O palco da história do povo de Israel é a parte meridional do corredor siro-palestinense entre as antigas civilizações e potências situadas junto ao Nilo, na Mesopotâmia e na Ásia Menor. Em virtude de sua situação geográfica, esse corredor foi ao longo dos milênios um cadinho de influências políticas e culturais que, provindo de todas as direções, ali se encontravam e eram processadas. Estava destinada a transmitir ao Ocidente, pela via dos gregos, a herança do Oriente. Além dessa missão histórico-cultural, não produziu formações políticas autônomas em maior estilo. O corredor era e permaneceu uma região de interesses e objeto da política imperialista dos impérios. Só nas fases de enfraquecimento das potências externas conseguia, sempre passageiramente, ganhar um peso político próprio. Esse estado de coisas nos obriga a buscar, antes de entrarmos na história de Israel, uma visão panorâmica da situação histórica dos povos e dos estados do antigo Oriente Próximo na 2ª metade do 2º milênio a.C. Visões panorâmicas e prospectivas desse gênero acompanharão daqui por diante nossa exposição da história de Israel. Elas são mais necessárias ainda porque o historiador — seduzido pela extraordinária importância da Bíblia para a cultura e religião do Ocidente — poderá facilmente perder de vista um fato fundamental: que a história de Israel em época alguma poderá e deverá ser considerada isoladamente. Ela está entrelaçada na história do Oriente Antigo, sendo em todos os sentidos parte inseparável da mesma.
O grande tema histórico da 2ª metade do 2º milênio a.C. é o equilíbrio de forças entre os povos e estados do Oriente Próximo. Nesse período simplesmente não é mais possível investigar e expor a vida histórica própria dos povos situados junto ao Nilo, na Mesopotâmia e na Ásia Menor de forma isolada. O Egito, Mitanni, a Assíria, a Babilônia e o reino hitita da Ásia Menor saem quase que subitamente de seu relativo isolamento e aparecem como atores de um acontecimento que envolve todo o Oriente Próximo. Por este tempo o Oriente Próximo ingressa na era dos impérios, na época do imperialismo. Forma-se um sistema de impérios com focos e centros que se alternam. Os participantes do concerto das grandes potências procuram manter-se em equilíbrio quanto a suas forças, sua influência e sua expansão. O resultado é descrito da melhor maneira pelo conceito de “equilíbrio de poder” (balance of power), um conceito vivo e atuante na Europa desde o séc. 16.
Um dos principais pressupostos para a formação de um sistema de impérios e a expansão da política imperialista foi uma nova técnica de guerra: o emprego de cavalos atrelados a carros de guerra. O cavalo provavelmente provém da região de estepes do sul da Rússia, tendo chegado ao Oriente Próximo no decorrer da Ia metade do 2S milênio a.C. Ali foi primeiramente tido como raridade. O mérito de ter reconhecido e aproveitado sua utilidade para a técnica bélica, ao que tudo indica, cabe aos hicsos (“dominadores estrangeiros”): dominadores pertencentes a tribos estrangeiras provavelmente originárias, em sua maior parte, da Síria e Palestina, que se fixaram no Delta Oriental do Nilo aproximadamente entre 1730 e 1580 a.C. Seu centro estava localizado em Auaris (Tèll ed-Dab‘a). A partir dali dominaram, ainda que não de modo inteiramente inconteste, um Egito enfraquecido após a decadência do Reino Médio. Os hicsos se situam na última fase do chamado “ segundo período intermediário”. São contados (de acordo com Maneton) como 15a e 16a dinastia1. Conheciam o cavalo de suas terras de origem, e provavelmente foi só ao final de seu domínio no Egito que o incorporaram à sua técnica de guerra como animal atrelado aos carros de combate.
