A pré-história de Israel: os futuros israelitas antes da tomada da terra

Israel surgiu no solo da terra cultivada palestinense. A fase de seu surgimento e de sua primeira existência, de seu início e de seu desenvolvimento deve ser exposta historicamente sob o conceito básico “ história primitiva de Israel’” . Ela se estende até a formação do Estado sob os reis Saul e Davi. Daí resulta que tudo o que precede este período deve ser tratado sob o título “ pré-história de Israel” — não obstante o fato de o AT afirmar o surgimento de Israel já no Egito e a partir dali contar com sua existência como uma grandeza pronta sob a direção de Javé e de Moisés.

A situação não é tal, que não soubéssemos nada sobre a pré-história de Israel. No Israel da época posterior à tomada da terra, mais ainda após a formação do Estado, circulavam numerosas tradições sobre a época primitiva, que mais cedo ou mais tarde foram fixadas por escrito. São tradições sobre a época em que os israelitas e seus antepassados ainda não se encontravam na Terra Prometida, ou pelo menos não definitivamente. A promessa divina da posse da terra havia sido dada, mas ainda não cumprida. Do conjunto da tradição podem-se extrair três grandes temas em torno dos quais essas tradições giram e às quais se referem: os patriarcas, o êxodo do Egito e o estabelecimento da aliança junto ao monte de Deus no deserto. Com o passar do tempo estes temas se tomaram pilares fundamentais da fé de todo o Israel. Transcenderam seu significado original limitado e alcançaram importância para todo o Israel. Depois que se concluiu esse processo de surgimento das tradições, Israel encontrou nelas sua identidade nacional e religiosa.

O resultado literário final desse complicado processo de tradição é o Pentateuco, ou — uma vez que o Deuteronômio deve ser tido como grandeza independente — o Tetrateuco de Gênesis até Números. Ninguém com formação histórica confundirá a exposição do Tetrateuco em seu conjunto e as diversas tradições nele reunidas com historiografia. Da mesma maneira, porém, não deveria haver dúvida de que as tradições da época primitiva conservam lembranças históricas que, mediante a aplicação de métodos históricos, deverão ser exploradas e avaliadas a partir da forma final em que se apresentam a nós. O esforço em relação a isso é mais necessário ainda pelo fato de as fontes literárias extra-israelitas para a pré-história de Israel serem muito escassas. E sem a constante consideração das tradições literárias do AT, os resultados da investigação arqueológica da Palestina — material de primeira categoria para o historiador! — são mudos ou induzem ao erro. Quem trabalha com a pré-história de Israel se encontra em situação semelhante à de quem precisa, a partir de Quinto Fábio Pictor em Políbio, a partir de Lívio e Dionísio de Halicarnassos, reconstruir a história romana ab urbe condita [“ desde a fundação da cidade” ] até a instituição da república. Como no caso dele, evidenciar-se-á que com métodos históricos se consegue obter mais conheci- mentos históricos do que inicialmente seria de se esperar.

Os patriarcas

O único documento literário que conservou tradições dos patriarcas é o Gênesis (Gn 12-35). E de bom alvitre esclarecer enfaticamente que do Gênesis não se pode extrair, p. ex., o quadro de uma época dos patriarcas como parte da história de Israel ou até do Oriente Antigo. Israel ainda não existe na época dos patriarcas nem sequer conforme o testemunho do próprio AT, e o Oriente Antigo fica em grande parte excluído da perspectiva. O Gênesis narra nada mais do que a história de uma família ao longo de três gerações num horizonte muito restrito, quase sem efeitos para fora e a partir de fora. As evoluções e mudanças políticas e culturais experimentadas pelo Oriente Antigo no 2° milênio a.C. tocaram as tradições dos patriarcas de modo apenas marginal e quase imperceptivelmente — se é que o fizeram. Abstraindo da atmosfera básica “ patriarcal” , bela e preponderantemente pacífica, das histórias dos patriarcas, uma das primeiras impressões que elas transmitem é a da vida instável de migrantes que tiveram os pais. Esses patriarcas, aos quais foi feita a promessa da Terra Prometida, não moram nessa terra, ou sempre só o fazem de passagem, até partirem de novo. Com suas famílias e seus rebanhos andam infatigavelmente de lugar em lugar; só na morte encontram seu merecido repouso. Distâncias não têm importância nenhuma; milhares de quilômetros são percorridos. Alguém poderia dizer: os patriarcas são nômades, e mudanças de lugar não são incomuns entre nômades. Mas, mesmo sob este pressuposto, os caminhos dos patriarcas são estranhos e emaranhados. A consequência parece inevitável: esses caminhos não podem ser históricos, mas devem ter motivos histórico-traditivos.

