Davi e Jônatas

O foco deste post é Jônatas. Para tal, faremos várias outras observações sobre o registro bíblico.

De acordo com o quadro bíblico, Davi, embora já ungido para suceder Saul, sem má intenção alguma, passa a participar da corte do rei. Depois de receber uma entusiasmada recomendação (ISm 16.18), é levado à corte primeiro como músico, para acalmar Saul, cujos nervos ficavam facilmente à flor da pele. Logo Davi se destaca em uma luta individual contra Golias e se torna o preferido não apenas do povo, mas, para tristeza cada vez maior de Saul, até mesmo de alguns de sua família. Por fim, o temor e o ciúme do rei o levam a tentar tirar a vida de Davi e, desse modo, depois de alguma hesitação, Davi percebe que precisa fugir da corte e passa a viver como um fugitivo, obtendo, por fim, asilo com o filisteu Aquis, a quem engana de modo impiedoso. Quando ocasionalmente Davi tem a oportunidade de erguer a mão contra o rei e, assim, melhorar sua situação, ele se contém pelo fato de Saul ser o ungido do Senhor. Não existe nada inerentemente improvável nesse enredo básico, ou há?

Em sua análise da carreira de Davi no exército de Saul, McKenzie acredita que “nessa seção de ISamuel, a perspectiva geral sobre Davi é historicamente crível”, com exceção “dos relacionamentos de Davi com membros da família de Saul”. Diante da afirmação bíblica de que Jônatas entregou sua capa, armadura, espada, arco e cinto a Davi (ISm 18.1-5) — gesto que indica que abriu mão do direito ao trono — McKenzie observa (conforme já mencionado) que “é difícil crer que Jônatas abriria mão de seu futuro como rei a favor de alguém que havia acabado de conhecer”. E “é difícil imaginar Jônatas se unindo a Davi numa conspiração contra o pai. Simplesmente não é possível acreditar que, por consideração a Davi, o príncipe herdeiro cederia seu direito ao trono”. McKenzie também fica intrigado com a relação artificial entre Saul e Davi. Embora ISamuel descreva Saul como alguém ciumento e paranoico, McKenzie está convencido de que “dificilmente o ciúme de Saul pode explicar toda a história”. Aliás,

Há no relato vários elementos que sugerem um a resposta diferente a essa pergunta. A primeira é o temor de Saul. M ais de um a vez a narrativa menciona que Saul tinha medo de Davi (18.12,15,19). Exatamente o que ele temia? A resposta fica clara com as palavras de Saul a Jônatas: “Pois enquanto o filho de Jessé viver sobre a terra, nem tu estarás seguro, nem o teu reino” (20.31). Saul tem e que Davi não o deixe estabelecer um a dinastia impedindo que Jônatas se torne rei. A forma que Davi faria isso seria ele próprio tornar-se rei. Isso, porém , não é tudo. O s relatos deixam claro que Saul receia não apenas o que poderá acontecer ao herdeiro, mas também a si próprio. E m outras palavras, seu temor é que Davi lidere um a revolta e o destrone.

