Separação, agregação e estruturação

A formação de um povo não é um acontecimento da natureza, mas um processo histórico que se baseia no nível da consciência das pessoas e dos grupos de pessoas que dele participam. Pessoas de origem e característica diversas conscientizam-se dos elementos que têm em comum, seja lá em que consistam: em destinos comuns, língua e cultura comuns, religião comum. Querem agregar-se, e rejeitam a outros que não fazem parte ou que não devem fazer parte. Esses processos de assimilação e dissimilação deixam rastros na consciência do povo que se formou. É de se esperar que tais rastros encontrem expressão na tradição do povo.

No que se refere a Israel, o AT de fato contém respostas para a pergunta pelo distanciamento em relação a pessoas e grupos de pessoas estranhas e pela ligação com as aparentadas ou afins. Trata-se, porém, de respostas que — outra coisa não era de se esperar — estão revestidas pelo manto da saga ou do extrato de saga na forma de notas e listas. Faz parte da essência da saga reduzir e retratar simplificadamente desdobramentos e constelações históricos complicados. Por isso as afirmações que Israel faz de si mesmo sobre esse tema se apresentam como afirmações sobre as relações de parentesco, de amizade e de inimizade de seus pais. O caminho percorrido pela tradição da saga é o seguinte: cada grupo de pessoas, cada povo, cada comunidade humana, seja lá que características tiver — inclusive o próprio Israel — é feito remontar a um ou mais ancestrais fictícios. Se tiverem o nome do grupo que representam, esses patriarcas se chamam epônimos. Esse procedimento oferece a possibilidade de apresentar o parentesco dos povos e das comunidades entre si e suas distinções de outros na forma de genealogias dos ancestrais e de narrá-los em sagas de amizades e inimizades dos pais.

Por trás disso está o pensamento genealógico, profundamente enraizado na Antiguidade, em especial na Antiguidade oriental: o interesse de compreender e de representar plasticamente as macrorrelações humanas em analogia às microrrelações humanas. Trata-se de um enfoque microcósmico do macrocosmo do mundo das nações e das pessoas, uma redução ingênua e irrefletida da multiplicidade de fenômenos e processos históricos. Sobre o modo de pensar dos povos do Oriente Antigo, e com isso também sobre o de Israel, pesa a obrigatoriedade da associação das famílias e dos clãs. Ela determina sua consciência e faz com que acontecimentos históricos complicados apareçam de forma simples como reprodução, amizade e inimizade.

Ao passar em revista as tradições veterotestamentárias que entram em questão sob esse aspecto, primeiramente se destaca o fato de que Israel quer ter o menos possível a ver com a população cananeia da Palestina. Isso já ensina uma olhada para a “tabela dos povos” em Gn 10, que tem por objeto a reconstrução de uma humanidade estruturada conforme nações, países e cidades após a catástrofe do dilúvio. A renovação da humanidade é compreendida como resultado da reprodução do herói do dilúvio Noé e de seus três filhos Sem, Cão e Jafé. Sem gerou Elão, Assur, Arfaxade, Lude e Arã. Cão gerou Cuxe (= Etiópia), Mizraim (= Egito), Pute (= Líbia) e Canaã; Canaã, por sua vez, gerou Sidom, Hete, os jebuseus, amorreus, girgaseus, heveus, arqueus, sineus, arvadeus, zemareus e hamateus. Jafé gerou Gômer, Magogue, Madai, Javã, Tubal, Meseque e Tiras. A estruturação esquisita do mundo dos povos em três grandes grupos, apresentada pela tabela dos povos, cujos detalhes complicados não podemos considerar aqui, tem seu fundamento não na coesão linguística ou étnica dos membros (A. Schlõzer, G. A. Eichhom), mas na situação histórico-geográfica do Oriente Próximo antigo no final do 2a milênio a.C.4. Cão representa o Império Novo egípcio, Jafé, as populações do norte no território do Novo Império hitita que ruiu por volta de 1200 a.C., e Sem, os povos da Mesopotâmia e de parte do espaço da Síria Setentrional e Central, que no oeste haviam se infiltrado qual cunha entre as áreas de influência das antigas grandes potências. Assim se toma compreensível que Canaã apareça entre os filhos de Cão; na 2a metade do 2″ milênio a.C. a Palestina estivera sob hegemonia egípcia. Israel não consta na tabela dos povos; mais tarde se trata genealogicamente dele de tal modo que se reconhece Sem como seu ancestral (Gn 11.10-26 P). Do fato de ter-se apropriado dessa lista originalmente políticogeogrãfica se depreende que Israel não se sentia parente mais próximo dos cananeus do que o são todas as pessoas, i. é, pelo caminho que passa por Noé. Da tabela dos povos resulta um mínimo de comunhão e um máximo de separação entre Israel e Canaã.

Um quadro semelhante se obtém ao observar-se a saga de Gn 9.18-27 J5. Conta-se que após a grande inundação Noé se tornou viticultor. Certa vez, bêbedo, estava deitado nu em sua tenda. Seu filho Canaã o observou nessa situação e talvez tenha feito algo mais do que isso; o texto, formulado muito recatadamente, não o permite perceber com segurança. Em seguida os irmãos de Canaã, Sem e Jafé, acorreram apressadamente e, observando todas as regras do bom comportamento, cobrem a nudez do pai. Depois de acordar da embriaguez, Noé destina de forma desigual maldição e bênção a seus filhos:

(25) Maldito é Canaã, será o escravo mais baixo (‘ebed ‘abadim) de seus irmãos! (26) Abençoado é Javé, o Deus de Sem; Canaã, porém, deverá ser seu escravo! (27) Espaço amplo crie Deus para Jafé, de modo que more nas tendas de Sem; Canaã, no entanto, deverá ser seu escravo!