Observando os lugares em que estiveram os pais em suas peregrinações, cai na vista que as regiões da Palestina não estão representadas por igual nem sequer aproximadamente. Nenhum dos pais colocou alguma vez os pés na planície litorânea ou na região de colinas; nenhum deles esteve na Galiléia. O ponto mais setentrional mencionado é Siquém. E um número relativamente restrito de lugares nos quais os pais — quase sempre só de passagem — se demoram. E todos se localizam na Palestina Central ou Meridional e na Transjordânia; alguns são mencionados várias vezes. São os seguintes: Siquém (Tell Balata. Gn 12.6s.; 33.18-20; 34; 35.1-5); Betei (Betin. Gn 12.8; 13.3s.; 28.10-22; 35.6-15); Manre (Haram Ramet el-Halil. Gn 13.18; 18; 35.27); Hebrom (el-Halil. Gn 23; 25.9s.; 35.27); Berseba (Bir es-Seba‘. Gn 21.22-33; 22.19; 26.23-33); Gerar (Tell esh-Sheri‘a? ou Tell Abu Hurera4? Gn 20.1-18; 26.1-22); Beer-Laai-Roi (Gn 16.14; 24.62; 25.11); Gileade (Hirbet DjeTad. Gn 31.44-54); Maanaim (Tell Hedjadj. Gn 32.2s.); Peniel (Tilal ed-Dahab. Gn 32.23- 33)5 e Sucote (Tèll Der ‘Alia. Gn 33.17). Não é uma lista muito grande. Vê-se claramente que as tradições dos patriarcas se prendem a certos lugares, e muitas vezes a um único e mesmo lugar. Disso se conclui que as peregrina- ções não são mais do que conexões secundárias, trabalho redacional, através do qual os pais são conduzidos aos lugares que interessam e onde as narrativas se desenrolam. Os lugares são mais importantes do que os próprios pais.

Esse parecer é confirmado quando se esclarece a questão pelo lado da crítica das formas. É que muito evidentemente as narrativas não são elementos de biografias dos patriarcas e muito menos historiografia. Originariamente são, antes, sagas independentes, coesas em si mesmas e muitas vezes compreensíveis sem consideração de seu contexto, ligadas mais ou menos firmemente, por meio de um processo de composição, em séries ou ciclos de sagas6. Se as retirarmos do contexto no qual estão agora e as considerarmos uma por uma, então elas adquirem o devido peso histórico. De repente se evidencia que a respeito dos próprios patriarcas infelizmente muito pouco de concreto se informa, e até, que muitas vezes sua presença é casual e que eles poderiam ser intercambiados. Já os lugares onde se desenrolam as sagas não são casuais nem intercambiáveis. Não em todos os casos, mas pelo menos em seis deles tratase de santuários, acerca dos quais se diz que Deus apareceu neles e falou com um agraciado portador de revelação, o patriarca (Siquém, Betei, Manre, Ber-Laai-Roi, Maanaim, Peniel). Com isso o local, anteriormente profano, se torna lugar sagrado: a teofania institui santuário e culto. Aqui também reside uma das razões da atmosfera “ patriarcal” preponderantemente pacífica do Gênesis: não caem raios, e Deus se comunica com as pessoas quase como se fossem iguais a ele. Sagas desse tipo são sagas fundantes, sagas etiológicas7. Isso aplica-se também a muitos casos em que a fundação não se refere a um santuário ou a seu culto, mas a alguma outra coisa, p. ex. um nome (Gn 21.31; 26.33; 33.17), ou um direito sobre um território (Gn 31.44-54), ou outra coisa qualquer.