Os outros povos do Oriente Próximo seguiram esse exemplo rapidamente. Os carros de duas rodas, no começo ainda de construção leve, levavam duas pessoas: o condutor e um guerreiro armado com arco e lança. Parece que foram os hititas que pela primeira vez acrescentaram um terceiro homem, cuja função na batalha consistia em segurar o guerreiro por trás, para mantê-lo firme. No uso dos carros para fins pacíficos, ele tinha uma função mais decorativa (em hebraico: shalish, “ajudante” ). Devido à sua velocidade e mobilidade, inauditas para as circunstâncias da época, os carros de guerra podiam ser empregados de forma eficiente na marcha e na batalha4. Naturalmente a mera existência dessa arma não é o único pressuposto da política imperialista. Foram necessárias também transformações na estrutura dos exércitos e da administração. Os governantes dos países do Oriente Próximo formaram corpos de carros de combate, cujos integrantes constituíam uma espécie de nobreza de cavaleiros a serviço da coroa. Em tempos de paz esse corpo de cavaleiros (maryannu, maryannutu) podia ficar estacionado em diferentes partes do império, receber feudos dos bens da coroa e manter-se em prontidão para a guerra. O Egito deu o primeiro passo. Lá o domínio dos últimos hicsos, originários da Ásia Menor, era razoavelmente estável no Delta, enquanto que os principados do Alto Egito conquistavam progressivamente autonomia e poder, ainda que por ora permanecessem vassalos dos hicsos. O principal centro de poder era Tebas. A influência de seus governantes (17a dinastia) crescia constantemente. Os três últimos tinham o comando sobre os distritos do Alto Egito situados entre Elefantina e Abidos. Ao sul, seu território fazia fronteira com o Estado independente de Cuxe, cuja capital era Buhen, na 2a catarata do Nilo; ao norte, com o território de influência dos hicsos. As animosidades com os hicsos começaram sob o governo de Senaqtenre‘-Ta‘a II, e continuaram sem parar sob os governos de Kamose e de seu irmão Ahmósis, com o qual Maneton faz iniciar a 18“ dinastia. Sobre o desenrolar dos acontecimentos deste período somos suficientemente informados por documentos egípcios não muito numerosos, mas elucidativos. Kamose infligiu duros golpes aos hicsos e a seus aliados egípcios, chegando até os muros de Auaris. No entanto, foi só Ahmósis (1552-1527) que conseguiu tomar a cidade, expulsar os hicsos e repeli-los para a Ásia Menor. Por três anos ele sitiou um dos bastiões dos hicsos no sul da Palestina: Sharruhen (talvez Tèll el-‘Adjul ao sul de Gaza). Sob Ahmósis e seu sucessor Amenófis I (1527-1506)8 o Egito passou ao imperialismo: iniciava o Império Novo, que em inglês geralmente é chamado, com boas razões, de New Empire, em contraposição a Old e Middle Kingdom [“ Reino Antigo” e “ Médio” ]. Para não colocar em risco a recém-recuperada liberdade, os faraós da incipiente 18a dinastia se viram obrigados a avançar longe para dentro da Ásia Menor em sua perseguição aos hicsos. À expansão militar correspondeu uma reorientação da política interna. Tebas ia se firmando gradualmente como capital, e não menos crescia o prestígio do deus principal de Tebas, Amom. As propriedades rurais foram amplamente reestruturadas e redistribuídas em favor da coroa, dos militares e do deus Amom, que ascendeu à posição de segundo maior proprietário de terras depois do faraó. O reino de Cuxe foi subjugado9, e a pressão militar que o Egito exercia sobre o corredor siro-palestinense ficou mais forte.
Tutmósis I (1506-1494) chegou inclusive até o Eufrates e não deixou de celebrar devidamente esse fato numa inscrição na esteia de Tombos: “Ao sul seu limite chega até o começo da terra, ao norte até aquele rio que corre erradamente, que corre rio abaixo quando corre rio acima. Com outros reis nunca ocorreu algo semelhante. Seu nome alcança a amplitude do céu, chega até os confins da terra. Vive-se dele em todos os países, por causa da grandeza do poder de sua majestade. Não se pode ver (coisa igual) nos anais dos antepassados desde os servidores de Hórus.”
Tutmósis I, o primeiro faraó que ordenou que o sepultassem no “Vale dos Reis” em Tebas, também expandiu seu domínio ao sul até a região da 5a catarata do Nilo. Elevou Mênfis ao status de sua segunda residência e organizou um poderoso exército permanente. Assim, quase que por força da própria evolução dos fatos, por razões de autodefesa e movido por uma nova autoconfiança, o Egito chegou a formar um império. Naturalmente não foi de imediato que se conseguiu dar uma forma consistente a esse império, sobretudo nas partes situadas na Ásia Menor. E necessário acrescentar que nem mesmo mais tarde — e, a rigor, nunca — se conseguiu isso completamente. A Cuxe/Etiópia os egípcios sempre conseguiram, nas épocas de seu poderio, dominar muito mais facilmente. Será que, no caso do corredor siro-palestinense, as relações predominantemente pacíficas com essa região os impediam12? Em todo caso, os faraós se contentavam com uma soberania relativamente frouxa sobre os territórios subjugados na Ásia Menor. Fundamentavam sua hegemonia na dependência feudal dos pequenos dinastas ou príncipes siro-palestinenses que permaneciam no cargo como vassalos egípcios e eram obrigados ao pagamento regular de tributos13. Assim, ao mesmo tempo, deram início a uma considerável influência da cultura egípcia na Palestina e na Síria Meridional.
