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O Anel dos Nibelungos (Ato 3 – 6/6)

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VI – O despertar de Brunhilde

– Erda, desperte Erda!… Preciso muito falar com você!

É Wotan que, em seu disfarce de andarilho, chega à entrada de uma grande gruta.

O céu está tempestuoso e trovões misturam-se à sua voz austera.

– Erda, aproxime-se, preciso dos seus conselhos!

Wotan, normalmente sempre tão seguro e firme de sua vontade, agora parece um ser desorientado, quase um filho carente em busca de sua mãe. Ele entra na gruta e encontra a deusa da terra ainda deitada em seu leito. Ela está envolta em uma aura azulada e parece recém desperta de seu sono profundo; seu ar é quase o de uma sonâmbula. Durante o seu sono milenar, esta deusa sonha e, é através de suas profundas imagens, que ela medita.

– Quem vem perturbar o meu sono? – diz ela, numa voz soturna.

Ao seu lado, estão as três Nornas, deusas do destino: são elas Urd, que tem o conhecimento do passado; Werdandi, que tem a ciência do presente; e Skuld, que tem o dom de prever o futuro. Elas continuam a tecer, impassíveis, o destino dos deuses e dos homens.

– Erda, sou eu, Wotan, preciso de seus conselhos – diz o deus, aproximando-se do leito da deusa, que já está de pé.

– Por que não as consulta? – diz Erda, indicando as Nornas. – Tudo o que sei, é obra de suas mãos.

– Não, elas são fiandeiras de nossos destinos, mas não têm autoridade para dar conselhos; isto cabe a você, minha antiga amante e conselheira!

Wotan aproxima-se da deusa; seu semblante denota uma profunda insegurança. De repente, sua voz trêmula soa inquieta:

– Erda, como faço parar uma roda que gira sem cessar?

– Não o entendo – diz a deusa, que apresenta um aspecto cansado e emaciado. –

Wotan, desde que você me conquistou, minha sabedoria ficou ofuscada. Por que não dirige suas perguntas a Brunhilde, sua filha? Ela é tão sábia quanto eu e será capaz de responder qualquer pergunta que lhe queira fazer.

Wotan parece constrangido; seus olhos desviam-se do rosto da deusa e ele explica o motivo da impossibilidade de buscar conselhos junto à Brunhilde.

– Erda, eu puni minha filha…

– Puniu-a?… Por quê?

– Ela está presa a um rochedo, envolta por um círculo de chamas – responde Wotan, reassumindo um tom altivo. – Brunhilde teve a ousadia de me desobedecer. Seu orgulho a impeliu.

– Orgulho… Ousadia… Mas, se não estou enganada, estes são atributos seus, Wotan. Logo você, que deu sempre lições de ousadia, agora resolve punir a ousadia?

Censura o orgulho, que é o motivo principal de sua conduta?

– Erda, não preciso de suas censuras, mas de seus conselhos; por favor, diga-me o que devo fazer para controlar o destino meu e do meu mundo. Meu coração está ansioso, sinto que as coisas escapam a todo controle. Desde que Siegfried apossou-se do anel, o destino do mundo está entregue em suas mãos.

– Wotan, você precisa entender que não é mais aquilo que um dia pretendeu ser. O

dia do poder começa a anoitecer para você e para todos nós, deuses de uma era que, aos poucos, se encerra. Sim, Wotan, aos poucos, deixamos de ser o que éramos em antigas eras: nosso poder já fenece; nossa vontade já não é fator preponderante nas decisões deste mundo. Você, Wotan, está deixando, lentamente, de ter o poder absoluto sobre o bem e o mal, o certo ou o errado. Você não quer admitir, mas o seu tempo já passou, inexoravelmente. Agora, deixe-me retornar ao meu sono repleto de sabedoria.

– Não, não adormeça, preciso de sua sabedoria aqui e não no mundo dos sonhos! –

exclama Wotan, quase em desespero.

– Wotan, este seu desejo ingênuo de ser perfeitamente sábio em tudo é que reduziu o mundo ao estado em que ora se encontra; foi ele também que levou sua filha a jazer como morta no inóspito rochedo. Deixe-me voltar ao doce reino do sono; ele é o único reino onde podemos ser verdadeiramente sábios, sem que com isto se perturbe a tranqüilidade do universo.

– Você, ao que vejo, também já não é mais a mesma sábia de outrora – diz Wotan, percebendo o pouco resultado prático das palavras que saem da boca da deusa exaurida.

– Está bem, farei com que Siegfried permaneça com o anel; ele deverá buscar Brunhilde e, após encontrá-la, estará apto a desposá-la, tornando-se o novo senhor deste mundo.

