Podemos deduzir o estado de agitação generalizada reinante entre as tribos nessa época a partir das narrativas que tratam de Mica, das montanhas de Efraim (Juizes 17). Era um homem rico que, instigado pela mãe, construiu imagens religiosas e estabeleceu seu próprio santuário no qual o filho exercia a função de sacerdote. Um levita itinerante juntou-se aos seus empregados, mas quando os danitas estavam imigrando para o norte, eles o capturaram e seus pertences religiosos foram confiscados apesar das objeções feitas pelo seu verdadeiro dono. Os danitas invadiram a pacífica cidade de Laís, no norte da Palestina, e ali estabeleceram o centro da sua tribo. Essa cidade (Dã) marcava os limites setentrionais derradeiros do reino de Israel.
Os capítulos finais do livro dos Juizes revelam o caos social que prevalecia entre as tribos, e indicam que havia uma urgente necessidade de se instalar alguma autoridade temporal centralizada sob a forma de um rei. Nessa época, o centro religioso mais importante era Silo, um lugar para o qual Josué havia conduzido as tribos depois de terminada a principal fase de ocupação. Era nesse lugar que a Arca da Aliança havia sido depositada e a adoração do santuário era conduzida pelo sacerdote Eli, junto com seus filhos corruptos, Hofni e Finéias. A desordem, a fraqueza e a imoralidade que haviam feito da nação a sua vítima, eram resumidas pela maneira como os diversos assuntos eram conduzidos em Silo (1 Sm 22.22 e versículos seguintes). Assim, coube a Samuel, o último dos juizes e o primeiro dos profetas, a tarefa de instituir reformas sociais e religiosas numa tentativa de sanar o caos da vida tribal daquela época.
As narrativas sobre esse período inicial da vida de Samuel, como também de sua chamada, se desenvolveram em meio a esse cenário de depravação religiosa e desordem social. A fraqueza da moral israelita foi claramente demonstrada pela perda da Arca Sagrada para os filisteus, e pelo desastre que aconteceu em seguida. E provável que a destruição do santuário de Silo tenha ocorrido nessa ocasião (cf. Jr 7.12,14) e, caso isso tenha realmente acontecido, as tribos israelitas ficaram privadas do seu santuário central, o que contribuiu para enfraquecer ainda mais a nação.
De certa forma, a situação dos israelitas foi salva por uma inesperada calamidade que atingiu Dagom, a grande divindade de Asdode, e que assumiu proporções mais sérias com a propagação de uma virulenta epidemia entre a população. O sintoma de bolhas inguinais (1 Sm 5.9), a presença de roedores (1 Sm 6.5) e o fato de a doença se propagar rapidamente ao longo das linhas de comunicação, indicam que era uma epidemia de peste bubônica. Os filisteus rapidamente se livraram da Sagrada Arca de Israel que, com muita propriedade, haviam ligado à erupção da praga e, assim, a devolveram como uma oferta pela expiação do pecado. Uma subsequente incursão dos filisteus foi enfrentada por uma nação de Israel castigada, penitente e renovada e as perdas que os filisteus sofreram na batalha desencorajaram quaisquer ataques futuros.
Entretanto, era tão grande a desunião que existia dentro da sociedade dos hebreus que seria inevitável fazer alguma modificação no ideal teocrático tão acalentado por Samuel caso a nação quisesse sobreviver ao peso crescente da economia e da pressão militar dos filisteus. O povo precisava de um administrador tangível e unificador sob a forma de um líder, e estava exigindo os serviços de um rei. Embora Samuel se apressasse em descrever as desvantagens implícitas ao sistema monárquico, a vontade do povo prevaleceu. Dessa forma, Deus deixou de ser o único soberano da nação, como havia sido durante a teocracia, e as modificações introduzidas nesse conceito pela monarquia iriam exercer um peso importante sobre as relações subsequentes entre o profeta e o rei.