Quanto às sagas fundantes de santuários, há mais a se considerar do ponto de vista histórico. Em alguns casos se consegue provar, em outros ao menos mostrar como provável que os santuários fundados por revelações divinas aos pais já existiam muito tempo antes que Israel tivesse surgido e antes que os patriarcas — que Israel considerava seus pais — andassem como nômades pelo país. A história desses santuários estende-se bem longe para dentro da era cananéia, até a Idade do Bronze Médio e Antigo, ou talvez a um período ainda mais distante. Neste caso, porém, sua fundação não pode estar relacionada com os patriarcas de Israel. Levanta-se assim a suspeita de que também as próprias sagas fundantes sejam mais antigas do que os patriarcas. A suspeita aumenta quando se observam os rastros que, ainda na forma bíblica final das sagas, apontam para uma antiguidade pré-israelita e pré-patriarcal. Disso fazem parte aquelas denominações peculiares de Deus que não são nada mais do que apelativos de divindades cananéias junto aos santuários da Palestina: ’el ‘olam de Berseba (Gn 21.33), ’el bet’el de Betei (Gn 31.13; 35.7), ’el berit ou ba ‘al tfrit de Siquém (Jz 9.4,46)8. Disso fazem parte, além do mais, resquícios de concepções politeístas ou polidemonísticas que ainda transparecem aqui e ali. Em Gn 18.1-16, p. ex.9, se relata que “ três homens” visitaram Abraão em Manre, deixaram se servir por ele e lhe anunciaram o nascimento de um filho. É mais do que evidente que na versão pré-israelita da saga esses três homens foram divindades10. Em Israel não se teve como revolver a dificuldade a não ser através do artifício de identificar um dos três homens com Javé e degradar os dois outros ao status de seres angelicais a serviço dele. Mas ainda em sua redação final a saga denota essa solução forçada. O equilíbrio narrativo não foi alcançado, porque não houve a disposição de fazer desaparecer dois dos três homens. Assim se misturam três e um e um e três, e o embaraço de Abraão se transfere para o leitor11. Com Gn 32.2s. ocorre algo semelhante: Jacó se defronta com toda uma multidão de seres divinos e exclama: mahane ’elohim ze (“ Isso é o exército de deuses!” ). O narrador israelita transformou os deuses em mensageiros divinos (mal’ake ’elohim), tirando da saga seu conteúdo politeísta e tomando-a aceitável para Israel.

Ora, se as sagas são mais antigas do que Israel e seus patriarcas, então Israel substituiu as divindades reveladas cananéias por Javé, e os que experimentaram a revelação por um ou mais patriarcas. Analisadas sob essa ótica, as sagas fundantes dos santuários se tornam testemunhos de um fato histórico com conseqüências sérias: depois da tomada da terra, Israel se apropriou dos antigos santuários cananeus12, pleiteou seu direito sobre eles e fez remontar sua dignidade sacra a Javé, que ali já teria se revelado aos patriarcas antes da tomada da terra. Com isso, porém, está ligada ainda outra coisa: Israel não fez de qualquer um — e sobretudo de nenhum israelita — portador de revelação nas sagas fundantes dos santuários, mas sim Abraão, Isaque e Jacó. Isso significa que Israel se sentia intimamente ligado com essas figuras, que considerava a eles e a mais ninguém como seus pais e simultaneamente também como os pais de sua prática religiosa. Quem eram esses homens?

