigílias noturnas, mas ansiosos para desvendar o mistério da temível aparição que causara tanta angústia ao povo de Sorcha.
O rei, pensativo, olhou para a multidão ajoelhada, demorando-se mais nos montanheses hirsutos, com seus trajes bárbaros de pele e couro curtido. Os cabelos e barbas desse povo cresciam numa profusão selvagem; no cabo das suas lanças de caça havia vestígios de sangue seco. Começaram a falar depressa, usando palavras rudes e levantando as mãos numa súplica.
— O que foi que vistes e o que temeis? — falou-lhes o rei num tom tranquilizador.
O clamor da resposta veio como o rugido de um rio caudaloso:
— Ouvimos perto de nossas casas, ao anoitecer, nos recantos secretos das colinas, ó rei, o balido de um grande rebanho de ovelhas e, quando seguimos para onde ele levava, fomos pegos em nuvens de névoa, de modo que muitos de nós, escorregando de trilhas estreitas, caíram e se despedaçaram nas rochas lá em baixo. O balido e um som de passos ainda vinham da névoa até nossos ouvidos, como se houvesse uma multidão atrás de nós, e, quando esticamos os braços, a névoa se abriu e subiu como enormes flocos de neve. Agora, o som ecoa em todas as montanhas. Nossa gente está paralisada de horror e não se atreve a caçar os animais selvagens que lhe servem de comida. Nossos rebanhos fugiram para o vale, assim como nós, aterrorizados. A fome nos assola e a doença se apoderou de nossas mulheres e crianças. E os demnaeoir, os demônios do ar, gritam no vento ao nosso redor, e os geinte glindi, o povo selvagem dos vales, seguem nossos passos por toda parte, até não sabermos para onde ir, e, por puro horror, pedimos aos deuses que nos deem a morte.
— E nós — contaram os moradores do vale — também vivemos à sombra desse grande medo, ó rei, pois nossos olhos estão sempre voltados para as montanhas, enquanto nossos campos ficam sem cultivo e nosso trabalho por terminar, tamanha é a cruel fascinação que nos toma. O lamento da bean-sidhe27 se faz ouvir de um lado a outro do vale, afugentando nosso sono à noite, e os cães se encolhem, trêmulos e arrepiados, quando nossas mulheres os expulsam do canto da lareira para a luz do dia.
O rei gemeu, cansado, balançando-se de um lado para o outro no trono dourado. Seu coração se comovia até pelo mais humilde dos súditos, e seu governo sábio mantivera a paz na terra por muitos anos. Esse desastre não fora causado por ele, tampouco algum daqueles rostos arrasados pelo medo o encarava com os olhos da culpa.
— Quando o próximo dia raiar — disse-lhes num tom terno —, subirei até o alto daquelas montanhas convosco, meus filhos, e, se os deuses forem gentis, talvez Manannan-Mac-Lir me conceda uma audiência. Além disso, meus druidas farão oferendas de expiação: ouro, prata e pedras preciosas, e ainda holocaustos do gado dos meus pastos, para que essa maldição abandone a mim e aos meus.
Beijando a bainha do manto real, os súditos deixaram o salão de audiências, silenciados pela tristeza na voz do rei.
O território de Sorcha ficava numa longa cadeia de montanhas que o protegia a leste, norte e oeste, mas se inclinava rumo ao sul, onde o mar chegava a uma praia de areia branca ao abrigo de grandes falésias. Ali, a casa real postava-se como sentinela. De sua atalaia, via-se o vasto horizonte, de modo que nenhuma frota de navios hostis podia se aproximar da terra sem que alguém a avistasse, nem um único estranho conseguiria atravessar a fronteira mais distante sem que os capitães do exército soubessem, tão atenta e minuciosa era a segurança do território contra invasões estrangeiras. Foi por meio desse zelo extremado para com seu povo e suas terras que o Rei Feredach passou a ser conhecido como O Generoso, e a fama universal coroou seu nome de glórias.
Agora, sua alma adoecia no íntimo ao ver as aflições toldarem seu reino. Ainda estava sentado, depois que o último requerente deixou o salão, meditando sobre o pânico inexplicável que prometia transformar seu país belo e fértil num deserto de solidão e penúria. Quando ele se inclinou para a frente, a barba grisalha cobrindo o peito e os olhos vítreos voltados para baixo, um estranho entrou pela porta ampla, cruzou o salão coberto de juncos e curvou-se numa saudação diante dele.