O Reinado de Saul
Obedecendo a uma ordem Divina, Samuel nomeou Saul, um homem da insignificante tribo de Benjamim, como soberano das tribos. Ele exibia uma imponente aparência física e os israelitas lhe conferiram irrestrito apoio em sua tarefa de unificar a nação. A primeira capital de Saul estava localizada em Gibeá, cerca de seis quilômetros e meio ao norte de Jerusalém, junto à estrada principal para Samaria. A cidade gozava de considerável importância por ser um posto militar avançado para as forças israelitas, pois no décimo primeiro século a.C, Jerusalém ainda estava nas mãos dos jebuseus. Escavações arqueológicas realizadas nesse local, identificado com a moderna Tell el-Ful, mostraram que ali havia se desenvolvido um total de doze níveis de ocupação. Parece que das quatro fortalezas erguidas nesse local, a segunda foi estabelecida por Saul (1 Sm 14.2). ‘ Essa estrutura de dois andares tinha uma forma ligeiramente quadrada, cobria uma área de cinquenta e cinco por cinquenta e um pés, e suas paredes variavam entre oito a dez pés de largura. Nos porões foram encontrados jarros que ainda continham azeite e grãos, e havia também uma profusão de objetos domésticos de cerâmica e outros equipamentos. Embora a localidade original tivesse apenas dois acres de extensão, foi o primeiro centro político de Israel e continuou a ser um posto militar avançado muito depois da conquista de Jerusalém.
Pouco depois de Saul ter assumido as funções de rei, os amonitas fizeram uma tentativa de conquistar Jabes-Gileade na Transjordânia e mensageiros foram enviados a Saul para informá-lo sobre essa situação de emergência. Sua comovente demonstração de liderança com a vitória israelita sobre os amonitas, assim como a libertação de Jabes-Gileade, serviram para que seu prestígio fosse muito engrandecido. Embora Saul fosse pouco mais que um rústico comandante, era um homem possuidor de muito orgulho e força de vontade e, à medida que o tempo passava, essas características se afirmavam cada vez mais na mente do povo. Parecia ser inevitável algum conflito de autoridade entre o profeta e o rei, e a repetida desobediência à vontade de Deus por parte de Saul, resultou na deterioração das relações entre ele e Samuel. O ideal teocrático estava ainda mais forte do que quando a recente monarquia havia sido instituída e, numa tentativa de preservar a unidade da nação, Samuel recebeu ordens de Deus para nomear Davi, filho de Jessé, como sucessor de Saul. Estava evidente, nessa ocasião, que Saul havia sido vítima de um distúrbio espiritual (1 Sm 16.14), e Davi havia sido nomeado para tocar harpa para ele quando se sentisse oprimido.
A Ascensão de Davi
O poder militar dos filisteus tinha agora atingido tais proporções que ameaçava destruir a vida econômica dos israelitas e Israel tinha a urgente necessidade de vencer uma decisiva batalha contra eles se desejasse sobreviver como uma entidade nacional. Foi nesse momento crítico que Davi surgiu como herói do seu povo, matou um formidável guerreiro filisteu em condições extremamente desfavoráveis e, de certa forma, mudou a situação, tornando-a favorável a Israel. A adulação que se acumulou sobre Davi, despertou tal avalanche de ciúmes na mente do rei Saul, que até mesmo a devoção dos seus filhos Jônatas e Mical não foi capaz de aplacar. Embora suspeitasse que Davi fosse um traidor, ele prometeu que podia se casar com Merabe, sua filha mais velha. Entretanto, quando chegou o dia de formalizar o casamento, e ao contrário do que prometera, Saul entregou-a a Adriel, o meolatita e Davi foi convencido a se casar com Mical, a irmã mais nova de Merabe.
Embora essa mudança ainda servisse admiravelmente aos planos do desconfiado rei, é provável que outras considerações também estivessem em sua mente e cujo significado será brevemente examinado.