E lógico que essa ordem era ameaçada; ela tinha de balançar sempre que a pressão política e a presença militar egípcia diminuíam. E isso não demorou a ocorrer. Após a morte de Tutmósis II (1494-1490), sua esposa Hatshepsut (1490- 1468) assumiu inicialmente a regência em nome de seu enteado ainda menor, Tutmósis III, o sucessor no trono. Mas pouco depois ela mesma se fez faraó, assumindo a titulação de “rei do Alto e Baixo Egito” , usando o ornato régio e exercendo plenos poderes de governo, com o apoio de seu favorito Senenmut, que mais tarde acabou caindo, mesmo assim, em desgraça. Hatshepsut era uma princesa de paz. Seus interesses estavam voltados primordial- mente para a atividade da construção e as relações de comércio exterior. Foi ela que organizou a famosa expedição a Punt, o país do incenso, que está representada num alto-relevo numa parede de sua “ casa de milhões de anos”, o templo de Der el-Bahri. Ela consolidou o domínio egípcio na Núbia, mas negligenciou a Ásia Menor. Tutmósis III (1490-1436)16 ficou 22 anos à sua sombra. Após a morte dela, procurou apagar seu nome dos monumentos onde fosse possível. O legado que recebeu na política externa exigiu dele ações imediatas. Sua primeira campanha militar (1468) o levou à Palestina, onde, junto ao Orontes (Tell Nebi Mend’), se lhe opôs uma coalizão de dinastas de cidades-Estado cananeus e sírios, sob a liderança do “asiático miserável de Cades” . Venceu-os em Meguido e fez registrar os acontecimentos em seus anais (linhas 7-102) no templo de Karnak, de forma extremamente vivida e impressionante.
Nos anos seguintes, até cerca de 1448, apareceu quase que anualmente na Palestina e Síria, conquistando Cades, travando batalhas em Qatna (el Mishrife) e Alepo, alcançando e cruzando o Eufrates em Carquemis (Djerablus) sobre barcos que mandara construir na costa fenícia e transportar terra adentro em carroças de bois. Mencione-se como curiosidade que nessa região tão distante do Egito ele, como alguns de seus antecessores, gostava de se dedicar à caça de elefantes. No regime de vassalagem dos pequenos principados e domínios de cidades-Estado subjugados ele não mudou nada. Na sétima campanha militar implantou bases para a armada nos portos da costa palestinense: em Gaza, Jafo, Dor (el-Burdj junto a et-Tantura) e no Ras en-Naqura — e talvez se possa prolongar a linha ainda mais para o norte19. Transferiu parcelas nada desprezíveis de terras junto à costa para os deuses egípcios, i. é, para os sacerdotes de seus templos. Ainda não sob Tutmósis III, porém mais tarde, foram instaladas bases militares também no interior, se bem que com guarnições egípcias menos numerosas20. Atrás de tudo isso estavam a vontade de dominar os territórios conquistados, o poder combativo do exército egípcio e a energia do faraó, que exibia aos pequenos príncipes siro-palestinenses o que significava a presença egípcia.