Quanto a você, velha deusa, pode retornai’ ao seu sonho de destruição dos deuses.

Devemos, como você mesma disse, ceder passo à nova ordem.

Erda dá as costas a Wotan; consciente de que, agora, é pouco mais do que uma deusa decrépita muito longe daquela antiga divindade cheia de viço e energia que, um dia, entregou-se aos ardores de seu divino e viril amante – ela se encaminha, vagarosamente, de volta para a gruta para desfrutar do sono dos deuses.

Erda sabe, agora, bem como Wotan ou quantos deuses houver ou haverá de existir, que deus algum é capaz de criar um mundo à altura de sua própria sabedoria e que, definitivamente, mundos concretos não serão jamais perfeitos.

***

Wotan está outra vez sozinho; Erda, sua amante decrépita, já retornou (quem sabe para sempre) para o seio da terra. De repente, ele enxerga um pássaro pequeno de dourada plumagem, que surge por entre as árvores. O pequeno ser, após divisar a figura do andarilho, assusta-se e voa em outra direção, deixando Siegfried, que vem logo atrás, sem guia que o leve até o rochedo onde Brunhilde está.

– Pássaro, meu guia, onde está você? – grita o jovem.

Wotan-andarilho escuta aquela voz e detém os passos; sem saber direito o que fazer, decide esperar que Siegfried surja à sua frente – o que não demora a ocorrer.

Siegfried está procurando o pássaro, com a cabeça erguida, sem se dar conta da presença do andarilho. Wotan decide quebrar o silêncio:

– O que está procurando, meu jovem?

– Bom dia, andarilho – responde ele. – Procuro um pássaro dourado que estava me conduzindo até uma montanha cercada pelo fogo; uma donzela lá está encantada, aguardando que eu a desperte e a tome por esposa.

– Oh, parece uma história bastante excitante! – diz o velho, abrindo um largo sorriso.

– Mas quem lhe deu ordem para fazê-lo?

Siegfried explica os últimos episódios de sua vida em resumidas palavras. Wotan acompanha com toda a atenção.

– Eis, aí, a razão que me impele a buscar esta jovem que espero venha a ser minha futura companheira – diz Siegfried, com o olhar cheio de esperança.

– Você falou de uma espada com a qual matou o dragão…? – diz Wotan, fingindo grande curiosidade sobre aquele artefato.

– Sim, Notung! – diz Siegfried, sacando a magnífica espada. – Refundi-a, completamente, em uma nova espada com os fragmentos da antiga.

– Oh, que bela! – exclama Wotan, arregalando seu único olho. – Realmente bela! Mas quem fez a espada original?

– Ora, e o que importa? – exclama Siegfried, como se isto não lhe interessasse a mínima. – Só sei que a anterior se tornara inútil e fui capaz de refundir uma nova.

Wotan dá uma grande risada.

– Oh, magnífico!… Há! há! há!

– Do que ri, velho abusado? – exclama Siegfried, sentindo-se ofendido. -Se está aqui para me ajudar, faça-o; mas se vê em mim apenas motivo para diversão, modera a tua língua.

– Cuidado, rapaz! – diz Wotan, perdendo, momentaneamente, o seu bom humor. – Se sou velho, como diz, é isto motivo suficiente para que se dirija a mim com respeito, pois ainda é costume neste mundo se honrar os idosos!

– Honrar os idosos! Sei bem o quanto valem estes idosos aos quais se refere – diz Siegfried, lembrando-se do pérfido e traiçoeiro Mime. – Têm todos os defeitos dos jovens e mais o da astúcia, que lhes dá os muitos anos de experiência.

E esta agora! Nem bem saíra das mãos de um velho pérfido e já outro lhe surgia cheio de manhas e arrogância para estorvar o livre curso de sua juventude.

– Já lhe aviso, velho debochado, que se teimar em obstruir o meu caminho, acabará encontrando o mesmo destino daquele outro!

Ambos parecem prontos a se atracar; mas, quando Siegfried aproxima-se mais um pouco do andarilho, percebe que este é falto de um olho. Dando uma pausa à sua cólera, pergunta, então, ao velho caolho:

– Então, é por isso que usa este chapéu ridículo desabado sobre o rosto? Com certeza o perdeu, quando tentou barrar a passagem de algum outro viajante! Cuidado para não vir a perder o último que lhe resta!

– Basta, jovem atrevido! Você não é menos cego do que este olho que me falta!

Siegfried ri despudoradamente, sem procurar entender a insinuação do velho.