O ciúme de Saul, em relação a Davi, chegou a tais proporções que Mical e Jônatas o preveniram sobre a conspiração armada contra sua vida, portanto ele fugiu para Nobe onde foi ajudado pelo sacerdote Aimeleque. Mas sua presença nesse local foi traída por Doegue, o edomita, e ele foi forçado a se retirar para o sudoeste de Jerusalém onde se escondeu na caverna de Adulão. Amigos e descontentes juntaram-se a Davi e ele tornou-se capitão de um grupo de guerreiros que, muito em breve, tiveram que se confrontar com a dupla tarefa de impedir os ataques de Saul e, ao mesmo tempo, libertar o sul de Canaã do domínio dos filisteus.
Quando Saul ouviu a notícia de que o sacerdote de Nobe havia ajudado o fugitivo Davi, atacou o santuário e matou Aimeleque, juntamente com outros oitenta e cinco sacerdotes de Jeová (1 Sm 22). Abiatar, um dos filhos de Aimeleque, conseguiu escapar e juntou-se às forças de Davi, levando consigo o éfode, ou manto sagrado dos sacerdotes, um sagrado objeto religioso feito de linho (Ex 28). Saul perseguiu Davi com frenético empenho e somente os ataques filisteus conseguiram dissuadi-lo do seu intento (1 Sm 23.27). Davi passou por enormes dificuldades para conseguir suprimentos, e recorreu a polidas formas de banditismo a fim de atender às necessidades das suas forças. Assim, Nabal (1 Sm 25.2 e versículos seguintes) foi solicitado a fornecer alimentos a Davi e seus homens em troca da “proteção” que ofereciam ao evitar que acontecesse qualquer dano aos seus interesses.
Nabal, um alcoólatra, recusou-se a considerar essa negociação, e a retribuição que Davi e seus seguidores haviam planejado foi frustrada pela habilidade de Abigail, a formosa esposa de Nabal. Quando, em seguida, ela relatou ao marido o método pelo qual Davi havia sido satisfeito, ele sofreu um ataque apoplético vindo a morrer depois de poucos dias. Depois disso, Davi se casou com Abigail, quando Mical já havia sido afastada dele e entregue a Palti, filho de Laís. Nessa ocasião, Davi também tomou Ainoã de Jezreel como esposa, e as duas mulheres lhe serviram como companhia em seu exílio.
Em duas ocasiões Davi teve oportunidade de matar Saul, mas evitou causar algum mal ao ungido rei de Israel. A fim de escapar do insensato ciúme de Saul, Davi fugiu, juntamente com suas esposas e seus seguidores, e aliou-se a Aquis, rei de Gate, que lhe deu o controle da cidade de Ziclague (1 Sm 27). No ano seguinte ele realizou diversos ataques contra os amalequitas e outros inimigos dos israelitas sem, entretanto, empreender qualquer incursão guerreira contra seus compatriotas. Nesse ínterim, Aquis se preparou para uma batalha contra Saul que, quando viu a natureza das forças do inimigo dispostas contra si, recorreu ao último recurso em direção à sua própria ruína: o ocultismo. Em um período anterior, Saul havia proscrito a prática do ocultismo de acordo com as rígidas injunções da Lei Mosaica (Dt 18.10 e versículos seguintes), mas seu estado de demência havia atingido tais proporções que estava preparado para recorrer a qualquer forma de assistência, por mais inconsistente que fosse. A médium a quem Saul fez uma visita o falecido Samuel, no qual foi profetizada a morte de Saul e a destruição das forças israelitas
Estando prontos para atacar Saul, os filisteus marcharam para Afeca, na companhia de Davi e seus guerreiros. Aquis desconfiou da lealdade de Davi nessas circunstâncias e o desobrigou de tomar parte na batalha. Ao retornar para Ziclague, Davi verificou que esta tinha sido destruída pelos ataques dos amalequitas e que seus habitantes haviam sido capturados. Depois de consultar o éfode sagrado, Davi recebeu a garantia de que sairia vitorioso se perseguisse os inimigos. Ele nem havia partido quando teve a felicidade de encontrar um fugitivo do grupo dos amalequitas que o levou até o acampamento principal. Na batalha que se seguiu, Davi dizimou os nômades saqueadores e recuperou tudo que havia sido roubado. Aqueles que, de alguma forma, haviam participado da vitória receberam uma parte dos despojos, e suas esposas, filhos e propriedades lhes foram devolvidos, um procedimento que marcou um precedente para o futuro (1 Sm 30.25).
