II – Os Gibichungs
Um grande salão imperial, mesmo quando abriga uma modesta reunião familiar, é, provavelmente, o lugar mais perigoso da face da terra. Alguém um pouco mais cínico dirá mesmo que, justamente em tal ocasião, é que este elegante e aprazível local adquire o contorno da mais grave periculosidade – pois quem ignora, dirá ele, que é no seio das famílias que os rancores e as disputas brotam com maior facilidade? O salão dos Gibichungs é palco, neste momento, de uma reunião deste tipo: Gunther, regente do feudo, e Gutrune, sua irmã, conversam com seu meio-irmão Hagen. Este último é filho de Alberich, o nibelungo, e da mãe dos dois irmãos, herdeiros do reino. Todos estão envolvidos numa amena discussão que versa sobre a maneira de aumentar o prestígio e o poder daqueles que, diga-se de passagem, já desfrutam deles em larga escala. O
diálogo transcorre sob a aparência de uma conversa amavelmente polida, na qual o menos afortunado dos debatedores – Hagen, o filho do anão – tenta provar ao casal de irmãos que ambos poderiam, mediante uma certa providência, vir a melhorar sua figura no grande quadro da estirpe dos Gibichungs (ou seja, dos filhos de Gibich).
– De fato, falta-lhes um acréscimo que seria muito útil para que o nome dos Gibichungs pudesse destacar-se entre as nossas famílias rivais – diz Hagen, alisando os fios compridos de sua barba loira e bem cuidada.
– Oh, sim? – indaga Gunther, o maioral. – E que acréscimo seria este?
– Um bom casamento – diz Hagen, olhando Gunther e a bela Gutrune.
“Um casamento!”, pensa Gunther. “Como não havia pensado ainda nisto?”
Gunther admite para si mesmo que, embora veja Hagen como um bastardo, não pode negar que sente também uma certa admiração (ou seja, muita inveja) pela sua argúcia e pelo seu grande carisma pessoal. Hagen, por sua vez, também não pode deixar de admirar (ou seja, de odiar) o direito de primogenitura, que confere a Gunther a condição de senhor do castelo e de todos os seus súditos.
– Um bom casamento!… – diz Gunther, ruminando a idéia.
Hagen, percebendo num relance de olhos que a idéia lhe é sedutora, insiste:
– Uma boa idéia para ambos, caros irmãos!
– Eu, casar-me?… – diz Gutrune, parecendo surpresa diante desta cogitação, que antes lhe parecera tão remota e improvável.
– Por que não? – pergunta Hagen. – Afinal, já tem idade bastante para isto.
– Mas… quem seria o esposo ideal para ela? – pergunta Gunther.
– Já pensei nisto, caros irmãos, já pensei nisto! – diz Hagen, esfregando as mãos. –
Que tal Siegfried, o renomado herói?… Dizem que sangue divino corre em suas veias!
A bela Gutrune, que já conhece Siegfried, parece agradada da escolha. Seu irmão Gunther também não desfaz nem um pouco da sugestão.
– Bem, e quanto a mim? – diz ele, que não pode ficar muito tempo a discutir a felicidade alheia sem antepor a sua própria.
– Por que não toma Brunhilde por esposa? – diz Hagen, o mais feliz dentre todos ao ver que seus planos começam a frutificar. – Afinal, ser casado com uma ex-valquíria e filha de Wotan (ainda que esteja, momentaneamente, caída em desgraça) não é coisa para qualquer um, mesmo em se tratando de um rei poderoso como você. – Depois, para aumentar o efeito, Hagen aproxima-se do ouvido do irmão e lhe sussurra, pondo toda a doçura na voz: – Além do mais, caríssimo irmão, todos sabemos que ela é guardiã de um imenso tesouro, que Siegfried lhe entregou ao matar o dragão Fafner…
“Isso, sem falar, é claro, de um certo anel…!”, pensa o filho de Alberich, mas sem externar esta última parte do plano.
– Ora, cale-se…! – brada Gunther, numa brusca exasperação. – Não me fale de um tesouro sobre o qual jamais poderei colocar minhas mãos! Todos sabem que Brunhilde vive num local ermo, protegido por um círculo de chamas, onde somente Siegfried pode ir.
Jamais eu teria acesso a ela ou ao seu tesouro!