E evidente que aqui os filhos de Noé não aparecem como antepassados originais da humanidade toda, como na tabela dos povos. O papel de escravo que é atribuído a Canaã em contraposição a Sem e Jafé não combina com a classificação — isenta de paixão — dos povos em Gn 10. Os três filhos de Noé são, antes, representantes de populações que num dado momento conviveram lado a lado num mesmo território. Sem é Israel; a ele é consignado o direito de posse e de domínio no país. Canaã é epônimo dos cananeus; a ele se anuncia o fim da fraternidade; ele se torna escravo, súdito. Jafé representa os filisteus; vive como hóspede sob a proteção legal de Sem. Não é fácil dizer que circunstâncias a saga retrata. Pensou-se na situação geral da Síria e da Palestina na época da tomada da terra pelos israelitas (Hermann Gunkel, Otto Procksch e outros); mas não se pode afirmar que, ainda em formação, Israel tenha subjugado os cananeus. Que tenha sido a chamada época dos Juizes, na qual talvez pudesse ter se formado uma pretensão ao menos teórica de hegemonia de Israel em relação aos cananeus, é pouco provável, uma vez que nela começaram os conflitos bélicos com os filisteus (Jz 13-16). A época da formação do Estado fica excluída completamente por causa das lutas com os filisteus. O mais provável é o período mais antigo dos reis depois de Salomão. O mais tardar sob Salomão as cidades-Estado cananeias foram privadas de sua autonomia política e incorporadas aos reinos de Israel e Judá6: Canaã é escravo de Sem. Os filisteus, ao contrário, que haviam sido subjugados por Davi (2 Sm 8.1), recuperaram sua independência na época dos reis após Salomão e conviveram, a partir daí, mais ou menos pacificamente com Israel: Jafé é hóspede sob a proteção legal de Sem. Que, por fim, Canaã seja escravo também de Jafé poderia estar ligado ao fato de que nas cidades a população cananeia sedentarizada estava sujeita à elite dominante dos filisteus.

Em todo caso, Israel desenvolveu e manteve um forte sentimento de estranheza em relação aos cananeus. Isso tem diversos motivos e expressões. Um papel significativo certamente desempenham aí a estranheza e a hostilidade frente à cultura urbana cananeia, que já deixara para trás o auge de seu florescimento na Idade do Bronze Médio, mas ainda era herdeira de uma rica tradição e portadora de uma civilização notável. Ligado a isso está o desprezo dos livres para com a estratificação social existente nas cidades, para com sua estruturação em aristocracia e população de subalternos semi-livres. Isso seria bem compreensível sobretudo no caso de que entre os grupos dos quais se formou o Israel mais antigo se encontrassem também elementos socialmente rebaixados, provindos das cidades dos cananeus7. Além disso, poder-se-á pensar no medo que os israelitas tinham da técnica cananeia dos carros de combate (Js 17.16,18; Jz 1.19; 4.3,13), bem como na aversão pelo interesse cananeu em comércio e negócios (Is 23.8; Sf 1.11; Zc 14.21). Destaca-se especialmente a repulsa contra o libertinismo cananeu, a falta de moral e de padrões de conduta, repulsa que se manifesta, p. ex., na repetida censura a delitos sexuais (Gn19.4- 9; 34; 38; Lv 18 e passim). Mas acima de tudo deve-se levar em conta a desconfiança para com a religião cananeia, seja lá quando tenha surgido: para com a religião cananeia e sua multiplicidade de divindades da vegetação, bem como suas abomináveis liberalidades no culto a Baal.

Seria possível continuar esta lista. Ela não deve ser entendida erroneamente como enumeração de causas históricas; o que se pretende é descrever e detalhar a consciência de estranheza que separava Israel dos cananeus. Em grandiosa unilateralidade ela transparece ainda no Dt, cuja teoria da tomada da terra afirma que a população cananeia da Palestina anterior à conquista precisa ser erradicada para que Israel possa fixar-se na Terra Prometida (Dt 12.2-4,29-31; 18.14; 19. Is e passim). Isso naturalmente não aconteceu. Ao longo do tempo ocorreu, pelo contrário, uma coexistência mais ou menos equilibrada entre Israel e Canaã, e mais ainda: uma fusão e amalgamação que, por sua vez, liberaram forças contrárias. O problema da relação de Israel com Canaã se tomou constitutivo para toda a história pré-exílica e a história da religião de Israel.

Por outro lado, a tradição veterotestamentária deixa transparecer que houve grupos de pessoas e povos com os quais Israel se sentia aparentado. Também isso encontrou seu reflexo em sagas e genealogias. Em Gn 11.10-26 P traça-se a linha de descendência desde Sem até Abraão, que é propriamente o tronco de Israel. Ao menos três nomes dessa tabela estão documentados, em textos de escrita cuneiforme, como topônimos na curva do Eufrates na Alta Mesopotâmia, na região da cidade de Harã, de onde Abraão partiu para Canaã (Gn 11.31; 12.4): Serugue (Serudj), Terá (Til 7urahi) e Naor (Nahur, Til Nahirí). Abraão tem dois irmãos, Naor e Harã. Ambos são troncos de uma multiplicidade de ancestrais epônimos de grupos. Naor tem 12 filhos (Gn 22.20-24?), entre eles um tal de QPmu’el, “o pai de Arã” . Harã tem um filho chamado Ló (Gn 11.27), e Ló é o pai de Amom e Moabe (Gn 19.30-38 J), os epônimos dos amonitas e moabitas. O próprio Abraão tem três mulheres: Sara, a escrava egípcia Hagar e Quetura. Através de Quetura ele é o ancestral de 16 grupos proto-arábicos (Gn 25.1-4), entre eles Midiã, Dedã e Seba. Hagar lhe dá Ismael (Gn 16), que é o pai de 12 grupos que pertencem à associação dos ismaelitas (Gn 25.12-18), entre eles Nebaiote, Quedar, Dumá e Tema. Sara, finalmente, é a mãe de Isaque (Gn 21.1-7), e este, por sua vez, o pai de Esaú e de Jacó (Gn 25.19-26). De Esaú descendem os edomitas (Gn 36), e Jacó, como se sabe, é o pai dos 12 epônimos das tribos de Israel. Não se deve cometer o erro de projetar todas essas informações indistintamente sobre um mesmo plano e ver retratadas nelas as circunstâncias reinantes em determinado momento histórico. Elas provêm de épocas diversas, cronologicamente bem afastadas, de contextos literários diversos (sobretudo de J e P) e têm importância histórica diversa. Algumas delas também poderão ser produto de douta especulação; essa possibilidade é tanto maior quanto mais recentes forem os textos. Um exemplo deve ser suficiente. Enquanto os edomitas, moabitas e amonitas da Transjordânia já se encontravam em seus territórios nos dois últimos séculos do 2a milênio a.C., formando em seguida reinos1, a confederação proto-arábica de “Ismael” (em textos deescrita cuneiforme: Shumu’il) existe não antes do fim do séc. 8 a.C. e não depois do séc. 6 a.C.12. Não obstante essas diferenças históricas, a ideia fundamental do entrelaçamento genealógico, no entanto, é propriedade comum da consciência israelita. Israel se considerava parente, em parte parente muito próximo13, de numerosos povos, tribos e grupos “ semitas” do norte e noroeste da Arábia. Na base dessa constatação deve haver fatos históricos concretos. Pode-se percebê-los ao se atentar para o que esses povos têm em comum. Praticamente todos tiveram seu aparecimento histórico apenas por volta de 1200 a.C. ou logo depois, os proto-árabes inclusive só na I a metade do l s milênio a.C. Todos, assim, são consideravelmente mais jovens do que os antigos povos civilizados do Oriente Próximo, os “ camitas” e “ jafetitas” . Alguns deles se estabeleceram em regiões onde anteriormente outros grupos populacionais haviam habitado e exercido domínio, como p. ex. os arameus da Síria. Outros haviam sido nômades ou, ao menos, haviam integrado elementos nômades. Ainda outros, como p. ex. os ismaelitas, desenvolveram o modo de vida “ protobeduíno”.