Não se deve cometer o erro de responder a essa pergunta de uma ou de outra forma rápido demais. É preciso ir se aproximando dela tentativamente e aos poucos. Primeiramente deve-se elencar em forma de panorama — sem a pretensão de ser completo — o que a tradição diz sobre o modo de vida dos patriarcas. Corre-se o risco de aparecerem traços mais antigos misturados com mais recentes, i. é, sem diferenciação histórica. Os patriarcas não viviam em casas de construção sólida, mas em tendas (Gn 12.8; 13.3,5,12,18; 18.1ss.; 25.27; 26.25; 31.25,33s.). Seu ofício principal era a criação de gado, e sobretudo a criação de gado miúdo (ovelhas e cabras), se bem que não exclusivamente; aparecem também reses, jegues e até camelos (Gn 12.16; 15.9; 20.14; 21.27; 24.10ss.; 26.14; 27.9; 30.28-43; 31.17; 32.6,8,15s. e passim). Na criação de gado empregavam pastores (Gn 13.7s.; 26.20). Ao lado disso, no entanto, exerciam a agricultura (Gn 26.12; 27.28,37) e a viticultura (Gn 27.28,37). Alimentavam-se dos produtos da pecuária e da agricultura: pão, leite e carne (Gn 18.6-8). Ocasionalmente também saíam para a caça (Gn 25.27; 27.3ss.). Sua situação jurídica e sua posição social na terra cultivada era a de forasteiros sob tutela (Gn 21.23; 23.4). Estavam em condições de adquirir bens imóveis (Gn 23; 33.19). Seu relacionamento com as povoações fixas urbanas e rurais era de relativa autonomia e distância. Firmavam alianças com elas (Gn 21.22-31; 26.16-33; 31.44-54), sob certas circunstâncias também se colocavam a serviço dos agricultores sedentários da terra cultivada (Gn 29.15ss.) e em certos casos se relacionavam com eles através de comércio e casamentos (Gn 34.8s.,21).

Numa só palavra: levavam uma existência não-sedentária, nômade. Esse quadro, entretanto, não corresponde ao modo de vida dos atuais nômades de transumância. Nenhuma palavra se diz a respeito de os pais terem migrado com regularidade calendária com suas famílias e seus rebanhos da estepe para a terra cultivada e de novo de volta. Sua vida correspondia, antes, aos chamados nômades montanheses ou nômades da terra cultivada, que sempre ficam na terra cultivada ou em suas margens, como não-sedentários que vivem entre as cidades e aldeias, preferencialmente nas regiões que não estão tão densamente ocupadas por elas14. Exatamente esse, porém, foi também o modo de vida dos israelitas primitivos15 ou ao menos de uma parte dos grupos dos quais se formou o Israel primitivo. Essa coincidência leva à plausível suposição histórica de que os patriarcas tenham sido proeminentes israelitas primitivos, ou melhor, proto-israelitas. Com essa suposição nos encontramos próximo daquilo que o AT afirma dos patriarcas: ele os considera antepassados primordiais de Israel. Isso tem sentido genealógico. Abstraindo-se de genealogia e biologia, chega-se no fim a um quadro com boa probabilidade histórica: os patriarcas são chefes de clãs nômades da terra cultivada que, geográfica e cronologicamente, faziam parte daqueles grupos dos quais mais tarde surgiu Israel, ou que foram absorvidos no Israel posterior.

Acresce-se mais uma observação. Não se consegue distribuir as tradições dos patriarcas uniformemente entre as áreas da Palestina que entram em cogitação. Pelo contrário, certas regiões preferem determinados patriarcas. A maioria preponderante das sagas nas quais Abraão e Isaque detêm o papel principal se localizam no sul da Palestina, algumas delas no extremo sul da terra cultivada, na Baía de Berseba e no deseito meridional. Muito elucidativas são, p. ex., as sagas de Gn 21.22-33 e 26.16-33: ambas tratam do mesmo assunto; uma vez com Abraão, outra, com Isaque. De forma historicamente verossímil mostram os pais como nômades criadores de gado miúdo, que também praticam a agricultura, negociando com os moradores da cidade de Gerar a fim de acertar um acordo contratual. Abimeleque, o príncipe de Gerar, tem a soberania sobre o respectivo território. Abraão e Isaque, junto com seu pessoal, estão sob proteção jurídica como “forasteiros sob tutela” (gerím). Um conflito em torno de poços de água do lençol freático é conciliado de forma arbitrada e pacífica, firmando-se finalmente um pacto solene no santuário de Berseba. Essas sagas descrevem uma situação típica de nômades. Mas não apenas elas, também a maioria das outras tradições sobre Abraão e Isaque estão localizadas no sul; Manre junto a Hebrom é o ponto mais setentrional. Perguntando-se que partes do Israel posterior poderiam ter considerado exatamente esses patriarcas como seus pais, toma-se verossímil pensar em Judá e Simeão, talvez no “ flanco meridional” como um todo, i. é, no grupo de Lia.