– Por que jamais! – diz Hagen, sem se deixar intimidar com a rudeza de Gunther. –
Todos sabemos que Siegfried e Brunhilde foram amantes durante longo tempo e que bastaria fazer com que se casasse com sua irmã para que o convencêssemos a tomar seu partido para a obtenção da mão de Brunhilde.
– Ora, Hagen, não seja tolo! – exclama Gutrune, também se exasperando. – Todos sabem que Siegfried e Brunhilde ainda são amantes; ele jamais a trocaria por mim!
– Jamais daqui, jamais dali! – diz Hagen, perdendo, finalmente, as estribeiras. – E, se lhes disser que tenho, graças às artes de meu pai, uma certa beberagem mágica do esquecimento, que faria Siegfried esquecer, no mesmo instante, de sua amada?
Gunther e Gutrune entreolham-se, mais confiantes; pela primeira vez, sentem que é possível que seus planos se concretizem.
– Mas, como faremos para encontrá-lo? – indaga Gunther. – Dizem que ele anda pelo mundo à cata de aventuras, sem se deter em lugar algum.
– Siegfried está prestes a chegar às terras do Reno – afirma Hagen. – Não demora muito, estará desembarcando na terra dos Gibichungs. Estejamos atentos para que, quando isto ocorra, possamos lhe prestar uma bela recepção. Quanto ao resto, a poção de meu pai fará com que ele esqueça, imediatamente, Brunhilde e se apaixone, perdidamente, por você, Gutrune. Uma vez rendido ao seu amor, bastará que o convença a abrir caminho a Gunther para que se apodere da bela Brunhilde e de seu tesouro no rochedo inacessível.
A reunião encerra-se desta maneira; os dois irmãos partem para seus aposentos, repletos de esperanças. Hagen, entretanto, é o mais feliz de todos; numa espécie de transe, conversa, imaginariamente, com seu pai:
– Falta pouco, Alberich, para que o seu querido anel volte às suas mãos!
***
Alguns dias depois, Siegfried chega, de fato, às praias do Reno. Ele anuncia a sua chegada, fazendo soar com estrépito a sua trompa, o que atrai grande número de pessoas. Gunther, alertado por Hagen, corre à toda pressa para a praia a fim de receber o ilustre visitante.
– Salve, grande Siegfried, bravo herói dos germanos! – exclama Hagen, fazendo-se porta-voz entusiástico do rei que prefere se manter um pouco à parte, pois não está certo de uma reação favorável por parte do herói.
Siegfried, contudo, está verdadeiramente encantado com a recepção; pela primeira vez em sua vida, sabe o que é ser recebido em pessoa por um soberano e ser festejado pelo povo como um verdadeiro herói.
Gunther adianta-se e lhe diz, com um largo sorriso:
– Siegfried, seja muito bem-vindo a meu reino! São suas estas terras, meu castelo e meus vassalos!
Siegfried curva-se, respeitosamente, diante do rei sem se constranger, pois sente que, naquele instante, é ele a verdadeira majestade.
– Soberano, nada tenho a pôr à sua disposição, senão meu braço e minha espada.
Hagen, então, sem poder se conter, intromete-se na conversa, indagando:
– Mas, e o seu tesouro?… Não é verdadeira a lenda que diz que você tomou posse do tesouro dos nibelungos ao derrotar Fafner, o temível dragão?
– Ele nada significa para mim – diz Siegfried, de maneira indiferente. – Deixei-o na caverna, aos cuidados de minha amada Brunhilde.
– Mas nada trouxe consigo daquele fabuloso tesouro? – pergunta Hagen, sem poder acreditar nas palavras displicentes do herói.
– Somente este elmo, mas não posso usá-lo – diz Siegfried, apontando para o elmo que pende de sua cintura.
– Você diz somente este elmo? – exclama Hagen, estupefato. – Ora, este é o famoso Elmo de Tarn, que tem o dom de metamorfosear o seu possuidor em qualquer coisa ou ser que deseje! Foi graças a ele que Fafner, o gigante, pôde se metamorfosear no dragão que você derrotou! Além disso, poderá levá-lo aonde quiser! Acha isto, então, pouca coisa?
Siegfried permanece alheio à arenga de Hagen e desvia os olhos de seu desagradável interlocutor para observar a natureza e as pessoas daquele reino que o recebe de maneira tão hospitaleira. “Sou, então, tão grande assim?”, pergunta-se ele, sem poder acreditar ainda em um sucesso tão repentino.