Essencialmente, portanto, são três aspectos fundamentais comuns que ligam todos esses povos entre si: sua “juventude” , sua disseminação regional e sua relação com o nomadismo. Os membros relativamente mais antigos desse macrogrupo hipotético intranquilizaram as periferias da terra cultivada mesopotâmica no séc. 12/11 a.C. Eles são mencionados nas inscrições do rei assírio TiglatePileser I (1115-1076) sob a denominação coletiva de aramu, “arameus” . Trata-se de um movimento com notórias características linguísticas e culturais comuns, do qual, porém, não se deve formar imagens equivocadas. Deve-se abandonar a ideia defendida antigamente de que todos esses grupos tivessem chegado do deserto siroarábico e se estabelecido nas terras de civilização do Crescente Fértil pela via da transumância. Causa do movimento foram, em primeiro lugar, reestruturações de camadas da população nos próprios centros de civilização: a ascensão e finalmente o domínio por parte de grupos que antes haviam emigrado por causa de crises econômicas ou descido na escala social, dos quais diversos também haviam sido empurrados para as margens das estepes e do deserto; agricultores migrantes, nômades montanheses e criadores autônomos de gado miúdo que agora se dispunham a estabelecer-se de novo como agricultores e exercer o domínio sobre a antiga população da terra cultivada. Isso não exclui de maneira nenhuma a afluência de elementos nômades a partir do deserto — ao estilo dos nômades sh’swH, que operavam em âmbito mais amplo. Entretanto, uma “ onda de povos arameus” que arremetesse contra os centros de civilização vindo dos ermos do deserto certamente não existiu. Não será tratado aqui o problema do parentesco linguístico, cultural e quem sabe até étnico dos arameus com os grupos semitas que na I a metade do 2a milênio a.C. se estabeleceram em especial na terra cultivada da Mesopotâmia e aparecem palpavelmente nos textos de Mari, p. ex. Martin Noth sugeriu para eles a denominação “ proto-arameus” 15. Com isso, porém, se coloca o substrato linguístico semítico ocidental dos textos numa relação bem mais próxima com o aramaico do que se pode aceitar cientificamente. Recomenda-se manter esses grupos separados dos arameus do fim do 2Bmilênio a.C.

Em todo caso, o que está bem evidente é o seguinte: Israel nutria um sentimento de parentesco com os arameus do fim do 2~ milênio16 e com os protoárabes da 1ª metade do 2 milênio a.C. Transformando-se a tradição genealógica em história, manifesta-se que a ligação com os arameus é mais estreita do que com os proto-árabes, que, afinal, pisaram o palco da história do Oriente Próximo só mais tarde. O parentesco arameu também se expressa através de textos não-genealógicos do AT. Gênesis 11.31s. e 12.4s. P relatam a respeito da permanência de Abraão em e de sua saída de Harã na curva do Eufrates, uma cidade que desempenhou um papel importante na história dos arameus. Conforme Gn 24.3s.10 J, Abraão faz seu filho Isaque buscar uma esposa não dentre os cananeus, mas de seu próprio país e de sua “parentela” (moledet): de Aram Naharaim. O mesmo se repete mais tarde com Jacó (Gn 27.46-28.9 P). E a fórmula confessional do chamado “ pequeno credo histórico” (Gerhard von Rad) em Dt 26.5 começa com as palavras: “ Um arameu prestes a perecer (ou: errante?) foi meu pai…”. Parentesco, em tudo isso, não quer dizer nada mais do que coesão, expressa nas categorias do pensamento genealógico.

A tradição veterotestamentária, entretanto, não deixa dúvida de que Israel possuía uma consciência marcante de sua particularidade não só em relação aos povos dos quais se sentia separado, mas também em relação a seus parentes arameus e outros. Embora sejam parentes, não o são de tal modo que Israel se sentisse irrestritamente solidário com eles. Historicamente isso permite concluir que houve um processo de distanciamento e isolamento dos outros membros do macrogrupo “arameu” , sobre cujas causas por ora só se podem fazer conjeturas. Os fatos estão registrados nas chamadas “ sagas de separação” do Gênesis, que acabam todas de tal maneira que um dos patriarcas se separa de um parente: Gn 13 J/P (Abraão de Ló); 31 J/E (Jacó de Labão); 33.1-16 J/E (Jacó de Esaú). No mesmo plano se situam, sem fazer parte das sagas de separação: Gn 19.30- 38 J (a origem incestuosa dos amonitas e moabitas); 25.27-34 e 27.1-45 J (a disputa pela primogenitura entre Jacó e Esaú). Nestas sagas o complicado processo de distanciamento e declaração de autonomia de Israel é reduzido, em cada caso, a um evento familiar.

Para se aproximar das causas é preciso dirigir a atenção à situação da família de Jacó, o terceiro patriarca. Ele tem quatro esposas: as arameias Lia e Raquel, como esposas principais, e as escravas Silpa e Bila, como esposas secundárias (Gn 29.1-29 J). Delas tem 12 filhos, cujos nomes são idênticos aos nomes das 12 tribos do Israel posterior (Gn 29.32-30.24 J/E; 35.16-18 E; 35.22b26 P). Eles formam dois grupos: 1. os filhos de Lia (Rúben, Simeão, Levi, Judá, Issacar, Zebulom) e de sua escrava Zilpa (Gade, Aser); 2. os filhos de Raquel (José, Benjamim) e de sua escrava Bila (Dã, Naftali). A associação dos epônimos a duas vezes duas mães deve ter um sentido histórico. Contudo, é de bom alvitre manter certa precaução e reserva. E que a estruturação de Israel em 12 tribos e a associação de seus epônimos a diferentes mães pressupõem o Israel pronto; o sistema completo, portanto, não pode remontar aos inícios de Israel. Disso se segue que é preciso levar em conta a possibilidade de que se trate de especulação genealógica. Nem toda expressão de pertença a um grupo deve ser tida, sem mais, como reprodução genealógica de um fato histórico concreto; também é concebível que se trate de uma construção erudita. Por outro lado, também existem razões para não se considerar tudo simplesmente construção posterior a que nada corresponda na realidade histórica do Israel mais antigo. A forma do próprio sistema permite supor que a especulação e a construção posterior tenham afetado sobretudo os filhos das mulheres secundárias. Para conseguirmos avançar aqui, faz-se necessário examinar a distribuição geográfica das tribos de Israel após a tomada da terra.