Tutmósis III chegou até o Eufrates, mas dali não passou. Isso tinha seus motivos. E que na Alta Mesopotâmia havia se formado uma segunda grande potência que temporariamente era poderosa o suficiente para servir de contrapeso à expansão egípcia: o reino de Mitanni-Hanigalbat com a capital Washukanni no Alto Habur, cuja população hurrita de origem tribal estrangeira já havia vindo alguns séculos antes das montanhas do noroeste do Irã para a Mesopotâmia Setentrional. Infelizmente não existem muitas informações sobre a história do reino de Mitanni21. A união política de domínios hurritas a princípio diferentes ocorreu provavelmente sob Shuttarna na 2a metade do séc. 16 a.C. A fraqueza temporária do reino hitita da Ásia Menor possibilitou que o reino de Mitanni se estendesse até a Síria Setentrional e Central. Aí os hurritas toparam com o Egito em expansão. Em direção ao leste os assírios os limitaram a seu território de origem em ambos os lados do Tigre Superior. Desde o séc. 16 encontram-se dinastas indo-arianos nas camadas de liderança; pertenciam a grupos dispersos da migração dos povos indo-germânicos que vieram para a Ásia Menor e para as regiões montanhosas orientais contíguas. Em meados do séc. 15 Mitanni era, sob o rei Shaushatar, a maior potência do norte da Ásia Menor. Tutmósis III percebeu que politicamente não seria sábio aspirar ao domínio mundial a qualquer preço. Por volta de 1448 uniu-se com Mitanni, desistiu de uma expansão maior e firmou um tratado formal, no qual se delimitavam mutuamente os territórios de influência de ambos na Síria Central. Desse modo, o primeiro tema do equilíbrio de forças era: Egito e Mitanni.
Nas décadas seguintes do séc 15 a.C. o equilíbrio se alterou, ficando ligeiramente desfavorável ao Egito. Amenófis II (1438-1412) empreendeu várias campanhas militares em direção à Asia Menor23; poder-se-ia dizer: com certa obstinação, pois as fronteiras de Mitanni não eram nada seguras e os vassalos siro-palestinenses eram pouco confiáveis. Amenófis aceitou presentes de Mitanni, dos hititas e da Babilônia; as relações diplomáticas funcionavam sem atritos. Mas parece que ele teve de recuar um pouco as divisas da zona de influência do Egito em relação a “ Naharina” (= Mitanni). Ao retornar de uma de suas campanhas militares capturou na Planície de Sarom ao sul do Carmelo um mensageiro mitânico com cartas conspiratórias — um mau sinal para a estabilidade do equilíbrio!
Pouco se sabe sobre as atividades de Tutmósis IV (1412-1402) na Ásia Menor. Precisou reconquistar Gezer (Tell Djezer), deve ter tido também disputas com Mitanni e firmou um novo tratado, segundo o qual a linha divisória passava entre Cades no Orontes e Qatna. A nível internacional o desempenho do Egito não era mais tão bom. Tutmósis IV teve de solicitar e insistir nada menos do que sete vezes até que Artatama de Mitanni lhe mandasse uma princesa para seu harém. Internamente, porém, o poder do faraó continuava inabalado: governava sem restrições e escolhia seus conselheiros a seu talante e gosto. Sob os tutmosidas os dois vizires do Alto e Baixo Egito, teoricamente os mais altos dignitários civis depois do rei, eram não muito mais do que chefes da administração. E verdade que crescia a rivalidade entre o poder secular e os sacerdotes — econômica e politicamente cada vez mais fortes — do deus real Amom de Tebas, mas ainda era possível mantê-la sob controle. Na I a metade do séc. 14 a.C., o chamado período de Araama, o controle militar dos egípcios sobre os territórios subjugados se extinguiu quase completamente.
Amenófis III (1402-1364), amante da paz e da magnificência, não empreendeu nenhuma campanha militar; bastava-lhe a declaração de fidelidade dos pequenos príncipes vassalos, combinada com a entrega dos tributos e a deportação de mão-de-obra para os projetos de construção do rei25. Entre a Etiópia e a fronteira mitânica aparentemente reinavam paz e tranquilidade. As relações internacionais se refletiam no harém real, onde as integrantes estrangeiras tidas como mais proeminentes eram as duas princesas hititas Giluhepa e Taduhepa. Amom, deus do reino, tomava-se cada vez mais poderoso. Como contrapeso Amenófis III favorecia Mênfis e Heliópolis; mas manter sob as rédeas o poder de Amom começava a custar esforço. Sob Amenófis IV Ecnaton (1364-1347), o consorte de Nofretete, o Egito aproximou-se da catástrofe tanto na política interna quanto na externa. Da existência de elã militar, então, definitivamente já não se podia mais falar26. Às custas da estabilidade interna e externa do império, o faraó se dedicava à sua obra de reforma religiosa: desentendeu-se com Amom, cultivava a teologia de Atom, o deus do disco solar — uma religião monolátrica de popularidade duvidosa — , inaugurou a prática de uma arte “ naturalista” fascinantemente peculiar e, por fim, retirou-se de Tebas para sua nova capital “ Horizonte de Atom” (Tell el Amama), próxima de Hermópolis, construída às pressas. Ali voltou seus pensamentos menos para o reino do que para a religião.