A Batalha de Gilboa
Entretanto, um golpe derradeiro foi desfechado contra o exército israelita pelo ataque violento dos filisteus em Gilboa, no qual Saul e seus filhos foram mortos. O corpo de Saul foi mutilado e colocado no muro de Bete-Seã, mas depois foi recuperado numa investida dos guerreiros vindos de Jabes-Gileade, num ato que reproduzia a bravura mostrada em relação a eles por Saul numa ocasião precedente. O lamento composto por Davi para essa ocasião, mostra um belo e pungente tributo àqueles por quem sentia uma sincera afeição apesar da mudança que havia ocorrido em suas relações. As trágicas circunstâncias de Gilboa adquiriram um espectro de valores pessoais que elevaram os derrotados acima do nível dos seus oponentes nos atuais registros do Oriente Próximo, investindo-o de um verdadeiro caráter historiográfico.
O Matriarcado
Será, talvez, no reino dos valores pessoais, e da sua aplicação à luz dos costumes sociais, que poderá ser encontrada a explicação da fúria que caracterizou a atitude de Saul em relação a Davi. O ponto particular em questão pode ser encontrado na influência do matriarcado egípcio durante os primeiros estágios da monarquia hebraica. Esse sistema de herança, através apenas da linhagem feminina, era muito antigo e exerceu uma profunda influência sobre todos os níveis da sociedade egípcia. Além disso, existe alguma razão para se acreditar que ela tenha afetado o curso da monarquia hebraica à medida que se desenvolvia em direção a um patriarcado hereditário.
Maaca, a bisavó de Saul, era esposa de Jeiel, que em 1 Crônicas 8.29 é descrito como “pai” de Gibeão. Se ela recebeu o mesmo nome de uma pequena cidade-estado situada aos pés do Monte Hermom, isso pode ter estado em conformidade com um antigo costume de atribuir ao rei o mesmo nome do país que governava, e isso torna Maaca uma personagem real dentro do seu próprio direito. Se, de certa forma, o sistema matriarcal era válido, a preocupação sentida por Davi quando Merabe foi dada em casamento a Adriel, ao invés de ser dada a ele mesmo, estaria justificada considerando que o esposo de Merabe estaria, então, em linha direta de sucessão ao trono. Novamente, quando Davi se casou com Maaca, filha de Talmai, rei de Gesur (2 Sm 3.3) ele também se tornaria o governante daquele pequeno reino e é interessante notar que foi para esse lugar que Absalão fugiu depois de matar seu irmão Amom (2 Sm 13.37 e versículos seguintes).
Se for possível identificar Ainoã, esposa de Davi (1 Sm 25.43) com Ainoã, filha de Aimaás e esposa de Saul, pode parecer que Davi tivesse conseguido estabelecer um contrato de casamento com a esposa do monarca reinante. Se o matriarcado estivesse totalmente válido na Palestina daquela época, Davi teria o acesso a uma indiscutível titularidade ao trono de Israel. Sob tais circunstâncias, Saul teria tido “razões” urgentes para a destruição de Davi, pois desde que esse último possuísse a herdeira do reino, o trono seria seu por direito de casamento. Nesse sentido, a óbvia ligação entre Paltiel e Mical (2 Sm 3.16), antiga esposa de Davi, seria bastante compreensível se ela fosse uma herdeira do trono, pois, como seu marido, ele estaria em uma linha direta à sucessão.
Devemos entender que esta teoria, envolvendo a influência do matriarcado egípcio, não deixa de estar isenta de dificuldades, uma das quais diz respeito à verdadeira identidade de Ainoã e Maaca. Entretanto, se levarmos em conta algum grau de credibilidade, ela pode nos ajudar a entender os motivos que provocaram as intrigas políticas do início da monarquia hebraica e os atos que, julgados pelos padrões da cultura ocidental, podem parecer desnecessariamente imorais, rudes e brutais.
——- Retirado de R. K. Harrison – Tempos do Antigo Testamento.
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