As duas tribos centrais do segundo grupo — os filhos de Raquel, José e Benjamim — moram, após a tomada da terra, contíguas uma à outra, na parte setentrional das montanhas da Palestina Central. Elas formam um bloco de povoamento na região montanhosa efraimita e samaritana, aparecendo José dividido nos subgrupos de Efraim e Manassés (Gn 41.50-52; 48). Sua origem de uma mesma mãe é compreensível, ainda mais que o nome “ Benjamim” , i. é, “ filho à direita, filho no sul” , deve ser de origem josefita e sublinha, a seu modo, a coesão de ambas as tribos. Os filhos de Bila, Dã e Naftali, no entanto, não parecem se encaixar aí. Dã habita no extremo norte, ao pé do Monte Hermom, e Naftali, na parte oriental da Alta Galiléia. É mister considerar, porém, que Dã, no primeiro estágio de sua tomada da terra, tentou fixar-se nas montanhas e na região de colinas a oeste de Benjamim (Jz 1.34s. 13-16; 18; Js 19.40-48). A tentativa fracassou; Dã foi obrigado a continuar migrando. Originalmente, portanto, Dã de fato era vizinho imediato dos filhos de Raquel. No caso de Naftali não se percebe nada parecido. Aqui talvez se possa pensar em especulação genealógica, que poderia ter sido produzida pelo fato de que Naftali, visto a partir de Dã, era a tribo galiléia mais próxima. No caso do primeiro grupo — os filhos de Lia (Rúben, Simeão, Levi, Judá, Issacar e Zebulom) — as coisas são muito mais difíceis. Judá mora na parte meridional das montanhas da Palestina Central, e Simeão — ao menos na teoria — na região adjacente ao sul. Com alguma hesitação se poderiam chamar essas duas tribos de bloco de povoamento. As outras, porém, estão bem dispersas: Rúben na Transjordânia a nordeste do Mar Morto, Issacar e Zebulom na parte ocidental e oriental da Baixa Galiléia, e Levi sequer tem propriedade territorial. Acrescentam-se ainda os filhos de Zilpa: Gade na Transjordânia, ao sul de Rúben, e Aser na parte ocidental da Alta Galiléia. Aqui provavelmente não se poderá operar sem a suposição de construção genealógica.

Entretanto, não se deveria desconsiderar Gn 34 J. Ali se narra que Jacó estava com sua família na região da cidade cananéia de Siquém, no coração da região montanhosa samaritana. Ali aconteceu que Diná, a filha de Jacó com Lia, foi violentada pelo filho do príncipe da cidade de Siquém. Os siquemitas fizeram de tudo para tentar legalizar a situação a posteriori: propuseram à grande família de Jacó conviver para sempre com eles em Siquém. Nada lhes faltaria; receberiam terras, fariam comércio e casariam com moças cananeias: commercium et connubium. Por motivos que aqui não poderão ser detalhados, todo o incidente resultou, porém, em assassinato e homicídio.

O que chama a atenção neste relato é que, a partir do v. 25, Simeão e Levi são os únicos dos filhos de Jacó que são citados nominalmente. Por que exatamente eles? Isso só faz sentido se a saga originalmente se referia a essas duas tribos apenas, se ela narrava uma parte da história de Simeão e Levi em forma de saga. Será que num estágio inicial da tomada da terra Simeão e Levi realmente fizeram uma tentativa de fixar-se na região de Siquém, e será que fracassaram nisso da mesma maneira que Dã a oeste de Benjamim? Ninguém o sabe. Mas esta hipótese esclareceria várias coisas: o declínio de Simeão e Levi como tribos da tomada da terra e a posição de Issacar e Zebulom como filhos de Lia; pois se Simeão e Levi originalmente foram alguma vez nômades na parte setentrional das montanhas da Palestina Central, então, por assim dizer, se preenche a lacuna existente entre Judá e as tribos da Baixa Galileia: os filhos de Lia se aproximariam geograficamente. Essas reflexões, todavia, não se aplicam a Rúben; ele está e permanece fora do centro. Será que sua posição no topo dos filhos de Lia não se baseia em nada mais do que especulação? Esta hipótese é dificultada não apenas pelo fato de Rúben habitar na Transjordânia, mas sobretudo também pelo fato de que já cedo perdeu importância e, mesmo assim, continuou sendo tido como primogênito de Jacó19. A discrepância entre a efetiva falta de importância de Rúben e seu papel no sistema dificilmente pode ser resolvida pela hipótese de uma construção posterior. Leva, antes, a supor que haja causas históricas — só que não as conhecemos. O enquadramento dos filhos de Zilpa, finalmente, pode remontar a especulações genealógicas; ambos eram vizinhos de um filho de Lia.

Correndo o risco de perder-se irremediavelmente num emaranhado de suposições, talvez se possa avançar mais um passo. Se Simeão e Levi alguma vez outrora realmente habitaram ou foram nômades nas montanhas samaritanas, então não é muito provável que naquela época as tribos de Raquel já se encontrassem por lá. É mais provável que só tenham aparecido quando Simeão e Levi já haviam fracassado e migrado adiante. Se isso estiver certo, poder-se-ia concluir que houve duas fases na formação do Israel mais antigo: numa primeira fase apareceram grupos com características nômades que se agruparam como tribos e finalmente constituíram o grupo das tribos de Lia; numa segunda fase seguiu-se a formação do grupo das tribos de Raquel. Estas fases deveriam ser projetadas também sobre o processo de tomada da terra, que nada mais é do que a lenta sedentarização de grupos nômades. Ambas as coisas, a formação de tribos e de grupos de tribos e a tomada da terra, são dois lados de uma mesma questão. Que Raquel deva ser colocada depois de Lia resulta também do transcurso da história de Jacó: apesar de Jacó originalmente ter sido o patriarca do grupo de Raquel20, recebe como esposa primeiro a não-amada Lia, antes de poder casar com a amada Raquel (Gn 29.1-29). Mais longe não se deveria ir, p. ex. interpretando ainda os nomes (Lia, “ vaca” ; Raquel, “ ovelha mãe” ) como alusões a diferentes formas de economia, pois a distribuição de criação de gado e de criação de ovelhas entre agricultores sedentários e nômades não-sedentários, respectivamente, é esquemática e objetivamente inadequada; além disso, presume-se aí uma teoria da tomada da terra que carece de revisão22. Denominar pessoas com nomes de animais é bastante comum no material onomástico das línguas semíticas.