Enquanto isso a situação política, sobretudo na Ásia Menor, ia ficando perigosa. E bem verdade que o reino de Mitanni já havia perdido algo de seu poder e influência na época de Amenófis III. Em compensação, duas outras novas potências haviam se destacado no horizonte político, com vocação para assumir a herança mitânica: o Novo Reino Hitita e o Reino Assírio Médio. O hitita Shuppiluliuma I (1370-1336) venceu Mitanni sob o rei Tüshratta, conquistou a capital Washukanni e estendeu a esfera de influência hitita para além da Síria Setentrional até o Líbano e Cades27. No Tigre Superior, sob Ashuruballit I (1364-1328) a Assíria recuperou sua autonomia e avançou igualmente sobre território mitânico. O Reino Assírio Médio se fortaleceu, tornando-se uma potência. Ajeitou-se com os hititas, lutou contra os povos montanheses do norte e do leste e manteve a Babilônia cassita num estado de relativa insignificância política28. Desde meados do séc. 14 a.C., então, o segundo tema do equilíbrio de forças era: Egito — Hatti — Assur.
O resultado desse desenvolvimento pode ser conhecido com base numa singular coletânea de documentos: o arquivo de tabuinhas de argila, redigido em língua acádica e cuneiforme, de Tell el Amama, o campo de ruínas da residência de Amenófis IV Ecnaton29. Trata-se da correspondência diplomática dos governantes de Mitanni, dos reinos hitita, assírio e babilônico e dos pequenos dinastas siro-palestinenses com os faraós Amenófis III e Amenófis IV Ecnaton. Essa troca de cartas retrata com surpreendente vivacidade a situação política reinante no começo do segundo período do equilíbrio de forças. Evidencia-se que, rangendo os dentes, os reinos do Oriente Próximo — Egito, Hatti, Assur, no início ainda Mitanni, e também a Babilônia — se reconheciam mutuamente como detentores de direitos iguais. Seus governantes usam o tratamento “ irmão” , trocam presentes entre si e exercem uma política internacional de casamentos. Percebe-se que o Egito mantém certa prioridade econômica e moral, se bem que não no nível do poder político. Esta prioridade depende não só, mas também, do fato de que os potentados do Oriente Próximo cobiçavam o ouro egípcio. Isso se aplica em especial — e de forma bastante indigna — aos cassitas da Babilônia, sempre empreendedores de obras.
Por outro lado, depreende-se das cartas dos vassalos siro-palestinenses que a falta de qualificação militar por parte dos faraós produziu amargos frutos. Crepitam as vigas do império neo-egípcio: a organização imperial egípcia na Ásia Menor31 encontra-se em plena dissolução. Apoiados pelas potências, que escrevem cartas fraternais ao faraó, aventureiros se disseminam, arrancando do Egito parcelas consideráveis de seu território na Ásia Menor e lançando tochas incendiárias no sistema siro-palestinense de pequenos estados. Os vassalos mandam cartas hipócritas de submissão a Tebas ou a “ Horizonte de Atom” (Tèll el Amarna); outros, desesperados, imploram sem êxito por socorro militar contra usurpadores, hapiru, nômades sutu e sabe-se lá quem mais. Mais a época de Amarna não poderia ter durado! Ela não durou mais muito. O general Haremhab (1334-1306) subiu ao trono egípcio e acabou com a rápida sequência de fracos sucessores de Ecnaton. Pode-se considerá-lo o verdadeiro fundador da 19a dinastia, já que aquele que posteriormente seria Ramsés I, com quem costumeiramente se faz iniciar essa dinastia, foi durante longos anos seu vizir, sendo, desse modo, o segundo homem no império e também o sucessor designado para o trono. De início Haremhab tentou reorganizar e pacificar o Egito internamente. Decretou leis contra o abuso do poder, dedicou-se à reorganização dos negócios do templo e devolveu a Amom de Tebas seus antigos direitos. Ficou claro que seria desnecessário agir com violência contra a religião de Atom; de qualquer maneira ela só gozava de pouca aceitação entre o povo. Haremhab girou o leme em direção à ordem e à religião estatal. Na Ásia Menor esteve militarmente presente, e conseguiu — ao que parece — manter a Palestina até certo ponto sob controle. Na Síria, entretanto, não obteve nenhum êxito digno de menção contra o hitita Murshili II, o sucessor de Shuppiluliuma I.