Quanto a Jacó, o caso é diferente17. Ele é o patriarca do grupo de Raquel. O que se conta dele ocorre preponderantemente na Palestina Central e na Transjordânia. A diferença se refletiu posteriormente na genealogia de todo o Israel. Uma vez que a primeira conformação sistemática das tradições da préhistória de Israel, tanto quanto podemos ver, aconteceu entre as tribos de Raquel, Jacó se tornou, como patriarca do grupo de Raquel, o verdadeiro tronco de Israel e recebeu o nome honorífico “ Israel” (Gn 32.23-33; 35.9s.). Se antes das tribos de Raquel existiu na Palestina Central um grupo com o nome Israel, que Jacó teria, de certa forma, adotado, é uma questão que precisa ficar em aberto18. Era coerente com o sistema que os epônimos das 12 tribos se tomassem filhos de Jacó. Mas a vinculação originalmente exclusiva do grupo de Raquel com Jacó ainda transparece com clareza na tradição: Jacó amava Raquel mais do que a Lia, que lhe foi imposta contra sua vontade (Gn 29.16- 28). Quando, então, as tradições continuaram a ser desenvolvidas entre as tribos do grupo de Lia no sul, Abraão e Isaque entraram no sistema. Foram antepostos genealogicamente a Jacó, como pai e avô. Isso não aconteceu apenas porque o lugar do verdadeiro tronco, do protótipo de Israel, já estava ocupado por Jacó. Reflete-se nisso provavelmente também certa primazia do grupo de Lia sobre o grupo de Raquel, e essa primazia quase não pode ser entendida de outro modo do que cronologicamente: o grupo de Lia alcançou a sedentariedade antes do que o grupo de Raquel. Enquanto que no sul os futuros israelitas já haviam se tomado agricultores sedentários, na Palestina Central eles ainda viviam como nômades.

Existem, afinal, motivos suficientes para considerar os patriarcas personagens históricos? Ou seriam eles, pelo contrário, antepassados fictícios de grupos de pessoas, epônimos como os 12 filhos de Jacó? Antigamente, de fato, se afirmava isso na ciência veterotestamentária, aventando-se também a possibilidade de os pais terem sido figuras de contos de fada ou até deuses destituídos de seu poder. Hoje quase não há mais expoentes de tais concepções, pois existem razões positivas consideráveis para a historicidade dos patriarcas. Seus nomes são antropônimos semítico-ocidentais correntes. Abraão é uma forma secundária de radical ampliado de Abrão, como, aliás, o patriarca é chamado até Gn 17.5; e esta forma, por sua vez, é igual a ’Abiram, um chamado substitutivo com a significação de “ o pai é alto”, i. é, ele está morto, e a criança é seu substituto19. Isaque (Yiçhaq) é ou um hipocorístico [= diminutivo carinhoso familiar] para *Yiçhaq-’el, “ Deus sorria” (por sobre a criança, i. é, lhe seja favorável)20, ou um nome de carinho, “ Ele sorri” (o bebê, após o parto). Jacó (Ya‘aqob) é provavelmente uma forma abreviada de Ya‘qab-‘el, “ Deus proteja”. Se os pais fossem epônimos, deveria ser possível provar que seus nomes são utilizados como nomes de grupos. Mas isso não é o caso; não há um grupo Abraão, não há um clã Isaque, não há uma tribo Jacó. Os patriarcas são indivíduos. Acresce-se a isso um indício proveniente da história das religiões, mesmo que incerto e equívoco, cuja importância para a historicidade dos patriarcas não deveria ser subestimada. Ele merece ser exposto com mais detalhes e ser analisado criticamente já pelo fato de ter se tomado o ponto de partida e o conteúdo básico de uma das grandes hipóteses da história das religiões em nosso século: a teoria do Deus dos pais, de Albrecht Alt.