– E o que mais trouxe do fabuloso tesouro? – insiste Hagen em perguntar, quebrando o idílio que Siegfried mantém consigo mesmo. – Não havia, porventura, em meio a todas aquelas preciosidades, um pequeno anel?
– Um anel? Oh, sim, deixei-o com Brunhilde, como penhor de meu amor.
Siegfried é conduzido ao salão do trono, em meio a um grande cortejo cercado sempre por Gunther e Hagen, que não o deixam a sós um único momento. Durante a recepção faustosa que lhe oferecem, Gutrune surge, carregando uma taça de ouro, que oferece a Siegfried.
– Esta é Gutrune, minha irmã e herdeira do trono – diz Gunther, orgulhoso da irmã, que está verdadeiramente bela.
– Por favor, valoroso herói, aceite das mãos de uma princesa esta taça de olorosa bebida – diz ela, pondo todo o encanto em sua voz. – Beba-a em homenagem à sua amada Brunhilde.
Tendo em mente a filha de Wotan, Siegfried toma a taça e sorve de um trago a deliciosa bebida, que não é outra, senão, a poção de Hagen. No mesmo instante, a efígie de sua amada desaparece de sua lembrança e seu coração fica enfeitiçado pela beleza daquela que lhe ofereceu a bebida.
Hagen, percebendo o sucesso de seu ardil, pisca o olho, discretamente, para Gutrune, que também está radiante. Gunther, por sua vez, vendo que a alegria da irmã
sobrepuja à sua própria, sente outra vez aquele velho desejo de ser mais feliz que qualquer outro em seu reino – não é ele o rei, afinal? – e decide ajeitar também o seu lado:
– Pelo visto, minha irmã agradou-o… ou estarei enganado? – pergunta ele, com um sorriso amável ao herói.
Siegfried não nega, nem confirma, mas seu olhar é indício suficiente do que se passa em seu coração. Para Gunther, isto é o bastante; aproveitando, então, o estado de ânimo de Siegfried, resolve falar de seus próprios desejos.
– Eu também trago o coração inquieto, meu amigo, e anseio por conquistar uma certa mulher, da mais nobre estirpe que possa haver, posto que é filha de um deus!
– Filha de um deus… – sussurra Siegfried, que ainda parece um pouco grogue com o efeito da maléfica poção.
– Sim, ela vive em um rochedo, cercada por um círculo mágico de fogo. Mas atravessar esta muralha de chamas é um feito que somente um herói pode conseguir.
Siegfried está meio confuso; ao ouvir falar da mulher que está presa na montanha, sente passar em sua mente uma vaga lembrança de Brunhilde. Mas logo ela é apagada pela sugestão que parte de Gunther:
– Se você me ajudasse a conquistá-la, Siegfried, eu estaria disposto a recompensá-lo com o bem que mais desejasse!
Siegfried observa a irmã de Gunther, estrategicamente colocada à sua frente.
– Eu o ajudarei, nobre Gunther, a desposar esta mulher! – exclama Siegfried. – Mas, em compensação, quero a mão de sua irmã Gutrune.
– Você?… De que maneira?
– Esqueceu que tenho o elmo mágico? Com ele posso tomar a forma de qualquer ser, inclusive a sua! Surgirei diante dela sob a sua forma e a conquistarei para você!
Hagen, que acompanha a conversa na surdina, adianta-se, satisfeito:
– Ótimo, ótimo! Sim ou não, selemos de uma vez o pacto de sangue!
Ele traz a taça cheia de vinho e faz com que tanto Gunther quanto Siegfried pinguem uma gota de sangue nele.
– Pronto! – diz Hagen, solenemente. – Através deste pacto inviolável, Siegfried compromete-se a conquistar Brunhilde para Gunther e este a lhe dar em retribuição a mão de sua irmã, Gutrune. Sua violação, contudo, implicará a pena de morte para ambos.
No mesmo dia, os dois partem Reno acima, enquanto Hagen fica a esperar junto com Gutrune o seu regresso.
Sozinho na sala do trono, Hagen, o filho do nibelungo, entrega-se às suas mais caras esperanças. Ele parece devanear, como se estivesse falando com seu próprio pai:
“Dentro de muito pouco tempo, meu pai, os dois irmãozinhos terão em seus dedos as suas aliançazinhas idiotas. Mas eu, Hagen, filho de Alberich, terei, finalmente, em meu dedo o anel dos nibelungos!”
III – A traição a Brunhilde
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