Ramsés I (1306-1304), filho de um simples capitão dos arqueiros do Delta Nordestino, ao subir ao trono já era um homem velho, falecendo em seguida. Mas seus dois sucessores, Sethos I (1304-1290) e Ramsés II (1290-1224), conseguiram mais uma vez sustar o desmoronamento do império e restaurar o poder do Egito na Ásia Menor. Aí as relações de poder entrementes haviam mudado consideravelmente. O reino de Mitanni-Hanigalbat se despedaçara definitivamente; seus restos aparecem inicialmente como Estado vassalo dos hititas, depois dos assírios. Sob os sucessores de Ashur-uballit I a Assíria ainda tocava no concerto das nações, mas só como acompanhamento: suas forças estavam amarradas por infindáveis lutas contra os povos montanheses do norte e do leste e contra a Babilônia cassita. A potência hegemônica era agora o Novo Reino Hitita com a capital Hattusha (Boghazküi) dentro da curva do Halys. Os hititas submeteram toda a Síria Setentrional e partes da Síria Central à sua soberania e se tomaram finalmente o único adversário dos egípcios digno de menção na Ásia Menor. Administrativamente o império hitita estava estruturado de forma flexível, à semelhança do egípcio: contentava-se por via de regra com a vassalagem dos pequenos príncipes autóctones. Em territórios politicamente importantes, porém, instalava secundogenituras, i. é, ocupava os tronos com príncipes da casa real hitita.
Era de se esperar que o Egito, que sob os primeiros faraós da 19a dinastia de novo se tornara expansionista, acabasse entrando em conflito com o reino hitita. Logo em seu primeiro ano de governo, Sethos I fez uma expedição até a fronteira setentrional da Palestina e para além dela; duas esteias que deixou em Bete-Seã (Tell el Hõçn junto a Besan), das quais estão conservados fragmentos, mencionam Bete-Seã, Jenoam, Pela e Hamate (Tell el-Hamme). Nos anos seguintes não apenas lutou na Núbia e contra os líbios, mas apareceu diversas vezes no corredor siro-palestinense, tomou medidas de proteção para os portos mediterrâneos e tentou pôr o interior gradualmente sob o controle egípcio. Seus sucessos contra os hititas foram localizados e temporários. Conseguiu tomar Cades no Orontes, mas não houve um equilíbrio de poder duradouro com os hititas.
A decisão só aconteceu no reinado inusitadamente longo — 66 anos! — de Ramsés II. Em seu sexto ano (1285) ele foi de encontro às tropas hititas sob o rei Muwatalli junto a Cades. Sobre a concentração das tropas e o desenrolar da batalha estamos muito bem informados através de textos egípcios de gêneros diversos37. Estando equiparadas as forças de ambos os adversários, nenhum deles saiu da confrontação como vencedor indiscutível. O fato de o famoso poema egípcio sobre a batalha de Cades38 se esforçar para colocar Ramsés II como vitorioso e não poupar elogios à sua bravura pessoal também não muda nada nisso. Na realidade os egípcios e os hititas se desgastaram mutuamente e não obtiveram mais do que um armistício forçado. Também depois desta batalha, Ramsés II ainda teve de intervir repetidamente na Palestina e na Síria39. Só em 1270 chegou-se a um acordo de paz entre Ramsés II e o rei hitita Murshili III. Ambos celebraram um tratado, cujo original estava redigido em escrita cuneiforme sobre uma placa de prata e do qual estão conservadas uma cópia hitita em tabuinha de argila e duas traduções egípcias40. Infelizmente a divisa entre os territórios de influência dos egípcios e dos hititas não está descrita com precisão no tratado; provavelmente passava na altura do Rio Eleuteros (Nahr el-kebir) na Síria Central. Com isso o terceiro e último tema do equilíbrio de forças era: Egito e Hatti.