Lendo “de modo inverso”, McKenzie especula que “o motivo principal para Saul perseguir Davi foi um golpe fracassado. Todos os ingredientes estavam presentes”. A narrativa bíblica oferece uma explicação totalmente diferente para o temor de Saul (i.e., ele foi rejeitado como rei e será substituído por alguém melhor do que ele). Por que, então, McKenzie prefere a teoria do golpe fracassado? È possível que parte da resposta tenha a ver com o que ele entende estar implícito no gênero da “apologia”: “por definição, uma apologia não é objetiva, mas procura transmitir uma ideia distorcida dos acontecimentos do passado e, em especial, das causas deles”. Com base nesse entendimento, visto que a narrativa bíblica claramente inclui uma “apologia” ou defesa de Davi, ela é distorcida por definição, e deve-se investigar o relato verdadeiro em alguma outra fonte. Acrescentem-se a essa visão geral os princípios de McKenzie sobre reconstrução histórica analisados anteriormente (analogia, cui bono etc.), e o resultado poderá ser conclusões bastante naturais e lógicas. Contudo, como já argumentamos, existe um perigo de reducionismo nos princípios de McKenzie. Será que o princípio da analogia, conforme ele o definiu — “pessoas de todas as épocas têm as mesmas ambições e instintos básicos” — não corre o risco de excluir da história todas as pessoas excepcionais que se comportam de forma excepcional? Será que o princípio do cui bono — “para vantagem de quem?”— não corre risco de deduzir que circunstâncias vantajosas nunca são meras ocorrências, mas, na verdade, são resultado das maquinações daqueles a quem, em última instância, elas beneficiam? (Nunca considerando o fato de que a explicação dada pelo próprio texto para as circunstâncias favoráveis a Davi é que “o Senhor estava com ele”; e.g., ISm 18.12,14,28). Interpretados em conjunto, será que esses princípios não podem sugerir, por exemplo, que pessoas em posição de poder sempre a alcançam da mesma maneira? O u que, se Saul tem medo de Davi, a causa disso deve ter sido o próprio Davi (e não alguma circunstância)? E claro que existe certa medida de verdade e bom senso nos princípios de McKenzie, e é provável que ele não endosse a apresentação geral que acabamos de fazer, mas é difícil evitar a impressão de que eles favorecem a teoria do golpe em detrimento da narrativa bíblica. Nossa posição é a de que a narrativa bíblica, na sequência e estrutura atuais, oferece uma explicação perfeitamente aceitável das reações díspares de Saul e Jônatas diante de Davi. Seguem-se algumas observações importantes.

Conforme indicado anteriormente, ISamuel 15 narra a rejeição definitiva do rei Saul. Depois de 15.28, Saul não é mais rei por direito, embora durante alguns anos continue sendo rei de fato. Ademais, Saul foi advertido de que certamente alguém “próximo” melhor do que ele o substituirá. Esse fato é suficiente para explicar seu ciúme e seu medo de Davi, em especial se ele se recusa a aceitar sua rejeição com a mesma humildade de Eli. Em vez de reagir como Eli, que disse: “Ele é o Senhor , faça o que bem parecer aos seus olhos”(lSm 3.18), Saul só se preocupa em se apegar ao trono: “o que mais lhe falta, senão o reino?” (ISm 18.8); “pois enquanto o filho de Jessé viver sobre a terra, nem tu estarás seguro, nem o teu reino; por isso, manda trazê-lo agora, porque ele morrerá” (20.31). Bem, essa foi a reação de Saul a Davi. Mas o que dizer de Jônatas? Se, como parece provável, Jônatas sabia que Saul havia perdido o direito ao trono para um “próximo” que havia de vir, não seria inteiramente plausível (se adotarmos uma abordagem que aceita o que é factível) que ele estivesse tentando descobrir quem era essa pessoa? Ele pode até mesmo ter começado a pôr de lado as prerrogativas de príncipe herdeiro antes de Davi aparecer de repente em cena em ISamuel 17. Um fato notável — embora raramente comentado — é que Jônatas não aparece em nenhum momento no capítulo 17. Onde está o corajoso guerreiro de ISamuel 14? Será que devemos de fato imaginar que, à semelhança de Saul e do restante de seus homens, Jônatas está se acovardando diante do gigante filisteu? O u será que não é mais realista supor que Jônatas está apenas permanecendo à distância, esperando que surja o “próximo”? Admitindo-se que Jônatas é alguém excepcional, um homem que revela tanta fé e caráter quanto Davi, nada é impossível, nem mesmo improvável, em seu desejo de abdicar em favor de Davi. Talvez a maioria das pessoas não faça isso, mas a narrativa bíblica, em especial o próprio Davi (2Sm 1.26), se empenha em afirmar que Jônatas não é como a maioria das pessoas.

Mas como era aquele jovem? Como ele pensava? Quais eram os seus receios, mesmo em meio à sua fé?

—– Retirado de: Iain Provan, V. Philips Long e Tremper Longman III – Uma História Bíblica de Israel.


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