– Vamos, deixa-te de charadas e sai da minha frente, antes que me veja obrigado a fazê-lo.

– Se você soubesse quem eu sou pensaria duas vezes antes de cometer tais atrevimentos, esteja bem certo disto. Evite acirrar a minha ira, eis que isto acabaria por ser a ruína de nós dois.

Mas Siegfried não está interessado em saber quem é aquele velho excêntrico, mas quer afastá-lo e prosseguir sua jornada.

– Eia, velho cabeçudo, para longe! – diz, fazendo um gesto rude com a mão.

– Não, enquanto eu não quiser, não dará mais um único passo!

– Oh!, e quem é que vai me impedir, o vovô?

Mal sabe Siegfried que diz a mais absoluta verdade; Wotan, de fato, é seu avô, sendo pai de Sigmund.

– Seu tolo! – exclama Wotan, aceso em cólera. – Saiba que fui eu próprio quem a colocou para dormir naquela montanha rodeada de fogo! E que aquele que a libertar de seu castigo, roubará meu poder e virilidade!

Wotan empunha sua lança e aponta para o alto da montanha onde Brunhilde está oculta. Relâmpagos e imensas labaredas elevam-se no local onde a jovem está.

– Ótimo, é lá, então, que ela está!… – diz Siegfried, que, em momento algum, assustou-se com a demonstração de força e poder do velho. Wotan, a seu turno, convence-se de que é a este jovem audaz e intimorato que sua filha está destinada, eis que não teme sequer ao poder de Gungnir, a sua lança sagrada.

Siegfried segue adiante, mas o andarilho o detém com estas ameaçadoras palavras, esquecendo de tudo quanto prometera a Erda junto à caverna:

– Nem mais um passo, moleque atrevido! Foi com esta lança que parti a espada que agora carrega e que outrora seu pai, Sigmund, carregou funestamente! Se quiser seguir adiante, quebrarei-a outra vez e aqui será também o seu próprio fim!

Siegfried, ao invés de se intimidar, volta-se para o velho, todo aceso em ira.

– Ah!, aí está, então, o inimigo de meu pai!… Foi você, velho maldito, quem provocou a derrota dele!

Wotan ergue a lança, pronto a desferir o golpe que, imagina, irá destruir pela segunda vez a espada Notung; Siegfried, disposto a tudo, já traz a espada erguida e é ele quem faz o primeiro gesto de luta. Wotan ergue horizontalmente a lança com as duas mãos para aparar o golpe, mas o gume da Notung é tão violento, que uma chuva de raios explode para todos os lados, como se uma violenta explosão tivesse sido provocada pelo encontro das duas armas. Assim que a claridade e a fumaça dissipam-se, Siegfried descobre que é o vencedor: a lança de Wotan jaz partida em duas ao solo e o velho, desarmado, traz seu único olho voltado para os destroços de seu antigo símbolo de poder. Abaixando-se com dificuldade, apanha os restos de sua Gungnir e diz, desconsolado:

– Um dia Gungnir derrotou a Notung; hoje, mudadas as coisas, Notung derrota a Gungnir; tal é a marcha dos fatos, tal a instabilidade do mundo! – Depois, olhando para Siegfried, dá-lhe passagem.

– Vamos, passa – diz ele, com os dois pedaços da lança na mão. – Não posso mais impedi-lo.

O jovem, empunhando sua trompa, lembra-se da profecia que o indicava como o único homem capaz de atravessar o círculo de chamas que protege a montanha, “aquele que desconhecia o medo”. Siegfried, sem sequer dar um último olhar para o velho que acaba de derrotar, arremessa-se às chamas sem nada sentir e, num instante, elas refluem até adquirirem a textura de nuvens esfiapadas e inofensivas. O andarilho, finalmente, entendeu que o seu tempo acabou. Dá as costas à montanha, onde jaz sua filha Brunhilde, e desaparece na escuridão da floresta.

***

Siegfried levou o resto do dia para escalar a íngreme encosta, tendo sempre os olhos postos no topo da montanha. O jovem guerreiro, que tivera astúcia bastante para vencer um deus e um dragão, estava pronto, agora, para alcançar o prêmio maior da sua audácia. Tão logo alcançou o topo, viu, com efeito, os seus esforços serem plenamente recompensados: uma paisagem de sonho descortinava-se diante dos seus olhos.

Cercado por um círculo mágico de chamas douradas, cujas línguas subiam até quase tocarem o céu, estava o que parecia ser um guerreiro morto, deitado sobre uma longa rocha, com a cabeça escondida dentro de um belíssimo elmo e o corpo vestido por uma reluzente armadura.