Tudo isso, contudo, ainda não responde a pergunta pelos motivos do distanciamento de Israel de seus “ parentes arameus” . É óbvio que a família epônima do patriarca Jacó e a complicada derivação dos filhos de quatro mães diferentes nada mais são do que a expressão genealógica de um sistema com o qual se procurava entender e tornar compreensível estruturalmente a grandeza “ Israel” . O historiador tem o dever de perguntar de que época poderia provir esse sistema. A resposta é mais difícil do que se poderia crer. E que não existe época em que o sistema tivesse correspondido plenamente aos fatos históricos do Israel em formação ou já formado. O sistema presume que a situação de coesão das tribos já tenha existido desde o princípio e que no essencial tenha permanecido imutável. Ele tem um caráter decididamente conservador. Assim conserva, p. ex., a coesão das tribos de Lia, apesar de que após a conclusão do processo de tomada da terra estas estivessem localmente fragmentadas — no sul das montanhas da Palestina Central, na Baixa Galiléia e na Transjordânia — e não tivessem características comuns perceptíveis que as unissem umas às outras. Além disso, conserva tribos notoriamente fracas, cujo declínio já iniciou cedo e cujo destino acabou por tirá-las da história de Israel: Rúben, Simeão, Issacar, Gade — que não apenas são carregadas junto de forma consequente, mas entre as quais algumas até ocupam e mantêm lugares de distinção no sistema. Por fim, conserva a tribo de Levi — como terceiro filho de Jacó com Lia, igualmente em posição boa — , apesar de esta tribo nem ter efetuado uma tomada de terra e ser tão pouco comparável com as outras tribos, que já se pretendeu explicar sua existência enquanto tribo como ficção.

Em outras palavras: o Israel retratado pelo sistema nem sequer existiu. O sistema não pode ter surgido antes da tomada da terra, porque aparentemente não existiu uma fase em que todas as tribos por ele abrangidas vivessem ao mesmo tempo como nômades na Palestina. Mas também não pode ter surgido depois da tomada da terra, porque os traços de antiguidade nele contidos de forma alguma retratam objetivamente o resultado do processo de tomada da terra. Tampouco, porém, pode ser uma ficção genealógica oriunda de épocas posteriores da história de Israel, p. ex. da época da monarquia ou até mesmo da época pós-exílica, pois ficções costumam levar em consideração as circunstâncias de sua época de surgimento, ao menos em seus rudimentos. Assim só resta o próprio processo de tomada da terra. O sistema surgiu gradualmente no curso da tomada da terra: é o resultado sistematizante e preservador de um processo histórico complicado que nele deixou seus rastros por toda parte. Com isso, porém, é simultaneamente também uma realização histórica notável: a tentativa de, por assim dizer, continuar a escrever e fixar por escrito uma grandeza histórica em processo de surgimento e, por fim, concluída, bem como de interpretá-la genealogicamente.

Que grandeza histórica? O que unificava os grupos congregados no sistema dos doze e os distinguia de outros? Justamente esta é a pergunta pela essência da associação ou confederação das 12 tribos chamada Israel. Trata-se de uma pergunta refletida sem cessar, muito discutida, extraordinariamente difícil — na verdade, a mais difícil questão da história científica de Israel, pois é a pergunta pela substância de seu objeto. E é uma medida sincera, ainda que não muito animadora, constatar de antemão que essa pergunta até agora não foi respondida satisfatoriamente.

A resposta mais abrangente e mais influente em nosso século foi dada, seguindo a antecessores, por Martin Noth24. Ele partiu do fato de que se insiste com grande tenacidade no número doze como número dos membros do sistema, e isso apesar de todas as complicações com a realidade histórica. Em grandes traços é possível perceber duas formas do sistema: uma, por assim dizer, normal, com Levi e José, e outra literariamente mais recente (Nm 26.4bl3- 51), na qual Levi não consta, mas onde em compensação Efraim e Manassés são contados cada um por si25. Ao que tudo indica, o número doze é constitutivo para o sistema. Agrupamentos de 12 ou seis tribos existem, além do caso de Israel, ainda em outro contexto do AT: 12 tribos de arameus que remontam a Naor (Gn 22.20-24); seis tribos proto-árabes, os filhos de Quetura (Gn 25.1-4); 12 tribos dos ismaelitas (Gn 25.13-16); seis tribos dos horeus de Seir (Gn 36.20- 28)26. Deve-se recorrer a essas confederações de seis e de 12 como casos paralelos. Infelizmente as listas não indicam que razões levaram à união dos grupos ou se aqui e ali não foi o princípio especulativo do número redondo e sagrado que forneceu o motivo para a coligação.