Já sempre se notou que na tradição dos pais ocorrem denominações peculiares de Deus: “ o Deus de (meu, teu, nosso) pai Abraão/Isaque/Jacó” (Gn 26.24; 28.13; 32.10; 46.1; Êx 3.6 e passim), “ o Deus de Naor” (Gn 31.53), “ o Terror de Isaque” (Gn 31.42,53)24 e “ o Poderoso de Jacó” (Gn 49.24; Is 1.24 e passim). Essas denominações estão construídas de tal forma que o nome de um patriarca está no genitivo e depende de um apelativo de Deus, em geral de nunca de ’el. A combinação pode ser ampliada pelo aposto “ pai” (no singular, no plural e com sufixos), ou o nome do patriarca pode ser substituído por “ pai” . Destas observações Albrecht Alt tirou, pela primeira vez, conseqüências histórico-religiosas, elaborando uma teoria que por décadas foi tida como verdade insofismável25. Ele tentou mostrar que aí não se trata — como a tradição procura fazer crer — , desde o primeiro momento, de Javé, que mais tarde foi chamado “ Deus dos pais” e datado anacronisticamente nos primórdios, mas sim do resquício de um tipo de religião pré-israelita que foi javeizada da mesma forma como as divindades cananéias dos santuários da terra cultivada. Esse tipo de religião, segundo Alt, tem determinados sinais característicos. E politeísta, i. é, não existe só um deus dos pais, mas vários deuses de pais. “ O Terror de Isaque” e “ o Poderoso de Jacó” não são idênticos. Há uma passagem em que o politeísmo ainda é concretamente palpável. No contexto da celebração de um contrato entre Jacó e Labão consta: “ O Deus de Abraão e o Deus de Naor queiram (!) julgar entre nós, o Deus de seu pai!” (Gn 31.53.) Nessa fórmula, escandalosa nos moldes da religião de Javé, a tradição realizou duas operações a fim de eliminar o politeísmo, sem lograr pleno êxito: ela acrescentou a fórmula “ o Deus de seu pai” (falta na LXX!), no singular, para fazer as duas divindades parecerem apenas uma, i. é, Javé, e colocou, no Pentateuco Samaritano e na LXX, a forma verbal no singular, “ queira julgar” , em substituição ao plural do texto massorético.

A segunda característica consiste em que os deuses dos pais não estão vinculados ou, em todo caso, não estão originalmente vinculados a lugares sagrados, mas a pessoas e a seus familiares: exatamente aos pais cujos nomes ostentam. Alt concluiu daí que originariamente eles não se enquadram no âmbito de agricultores sedentários, mas no de nômades não-sedentários. Mais de um milênio depois encontramos deuses pessoais de caráter semelhante também entre os nabateus e os palmirenos, cujas inscrições de Petra, Palmira e do Hauran, redigidas em parte em aramaico e em parte em grego, contêm denominações de Deus como ’Ih Qçyw, ’Ih Mnbtw, teos Aumou, teos Harkesilaou e outros. Conforme Albrecht Alt, a evolução histórico-religiosa deve ser reconstruída como se segue. A religião dos pais é fundada pela revelação de uma divindade a uma determinada pessoa humana, individual, inconfundível; mais precisamente: através da experiência revelatória da pessoa cujo nome ficou registrado na denominação. Com a sedentarização dos grupos nômades que se reportam aos pais, também os deuses dos pais se tornam, por assim dizer, sedentários; fundem-se com as divindades El dos santuários cananeus. No curso da formação da consciência de coesão de Israel como um todo ocorrem, por um lado, a singularização dos deuses dos pais — os vários se tornam um — e, por outro lado, a equiparação com Javé, a respeito do qual agora se pode dizer: desde o início foi ele quem se revelou aos pais. Na era do helenismo também os deuses pessoais dos nabateus e dos palmirenos sofreram um destino semelhante de identificação com o grande Deus: o teos Aumou aparece, então, na forma de Zeus Aniketos Helios teos Aumou.