“Quem será o guerreiro que aqui descansa?”, perguntou-se Siegfried, sem poder ainda atinar com o que, verdadeiramente, o esperava debaixo daquela armadura, pois jamais havia visto antes uma mulher. Mas seu coração, pela primeira vez, bate num ritmo estranho, descompassado. “O que se passa em meu peito? Que sentimento é este que invade meu coração e faz meus joelhos fraquejarem?”, pergunta-se sempre, enquanto tenta despojar o corpo que tem diante de si da sua armadura.

Siegfried retira primeiro o elmo, o que faz com que os cabelos dourados de Brunhilde caiam em ondas por sobre a cota reluzente. Um ricto de espanto desenha-se em seus lábios e é este mesmo sentimento que faz com que uma exclamação surda escape de sua boca.

– Este guerreiro é diferente de todos os outros!

Os prendedores da malha que mantém o peitoral preso resistem aos dedos de Siegfried, que decide usar sua espada para cortá-los logo fora, tal é a ansiedade que o domina. Tão logo consegue alcançar o seu objetivo e retirar a armadura, o jovem é tomado por uma vertigem, pois é a primeira vez que seus olhos pousam sobre o corpo de uma mulher. Assustado, Siegfried já pode, agora, dizer que sabe o que é o medo, um medo muito diferente de todos os outros, que o perverso anão lhe incutira na mente desde pequeno. Este sentimento, sem dúvida alguma, é também o medo, mas de outra natureza, posto que pode ser belo também. Sim, naquele corpo oculta-se algo que, dependendo das circunstâncias, pode vir a ser, ao mesmo tempo, a coisa mais bela na vida de um homem e também a coisa mais nefasta e destruidora: o amor por uma bela mulher.

Siegfried está atônito com o que vê: as formas, até então inéditas, do corpo de uma mulher estão ali à sua frente e ele não sabe o que fazer. O instinto vem em seu auxílio, ao enxergar com mais calma os lábios rubros da antiga valquíria. Impossível não se sentir atraído a depositar neles um beijo e tentar restituir a vida àquela que dorme.

Um longo beijo segue-se, ao cabo do qual Brunhilde reabre, lentamente, seus olhos; à princípio confusa, como quem emerge de um longo sono, a jovem aos poucos vai divisando melhor o rosto que tem diante de si.

– Quem é você?… – murmura num fio de voz.

Siegfried dá-se a conhecer, dizendo que é aquele que ousou atravessar as chamas apenas para poder despertá-la de seu longo sono.

Brunhilde, imediatamente, reconhece nele aquele que esperava.

– Sim, já o conhecia antes mesmo que viesse ao mundo! Salvei-o, junto com sua mãe, da ira daqueles que pretendiam destruí-los.

Apesar de estar feliz por ter sido, finalmente, retirada de seu longo exílio nas trevas por aquele jovem, que por tanto tempo aguardara, mostra-se, entretanto, reticente quando o herói dá as primeiras mostras de seu desejo, pois tendo-a beijado uma vez, nem de longe espera ter sido a última.

– Não, jovem impetuoso, contenha-se! – diz ela, recobrindo seu corpo da melhor maneira que pode. – Não devemos levar adiante nossos desejos.

Sem se dar conta, a ex-valquíria menciona já os seus próprios desejos. Para se ver livre dos anseios de Siegfried, Brunhilde conta toda a história de como veio a perder sua antiga condição de deusa para ser, a partir de agora, uma simples mortal. Siegfried, no entanto, faz pouco caso de seu discurso: mortal ou imortal, deusa ou humana, o fato é que seu desejo arde com cada vez maior intensidade. Ele a despertou, conforme a promessa, e, portanto, é sua noiva.

Agora, é Brunhilde quem sente seu coração tomado de temores, diante do medo de perder a virgindade, o último signo de sua antiga divindade.

– Não, Siegfried, não deve seguir este rumo! – exclama ela, alvoroçada.

– Como não poderia, se sou aquele que a profecia indica como seu futuro marido?

Você mesma assim o quis, lembra-se?

Brunhilde não tem mais forças para resistir aos apelos de seu salvador; a sua parte humana, agora, fala mais alto e ela cede, de uma vez, às carícias de Siegfried. Ela sabe que com isto está dando o primeiro passo para uma nova era – uma era na qual tudo mudará, os deuses conhecerão o seu fim e tanto ela, quanto Siegfried, mesmo perecendo junto com este velho mundo, viverão sempre um à luz do outro, onde quer que estejam, a sorrir diante da morte.

Fim do Terceiro Ato.

Continue lendo:

Quarto Ato


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