Por volta de 1200 a.C. o sistema de impérios da 2a metade do 2- milênio desmoronou de forma relativamente rápida, se bem que não inesperada. O impulso para isso veio com a chamada migração dos povos do mar, que desde o séc. 13 aflui para as regiões da periferia ocidental do Oriente Médio, por água através do Mar Mediterrâneo e por terra através da Ásia Menor. Os povos do mar, que de forma alguma eram sempre grupos coesos entre si, provinham principalmente das ilhas do Mar Egeu, em parte talvez também dos Bálcãs. Ante seu ímpeto, conjugado com a pressão dos frígios e de outras populações da Ásia Menor Ocidental, o Novo Reino Hitita sucumbiu.
A muito custo Tuthaliya IV (aproximadamente 1250-1220) e Arnuwanda III (aproximadamente 1220-1205) conseguiram ainda conjurar a ameaça. Shuppiluliyama (aproximadamente 1205-1200) vivenciou o fim: a perda definitiva de amplas parcelas de seu território, a conquista de Chipre (Alashia), a ruína de Ugarit (Ras esh-Shamra), o colapso de toda a ordem real hitita na Síria Setentrional e Central, o incêndio e a destruição da capital Hattusha.
Também para o império egípcio os povos do mar se tornaram perigosos. Já Merenptah (1224-1204), o décimo terceiro filho de Ramsés II, teve de se ver com eles. Na Ásia Menor ele ainda colheu os frutos da política de seu pai, mas no oeste ameaçava o perigo líbio: a tentativa em grande estilo de uma invasão líbia do Delta, que o faraó conseguiu rechaçar brilhantemente. Como aliados dos líbios aparecem grupos de povos do mar cuja identificação com populações posteriores é provável, mas não completamente assegurada: Lukka (líquios), Shirdana (sardenhos), Akawasha (aqueus), Tursha (tirsenos, etruscos) e Sheklesh (sicilianos). A pressão continuou no período obscuro do fim da 19a dinastia (1204-1186), caracterizado por disputas em tomo do trono e lutas internas. O fundador da 208 dinastia, Sethnacht, provavelmente um oficial como Haremhab a seu tempo, só governou por dois anos (1186-1184). Seu filho, porém, Ramsés III (1184-1153), um admirador de Ramsés II, conseguiu conjurar mais uma vez o perigo em batalhas difíceis por terra e por mar. Combateu de novo os líbios no oeste e grupos de povos do mar no leste do Delta do Nilo, mas sobretudo povos do mar no Mar Mediterrâneo. Ele travou a primeira batalha naval conhecida na história e mandou representá-la em imagens e palavras nas paredes de seu templo funerário em Medinet Habu. Ramsés III realmente logrou manter afastados os povos do mar do território egípcio e conservar, ao menos teoricamente, a soberania egípcia sobre a Palestina49. Provavelmente foi vítima de uma revolta.
Sob os ramessidas posteriores — Ramsés IV até Ramsés XI (1153-1070) —, porém, o Egito foi completamente reduzido à terra do Nilo, perdendo todo o seu território de influência na Ásia Menor. Suas forças políticas e militares estavam esgotadas. O último vestígio palpável da presença de contingentes de tropas egípcias na Palestina é o pedestal de uma estátua de Ramsés IV, de Meguido. Com isso acabou definitivamente o complicado sistema que durante meio milênio determinara a história do Oriente Antigo em geral e do corredor siropalestinense em especial. Esse desenvolvimento naturalmente não deixou de ter consequências para o corredor. Com o ocaso do reino hitita e com a extinção da hegemonia egípcia surgira aí, por assim dizer, um espaço vazio em termos de poder político. A história, no entanto, não tolera nenhum vácuo. A partir do momento do término do equilíbrio de forças no Oriente Próximo os territórios situados entre os blocos de poder tornaram-se historicamente relevantes e capazes de produzir formações políticas próprias — por certo não de imediato, mas potencial e tendencialmente. Tal possibilidade foi promovida pelo afluxo e surgimento de novos elementos populacionais, e por fim efetivada pelos filisteus e arameus.