Desde os anos 60 de nosso século, a reconstrução da religião dos pais proposta por Albrecht Alt tem sido criticada a partir de diferentes aspectos26. Certamente não todos, mas alguns autores deram a impressão de que estaríamos diante de uma teoria mal fundamentada, com muitos pontos fracos, malograda tanto no aspecto formal quanto material, para a qual sem mais delongas se deveria reservar um lugar no arquivo da história da ciência. Contudo, nem tudo que foi dito aí consegue convencer. Principalmente o passo atrás em relação a Alt, dado, p. ex., por van Seters, não parece fazer jus à questão. Propõe-se a volta à suposição de que a designação de Javé como “ Deus dos pais” ou como “ Deus do pai X ” não seria outra coisa do que uma construção tardia, quem sabe apenas pós-exílica, talhada desde o início para Javé com o propósito de enfatizar a continuidade religiosa entre o Israel posterior e seus antepassados e, de certa maneira, estender para trás a eleição de Israel. Pressuposto disto é a tendência de hoje novamente situar os textos em épocas tardias. Exatamente isso, contudo, é controvertido. Além disso, a esta interpretação opõem-se as designações arcaicas “ o Terror de Isaque” e “ o Poderoso de Jacó” , que são difíceis de explicar como invenções posteriores. O mesmo se aplica ao par de deuses dos pais que encontramos em Gn 31.53. Também a referência ao grande lapso de tempo que separa os paralelos nabateus e palmirenos do suposto material básico da tradição dos patriarcas não representa muito, pois lapsos temporais são de importância secundária em se tratando de comparações no âmbito da fenomenologia da religião. Além do mais, se fosse preciso, a teoria de Alt também poderia manter-se sem a referência aos deuses pessoais nabateus e palmirenos. Mais promissora parece a tentativa de associar os epítetos do deus dos pais à noção dos deuses pessoais protetores de pessoas e suas famílias, um fenômeno comum no Oriente. De fato, há muitos exemplos de pessoas que assumem e reconhecem como seu deus pessoal um dos deuses do panteão ou mesmo um deus anônimo. Neste caso, teríamos nos deuses dos pais não um tipo religioso específico e independente, mas simplesmente uma expressão de piedade pessoal dentro de uma religião já dada, a saber, a religião de Javé. Ficam, contudo, algumas restrições. Por que, p. ex., nenhum dos patriarcas fala de seu próprio deus como deus protetor, mas é sempre o filho ou neto que fala do deus de seus antepassados? Por que nunca o deus de um santuário — El ou Baal — aparece como deus protetor pessoal? Por que os chamados deuses dos pais se limitam às tradições dos patriarcas, não mais aparecendo posteriormente, ou aparecendo, no máximo, como alusão ou reminiscência?

Muito melhor é a abordagem crítica a partir do problema do nomadismo, ou seja, da suposição de Alt de que a religião do deus dos pais seria o tipo religioso específico dos nômades de transumância, cujo deus condutor e deus das promessas fosse o respectivo deus dos pais. Se, porém, hoje com boas razões o suposto antagonismo entre agricultores de terra cultivada e nômades de transumância está sendo substituído pelo antagonismo entre cidade e campo no interior das próprias regiões cultivadas do fim da Idade do Bronze, então a teoria de Alt é atingida em seu ponto mais sensível e, a rigor, invalidada. Acrescente-se ainda que seria melhor não formular argumentos a partir das promessas aos patriarcas (Gn 12.1-3,7; 13.14-17; 15; 17; 28.13- 15 e passim)27. Elas pertencem a estratos literários diferentes, muito separados no tempo, tendo sido configuradas sob influência do conjunto da tradição israelita posterior: como parte da argumentação teológica de escritores posteriores que pretendiam fundamentar a eleição, o crescimento e a ocupação da terra por parte de Israel recorrendo, para tanto, já aos patriarcas. Por trás das promessas não se encontra de modo algum o antigo deus dos pais, mas desde logo Javé.