Por isso Noth foi em busca de analogias extrabíblicas e extra-orientais. Havia agrupamentos desse tipo também em outras áreas no mundo mediterrâneo antigo, especialmente no âmbito greco-egeu. Embora estejam muito distantes de Israel e sejam bem mais recentes, têm a vantagem de oferecer informações mais precisas sobre sua natureza, suas funções, seus elementos comuns. Trata-se de alianças de tribos ou cidades com a finalidade de manter o culto de um santuário central comum. Conforme o modelo grego, a ciência da Antiguidade clássica criou, para designar alianças desse tipo, o termo “ anfictionia” , i. é, “ comunidade dos que moram ao redor” (do santuário central). Alianças desse tipo são27: a anfictionia pilaico-délfica de Apoio, primeiramente constituída de 12, mais tarde de 24 membros; a aliança de 12 tribos jônicas em tomo do Panionion, consagrado a Posêidon, na qual uma tribo teve de ser expulsa para manter o número de 12; a dodecápole em Acaia, igualmente com um culto em comum a Posêidon; os “ 12 povos da Etrúria” , com o santuário de Voltumna junto ao Lago Bolsen; e outros mais. Decisiva é a existência de um santuário central. Os números 12, 24 ou seis poderiam estar ligados ao fato de os membros da anfictionia repartirem a conservação do santuário central entre si alternadamente: em ritmos de um mês, de meio mês ou de dois meses. As anfictionias não tinham intenções políticas que excedessem o culto comum, ou mesmo instituições; cada tribo ou cada cidade regulamentava suas questões políticas por conta própria. Noth transferiu o modelo das anfictionias greco-itálicas para o sistema das 12 tribos de Israel. Nisto favoreceu-o a circunstância de que, conforme o testemunho unívoco e constante do AT, foi a adoração de Javé que unificou as tribos de Israel e as distinguiu de outras. Naturalmente deve-se contar com um processo histórico de formação e de transformação da aliança sacra de tribos denominada Israel, e para isto apontam vestígios existentes no sistema. Cai na vista o fato de que o número seis das tribos de Lia é preservado obstinadamente. No sistema literariamente mais recente, no qual falta Levi, e Efraim e Manassés são contados cada um por si, Gade assumiu o lugar de Levi, provavelmente para não se precisar abandonar o número seis dos filhos de Lia. Considerando-se que a tomada da terra pelas tribos de Lia provavelmente ocorreu antes da das tribos de Raquel, é plausível supor que as tribos de Lia alguma vez tenham estado organizadas como anfictionia de seis antes da formação da anfictionia de 12: uma espécie de estágio preliminar da anfictionia israelita definitiva.

Santuário central da anfictionia era a arca de Javé: uma caixa com varas para carregar, que tinha a função de estrado para o trono invisível de Deus. Originalmente talvez fosse um antigo santuário itinerante dos nômades29; depois da tomada da terra, porém, foi colocada num local de culto que então passou a constituir o centro da anfictionia. Aqui, no entanto, surge uma dificuldade, uma vez que no curso da história a localização da arca de Javé parece ter mudado várias vezes. Conforme a concepção de Noth, ela se encontrava primeiramente no antigo santuário oracular cananeu junto ao terebinto perto de Siquém (Tèll Balata). Isso, porém, só está atestado expressamente no trecho deuteronomista de Js 8.30-35 (v. 33). Noth, todavia, pensava poder inferi-lo também de Dt 11.29s.; 27 e Js 2430. Além do mais, aduziu o fato de que Javé havia sido cultuado exatamente na região de Siquém sob a denominação cultuai de “ El (ou Javé), o Deus de Israel” (Gn 33.20; Js 8.30; 24.2,23). Mais tarde a arca foi colocada em Gilgal, junto a Jericó31 (Js 3-4), e em Betei (Betin); quanto a esta última, cf. Jz 20.26-28 e talvez Gn 35.1-7 E/P32. Por fim, ela esteve no santuário de Silo (Hirbet Selun) (1 Sm 1-3; especialmente 3.3; 4), antes de ser perdida para os filisteus.

A interpretação da confederação israelita de 12 tribos como anfictionia foi uma concepção grandiosa. Possibilitou a compreensão do que constituía a consciência de coesão das tribos israelitas, e isto nos moldes de uma instituição cúltico-sacra. Martin Noth, entretanto, nunca deixou dúvidas de que se tratava de uma hipótese e que, em face da situação reinante, nem poderia se tratar de qualquer outra coisa. Com o passar do tempo isso foi, se não esquecido, ao menos pouco considerado. A fascinação exercida pelo modelo de interpretação fê-lo parecer mais e mais uma certeza irrefutável. Erigiramse torres de teorias em cima dele34, levando por vezes a tese em si ao descrédito por meio de uma fantasia excessivamente exuberante. Aqui não é o lugar de tratar disso mais detidamente. Ocorre que há motivos históricos que obrigam a entrar numa discussão crítica com a hipótese da anfictionia. Essa discussão iniciou, com alguma hesitação, não muito tempo depois do estudo fundamental de Noth, inicialmente sem ecos dignos de menção, mas entrementes levou à desmontagem crítica da hipótese35. Nem tudo que se apresentou ou se apresenta como argumento tem o mesmo peso. Importa destacar os pontos de vista principais. São quatro:

Primeiramente deve-se identificar o ponto que foi, desde o início, o mais fraco da tese da anfictionia de Martin Noth: a confederação israelita de 12 tribos não tinha um santuário central comum. A tese de que o Israel pré-estatal teria sido uma anfictionia foi alcançada com base numa conclusão por analogia. De uma analogia, porém, deve-se exigir que os elementos constitutivos das grandezas a serem comparadas uma com a outra sejam comparáveis. Elemento constitutivo das anfictionias grecoitálicas é o santuário central, i. é, o local de culto comum a todos. Israel não o tinha. A arca de Javé não é um local, mas um objeto de culto. Não existem anfictionias que estejam centradas num objeto de culto. Do mesmo modo não existem anfictionias que tenham como santuário central um local de culto cambiante. Outras dificuldades também impossibilitam a asseveração de que então Israel teria sido uma quaseanfictionia, reunida em torno da arca de Javé. Teríamos, portanto, de certa forma uma analogia parcial. Mas no AT não há abonação para a concepção da arca de Javé como objeto de culto de todo o Israel. As passagens em que ela parece se apresentar como tal (p. ex., Nm 10.35s.; Ex 25.10-22; 37.1-9) estão inequivocamente sob a coação da generalização e nacionalização da pré-história de Israel e são, por conseguinte, inúteis para reconstruir o passado. Nas histórias antigas da arca (1 Sm 4-6; 2 Sm 6), porém, ela não é mais do que um objeto de culto das tribos da Palestina Central com importância regionalmente limitada. Isso também mostram seus locais de permanência, dos quais, aliás, apenas Silo e mais tarde Jerusalém têm comprovação histórica assegurada36. O fato de Davi ter transladado a arca para Jerusalém (2 Sm 6) não demonstra que também Judá estivesse interessado nela como antigo objeto sagrado de todo o Israel, mas tão-somente que Davi, com toda a razão, vislumbrou nela possibilidades político-religiosas e nela depositou esperanças. Só ao longo da história de Israel a arca deixou de ter importância apenas regional e passou a ter importância para todo o Israel, e isto em combinação com Jerusalém e o templo salomônico que Josias de Judá proclamou em 622 a.C. como único santuário de Javé. Quem quiser considerar a arca como objeto de culto central anfictiônico da época pré-estatal precisa primeiramente estar convicto da existência do Israel antigo como anfictionia, i. é, precisa presumir aquilo que deve ser demonstrado. Se o Israel pré-estatal, no entanto, não possuía santuário central, também não era uma anfictionia.