— Salve, ó Rei Feredach! — disse ele. — Eu gostaria de falar contigo.
O rei ergueu o olhar e viu um homem com um traje belíssimo, colorido como a pele cambiante de uma serpente marinha. Ao redor da cintura, uma serpente dourada se enrolava como cinto, enquanto um manto verde, com os tons reluzentes e inconstantes do mar à luz da lua, cobria seus ombros e arrastava no chão. Seus cabelos eram de um dourado avermelhado e lustroso, e sobre eles havia uma coroa prodigiosa de algas, ainda cintilando com a umidade salgada das profundezas. Seu rosto era jovem, bonito e acolhedor, com olhos claros, de movimentos ágeis. Era mais alto que qualquer homem em Sorcha e trazia na mão um par de imensas tesouras de tosquia, afiadas e brilhantes.
— Quem és tu? — perguntou Feredach. — E como passaste por meus guardas lá embaixo? Ninguém vem à minha presença sem que eles o anunciem.
— Nenhum de teus guardas me viu, ó rei, pois esconderam o rosto do sol e seus ouvidos ficaram surdos aos meus passos. Vim de longe para tirar do teu povo o pânico que se abateu sobre ele.
— Qual é o teu nome?
— Meu nome é apenas o de um andarilho, ó rei; um viajante do mar, vendedor de sedas maravilhosas e curiosidades de muitas terras. Onde quer que se possa encontrar uma raridade, para lá irei; e, tendo ouvido falar de como teu reino está aflito com os sinais da inimizade dos deuses, eu, que não conheço o medo, vim encontrar o rebanho encantado e tosquiar sua lã para que o sofrimento se acabe.
— Será a tua morte — disse o rei —, pois ninguém o consegue encontrar.
— Mas eu descobrirei onde o rebanho se esconde — respondeu o estrangeiro do mar — e tu permanecerás aqui no teu trono até eu voltar.
Ao comando daquela voz, o rei ficou sentado, imóvel, e os guardas diante do salão de audiências não pareceram ver nem ouvir nada. Enquanto o rei esperava, sentado ereto como uma estátua de pedra, a manhã deu lugar ao meio-dia e a tarde dirigiu-se devagar aos braços do pôr do sol. Então, quando os vastos portais do Ocidente se abriram para a passagem do Deus do Dia, o estrangeiro voltou a entrar no salão do palácio ao esplendor da luz minguante. Nos braços ele trazia, numa pilha alta e branca, a lã mais fina e sedosa que já se vira em Sorcha, tão macia, tão longo seu comprimento e tão alva a cor. Ele deixou os tosões diante do rei.
— A praga afastou-se do teu povo, ó Feredach; os balidos dos rebanhos não o molestarão mais. Os teus vales hão de verdejar outra vez e os javalis voltarão às tuas montanhas. Quanto a mim, vou à Terra de Eirinn, aos teares dos Dé- Danaans28, no âmago de uma colina isolada, para tecer uma capa invisível com estes tosões para meu filho adotivo, o jovem Campeão de Uladh, Cuchulainn. Tal capa o protegerá das feridas na batalha e das doenças na paz, e nada terá poder sobre ela senão o povo do mar. Esta lã foi tosquiada das Ovelhas de Manannan, que vagam invisíveis por muitas montanhas do mundo; diante dos olhos dos homens, sua aparição é acompanhada por grandes desastres, mas não pela inimizade dos deuses. Despeço-me de ti, ó rei; minha tarefa está terminada.
— Fica, ó sábio estrangeiro! — exclamou Feredach, agarrando a capa verde-mar, mas sua mão se fechou no ar vazio e, em vez de passos, ouviu-se apenas um murmúrio leve e plácido como o das ondas quebrando numa praia de seixos. — Era Manannan-Mac-Lir em pessoa — disseram os druidas, pálidos de espanto.
— Era a Divindade das Águas, pois, quando olhamos da atalaia, vimos uma onda longa, estreita e branca subir a costa até a porta de vosso dún, ó rei, e na crista da onda subia e descia uma carruagem prateada, com quatro cavalos brancos de patas velozes atrelados a ela, e na carruagem vinha ele carregando os tosões, e, enquanto forçávamos a vista, a onda branca quebrou no oceano com uma grande quantidade de espuma avermelhada quando o Sol atravessava os Portões de Ouro.
— Louvados sejam os Deuses! — disse Feredach.
— Louvados sejam. E vós também, ó rei! — entoaram os druidas.
Fim.
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