Os filisteus: Sobre a origem do grupo de povos do mar conhecido como filisteus (em egípcio plst, escrito prst; em acádico: palastu, pilistu; em hebraico: pelishtim) não se sabe nada de exato. O AT repetidamente os põe em relação com Caftor = Creta (em egípcio: Kftyw, aproximadamente Keftiu): Gn 10.14 (texto corrigido); Dt 2.23; Am 9.7; Jr 47.4; 1 Cr 1.12 (texto corrigido); cf. também 1 Sm 30.14; Sf 2.5; Ez 25.16; e a designação “krethi e plethi” (cereteus e feleteus) usada para referirse aos soldados do rei Davi’. De fato, indícios históricos e arqueológicos apontam para o conjunto de ilhas do Mar Egeu e para a Asia Menor Ocidental. E incerto se originalmente provieram mesmo dessas regiões — da Cária, por água através de Creta e por terra ao longo da costa da Asia Menor — ou se sua terra natal original foram os Bálcãs (Ilíria?). A primeira menção dos filisteus em inscrições situa-se no oitavo ano de governo de Ramsés III (1177), que os derrotou junto com seus acompanhantes, os tkl (escrito tkr), na Síria, na costa fenícia ou na Palestina Setentrional. Enquanto que os tkl permaneceram na costa fenícia até o Carmelo, os filisteus avançaram em direção ao sul. A ocupação da terra na planície litorânea do sul da Palestina por parte dos filisteus fazia parte, ao que tudo indica, da política de defesa ramessida contra a movimentação dos povos do mar em terra, cuja pressão não diminuíra nem mesmo após os sucessos logrados por Ramsés III. Talvez já o próprio Ramsés III, ou o mais tardar um de seus primeiros sucessores, tenha assentado os filisteus na planície litorânea entre o Nahr el-‘Odja e o Wadi Gazze como colonos militares dos egípcios, na esperança de que constituíssem um baluarte contra outros grupos de povos do mar que pressionavam a partir do norte. Essa esperança não foi uma ilusão. Tratava-se de um território no qual, desde meados do 2a milênio a.C., quase não se conhecem sedes de senhorio cananeus autóctones, mas sim “ propriedades da coroa” egípcia, i. é, localidades submetidas à autoridade imediata dos faraós, como p. ex. Gaza e Ascalom, ou domínios do deus real Amom. Ali os filisteus logo formaram uma aliança política de cinco cidades, uma pentápole, formada pelas cidades de Gaza (Gazze), Ascalom ( ‘Asqalan), Asdode (Esdud), Ecrom e Gate. A parte setentrional da planície litorânea até o Carmelo ou outros territórios da Palestina não lhes pertenciam, mas também o interior sentia os efeitos do domínio filisteu. A função dos filisteus como cinturão protetor naturalmente não conseguiu sustar o declínio do Egito ramessida. Quando os egípcios não estavam mais em condições de intervir na Palestina, os filisteus se sentiram herdeiros naturais e legítimos da hegemonia egípcia: um processo que se pode observar também em outros casos de colonos militares. No período que se seguiu, os filisteus dispenderam esforços para traduzir essa pretensão teórica em relações de poder reais e pôr também a região montanhosa da Palestina Central sob seu controle a partir da planície litorânea58. Nisso tiveram sucesso só em parte e só temporariamente, porque não eram o único elemento populacional novo a tentar preencher o vácuo de poder na Palestina.
2. Os arameus: De uma tomada da terra pelos arameus não se pode falar no mesmo sentido que no caso dos filisteus60. Documentados por inscrições pela primeira vez sob Amenófis III (1402-1364), e depois sob Tiglate-Pileser I (1115-1076) como aramu, os arameus não eram um grupo populacional homogêneo. Seria melhor não falar mais, como era corrente até há algum tempo, de uma “ onda de povos arameus” que passou do deserto siroarábico para as terras cultiváveis do Crescente Fértil. O surgimento dos arameus está relacionado primordialmente com reestruturações de camadas populacionais e mudança nos papéis sociais dentro das terras de cultura, embora não se exclua a hipótese da chegada de grupos nômades das regiões de estepe e deserto; pelo contrário, ela é muito provável. De qualquer maneira, aos arameus pertenciam os amonitas, moabitas e edomitas da Transjordânia — e aquelas tribos que sob o nome de Israel posteriormente se estabeleceram e se tornaram sedentárias sobretudo na Cisjordânia. Na região montanhosa, toparam com os filisteus, e os filisteus com eles: um conflito da mais alta relevância histórica, que, por fim, levou à formação do Estado israelita.
—– Retirado de: Herbert Donner – Historia de Israel e dos povos vizinhos, vol.1.
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