Além disso, também não há provas claras de ações “ anfictiônicas” conjuntas por parte da confederação das 12 tribos israelitas. E aí, o peso maior não deve ser colocado nas guerras, nem de forma geral em ações de política externa. O Israel do Cântico de Débora (Jz 5)37, que não é idêntico à “ anfictionia” , não é argumento contra a hipótese da anfictionia; pois as anfictionias greco-itálicas são alianças religiosas sem atividades de política externa. O Israel da batalha de Débora poderia perfeitamente ter sido uma simaquia (aliança bélica) cujos membros, ao mesmo tempo e independentemente de sua participação na guerra, fizessem parte de uma anfictionia. O decisivo é, antes, a completa ausência de ações cúltico-religiosas comuns à confederação das 12 tribos israelitas. Aquilo que se acreditava poder explicar pelo recurso à teoria anfictiônica — a festa de renovação do pacto em Siquém, com a proclamação do direito anfictiônico divino (Dt 27; Js 24; Ex 19ss.) e outras atividades38—-se comprova, a partir de uma análise isenta, como uma possibilidade entre três: como ficção científica de nossa atualidade, como ficção mosaica de Israel ou como tradição cúltico-religiosa regionalmente limitada, mas de modo algum como tradição pan-israelita. A questão é mais ou menos a mesma que a do santuário central: a teoria anfictiônica é considerada primária e prioritária, e produz ela própria seus meios de comprovação. Se, porém, o Israel pré-estatal não tinha deveres e atividades sacras comuns, então também não era uma anfictionia.

As anfictionias greco-itálicas eram instituições de populações indo-germânicas com cultura agrícola ou urbana. Nenhuma delas teve, tanto quanto é possível reconhecer, uma pré-história nômade nem quaisquer outras relações com o nomadismo. Por outro lado, as federações de tribos araméias e as proto-arábicas posteriores, com as quais Israel deve ser comparado primeiramente, são instituições de grupos populacionas nômades ou de grupos que tiveram uma pré-história nômade. Em todo o amplo âmbito da população sedentária — tanto agrária quanto urbana — do corredor siropalestinense e da Mesopotâmia não existem tais alianças. Também este fato torna problemática a possibilidade de comparação da confederação de 12 tribos de Israel com as anfictionias do mundo mediterrâneo antigo.

Novas pesquisas tornaram pelo menos provável que as anfictionias gregas e itálicas tenham sido resquícios religiosos e cúlticos do que antes seriam federações políticas de tribos ou de cidades39. Caso esta concepção se confirme, isto significaria que as anfictionias sempre já pressupunham confederações políticas. Neste caso, porém, elas não seriam elucidativas como casos análogos para a explicação da confederação israelita das 12 tribos, a qual justamente precederia instituições políticas. Elas poderiam, no máximo, entrar em cogitação como modelos para explicar o desenvolvimento da consciência comunitária religiosa israelita que teria se seguido à ordenação política. Será que, no fim das contas, as coisas deveriam ser vistas por esse ângulo? Aí, porém, se levantaria a pergunta: que ordenação política teria precedido a confederação cúltico-religiosa de Israel, e, sobretudo, quando tudo isso teria se passado e quando tais transformações teriam ocorrido?

Mas se o Israel pré-estatal não foi uma anfictionia, que sentido tem então falar de uma confederação de 12 tribos? Pelo que sabemos hoje, só resta uma alternativa: não uma aliança sacra, mas uma federação política. Isso deveria aplicar-se então a todas as confederações de característica igual ou semelhante. Infelizmente as parcas informações do AT não possibilitam uma visão do funcionamento das confederações araméias e proto-arábicas. Mas uma coisa se pode perceber: em praticamente todos os casos conhecidos elas são prémonárquicas, i. é, sempre precedem a fundação do Estado com um monarca na ponta, govemo central e aparelho administrativo. Assim também é com Israel. Supondo-se que as associações de 12 e de seis do Oriente Próximo fossem federações políticas de tribos, obtém-se o seguinte quadro: as nãosedentárias têm dificuldades de se organizar politicamente. As dificuldades se devem sobretudo ao fato de que seus interesses particulares, clânicos e tribais, colidem com os de outros clãs e tribos. Isto aplica-se também a regiões em que não-sedentários convivem com sedentários, p. ex. com sedentários que há não muito tempo ainda eram não-sedentários. O convívio é marcado por disputas, conflitos, razias, assaltos, vinditas, numa só palavra: pela anarquia. A formação de federações de tribos é uma tentativa de superar a anarquia, domesticar os interesses, possibilitar paz, ordem e direito40. Neste contexto a submissão aos princípios do pensamento genealógico é extraordinariamente útil: a própria coesão por parentesco já é um fator de ordenamento. Genealogias fictícias vinculam grupos de uma mesma região geográfica de tal modo que eles se capacitam para um compromisso.

A regulamentação dos assuntos de política interna e externa fica a cargo dos próprios membros de tal federação. Deve ter havido encontros dos notáveis de cada uma das tribos para o debate de questões pertinentes a todas as tribos. Da mesma forma pode-se contar, como no caso de Israel, com a existência de coalizões de tribos para combater um inimigo comum (simaquias)41. Disputas dentro da federação podiam ser limitadas e controladas; permaneciam, por assim dizer, “ em família” . Sob certas condições e no devido tempo, a organização da confederação política das tribos podia converter-se em monarquia ou — menos dramaticamente — ir assumindo a forma de monarquia. Federações de tribos desse tipo existem entre os beduínos árabes da Era Moderna42 tanto quanto entre os árabes da Antiguidade e da Idade Média. Não obstante toda a reserva necessária, elas entram antes em cogitação como casos análogos para a confederação israelita de tribos do que as anfictionias greco-itálicas. A interpretação do Israel pré-estatal como federação política de tribos possibilita uma resposta a muitas perguntas, mas não a todas. Primeiramente se torna compreensível por que Israel se distanciou não apenas dos cananeus, mas também de seus “ parentes arameus” . Isso tinha razões de política regional. Os nômades de uma mesma região que se encontravam em processo de sedentarização organizavam-se como federação de tribos; a região era a Palestina, de ambos os lados do Jordão. Os agrupamentos arameus da Transjordânia que são conhecidos como edomitas, seiritas, moabitas e amonitas já haviam formado federações ou estados monárquicos um pouco antes ou os formaram mais ou menos concomitantemente. Portanto, com a exclusão dos territórios dos grupos recém mencionados, a região palestinense foi o espaço geográfico no qual o Israel mais antigo se constituiu. Isso significaria que se deveria como que desacoplar inicialmente a religião como fator atuante na formação da federação israelita. Não a religião, e muito menos a religião de Javé, foi o agente, mas circunstâncias da política regional. A que religião, ou melhor: a que religiões as tribos israelitas aderiam naquela época, isso nós não sabemos. Que Javé ainda não desempenha qualquer papel também se mostra no fato de que o nome “ Israel” contém o elemento “El” e não “Javé”.

Compreensíveis se tornam, além disso, a falta de atividades de todo o Israel, o relativo isolamento das tribos, sua esporádica atuação conjunta em coalizões contra inimigos externos; pois isso faz parte do modo de funcionamento de tais federações: deixam a regulamentação das questões internas c externas a cargo das próprias tribos, mas favorecem naturalmente a formação de simaquias temporárias. Auxilia-se, quando for necessário e possível, o irmão que está em dificuldade. Ademais, o número 12 se toma compreensível. Ele é, para ser exato, produto de uma teoria. A teoria subjacente a ele é a genealógica: a federação de tribos se compreende segundo o modelo da família: todos são descendentes de um mesmo pai. Através de números como 12 ou também seis são representadas a coesão interna e a integralidade da família. E possível que esses números, projetados sobre a realidade histórica, originalmente nem sequer sejam “ genuínos” . Na realidade não terão sido sempre exatamente seis ou 12 tribos que se uniam numa federação43. Além disso, deve-se contar com a possibilidade de que o número de membros de uma federação mudasse: novas tribos ingressavam, antigas desapareciam por fusão ou por quaisquer outros motivos. Na teoria genealógica, no entanto, são constantemente seis ou 12, e a teoria é objeto de tradição interpretativa entre os epígonos. Pode-se compreender as mudanças no sistema da confederação israelita de 12 tribos como estágios da interpretação, não necessariamente apenas de uma interpretação especulativa, mas também de uma interpretação controlada pela realidade. Essa concepção naturalmente relativiza as reflexões feitas acima41 quanto à idade do sistema. Agora se deveria dizer: o sistema nunca pode ter correspondido completamente à realidade histórica de Israel porque não se situa no lado desta realidade, mas no lado da teoria.

Finalmente também toma-se compreensível que na federação tribal israelita se foi criando devagar uma consciência de coesão especificamente israelita. E aqui reaparece em cena a religião. Inequivocamente Javé ingressou a partir de fora, junto com o grupo de Moisés ou com os grupos que eram portadores das tradições do êxodo e do monte de Deus; não sabemos quando. Mas Javé estava destinado a dominar na religião; as tribos aderiram a ele. Dentro da federação elas haviam desenvolvido desde o princípio certa consciência de coesão, na medida em que compreendiam sua confederação genealogicamente. Mas não pode haver dúvida de que a adoração a Javé funcionou como poderoso impulso para a formação de uma nova qualidade da consciência de coesão. A federação israelita de tribos se tornou aquilo que o cântico de Débora chama de “povo de Javé” (Jz 5.11,13)45. Só agora ela começou a tomar-se de fato um povo no sentido pleno da palavra. Se acima46 foi dito que da formação dé um povo faz parte a reflexão sobre destinos comuns, pode-se acrescentar agora: Javé se tomou o destino para as tribos de Israel.

A vantagem da concepção aqui apresentada consiste, não por último, no fato de ela não causar a impressão de que soubéssemos muita coisa e o soubéssemos com exatidão. Na verdade não podemos indicar mais do que o quadro básico e global. Além disso, não se devem silenciar as perguntas que esta concepção deixa sem resposta ou cuja tendência lhe é contrária. Se a partir de suas origens Israel era uma confederação política regional, por que não faziam parte dela grupos como os calebitas, queneus, otnielitas e jerameelitas47, que viviam na mesma região e cuja pré-história correspondia à dos grupos “ israelitas” ? E mais ainda: que também se tornaram adoradores de Javé? Isso é estranho, a não ser que realmente tivessem feito parte da federação na fase inicial desta. Isto é corroborado também por sua inclusão na história teórica da época salvífica clássica e por sua assimilação final dentro do Grande Judá. Sua posição especial poderia ser produto das coações da teoria genealógica, que fez com que esses grupos, que a rigor faziam parte da federação, fossem considerados apenas, por assim dizer, membros associados dela.

Igualmente difícil é uma segunda pergunta: por que de uma única federação de tribos se originaram duas monarquias? Trata-se do problema da posição especial da tribo de Judá na época da formação do Estado e decerto também já anteriormente. Neste contexto costuma-se lembrar, certamente com razão, o efeito separador do cinturão meridional de cidades cananéias49. Mas esse cinturão não separava, também já na época pré-estatal, o Norte israelita do Sul judaíta de tal modo que uma federação de tribos que abrangesse o Norte e o Sul se tomasse de todo inverossímil? Não seria “ todo o Israel” , assim, talvez de fato uma ficção que pressupõe a estrutura do reino davídico-salomônico? Sob esta pressuposição, contudo, toma-se incompreensível o dito sobre Judá na bênção de Moisés (Dt 33.7), em que Javé é solicitado a trazer o acossado Judá de volta “ a seu povo” , i. é, a Israel. Com boas razões esse dito é tido como pré-estatal; se o for, demonstra a participação de Judá no Israel pré-estatal e, simultaneamente, a periclitância dessa participação. Dever-se-ia supor, então, que o efeito separador do cinturão das cidades cananéias do sul ficava tanto mais forte quanto mais progredia o processo de sedentarização e quanto mais a federação de tribos se aproximava da formação do Estado. Por fim: se o sistema de 12 tribos é um produto da teoria, que não retrata fielmente a realidade histórica do Israel pré-estatal, como se explicam, então, os elementos arcaicos preservados no sistema, p. ex. a posição de Rúben no topo? Talvez se expliquem simplesmente pelo fato de que sistemas genealógicos são, por natureza, conservadores. É preciso parar neste ponto, senão se daria a impressão de que de fato temos resposta para todas as perguntas. Mas este não é o caso. As perguntas levantadas, e muitas outras, permanecem sem resposta e nos lembram dolorosamente das limitações do conhecimento histórico.

—– Retirado de: Herbert Donner – Historia de Israel e dos povos vizinhos, vol.1.


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