Como, então, deveríamos explicar os fenômenos observados por Albrecht Alt? Há para isso uma possibilidade sensata, mesmo que naturalmente de caráter especulativo. Se está certo que Israel se desenvolveu em solo palestinense a partir do cananeísmo; se, ademais, está correto que os patriarcas foram algo assim como proeminentes “ proto-israelitas” 28, então pode-se supor que eles tivessem parte no “ pluralismo religioso interno” 29 da religião cananéia e da religião israelita primitiva a ser postulada. Por conseguinte, teríamos de imaginar a prática religiosa em três níveis ou em três planos: no plano político coletivo, ou seja, no Estado, no plano do local de residência e no plano da família. Entre os cananeus organizados no sistema de cidades-Estado, os dois primeiros planos normalmente devem ter coincidido: o deus local era ao mesmo tempo o deus estatal — abstraindo-se, talvez, das esporádicas iniciativas de formação de estados territoriais no cananeísmo30, em que as coisas poderiam ter se configurado de modo diferente. No caso de Israel, concomitantemente ou posteriormente à formação do Estado Javé assumiu o papel do deus estatal. Neste processo, os deuses locais provavelmente nem foram afetados, ou só o foram em parte, mesmo que a literatura do AT tenha a tendência de apresentar as coisas como se a relação JavéIsrael tenha sido desde o começo clara e exclusiva. Os deuses locais desapareceram somente com o surgimento do henoteísmo ou, mais tarde ainda, do monoteísmo.

A religião familiar, porém, nem era atingida por essas transformações nas camadas superiores. Só sob as condições do rigoroso monoteísmo pós-exílico é que ela se tornou obsoleta, tendo desaparecido ou passado à clandestinidade. No interior da família o objeto principal de veneração era o deus da família; a divindade pessoal protetora de um antepassado proeminente, do antigo pater famílias, que era considerado uma espécie de fundador de um culto familiar. O deus familiar cuidava da preservação, da segurança e do bem-estar da família e provavelmente também era tido como protetor dos membros individuais da mesma31. Provavelmente eles o tinham presente como uma figura de terracota dentro da casa32 e lhe ofereciam sacrifícios, do que temos pouca comprovação literária, mas testemunhos arqueológicos: pequenos altares de pedra calcária destinados ao incenso, em casas do fim Ia milênio, bem como tigelas e taças para incenso, e, a partir do séc. 9, talvez também as “ tigelas manuais” como recipientes para libaçõesj3 e outras coisas mais. Se também se praticavam sacrifícios cruentos, não sabemos ao certo. Essa religião familiar, por um lado, não era exclusiva, i. é, não impedia a família de participar do culto local ou estatal; por outro lado, ela era bastante resistente e, entre os israelitas, provavelmente foi o último bastião a ser afinal conquistado por Javé. Neste quadro que temos da religião familiar, certamente não isento de lacunas, os “ deuses dos pais” de Albrecht Alt podem ser inseridos sem muito esforço; e mesmo os posteriores nabateus e palmirenos poderiam ser aí acomodados. A circunstância de que os “ deuses dos pais” aparecem quase que exclusivamente nas tradições sobre os patriarcas deporia contra a suposição de que se trate de uma construção mais tardia.

Portanto, parece plausível, mesmo que não imperiosa, a conclusão de que a religião do deus dos pais representava realmente um tipo religioso muito antigo. Não se trata, todavia, de um tipo de religião nômade em contraposição à religião agrícola das regiões cultivadas, nem de um tipo de religião específica do Israel primitivo ou do proto-Israel, mas, de certo modo, de uma religião de cunho social. Se os patriarcas que o Israel posterior encarava como seus antepassados tomaram parte nela, isso significa que eles eram proeminentes chefes de família do período israelita primitivo — seja como for que se queira representá-los em detalhe e imaginar sua verdadeira relação com os que posteriormente seriam os israelitas. É possível extrair da tradição algo mais, e sobretudo algo mais exato sobre os patriarcas? Sobre sua época e sobre as circunstâncias de suas vidas individuais? O caráter e a forma das sagas dos patriarcas não favorecem respostas a essas perguntas. Não se pode cogitar de uma datação mesmo parcialmente confiável dos patriarcas com o auxílio da arqueologia34. A tentativa de William F. Albright de interpretar os pais como condutores de caravanas de jegues nas rotas internacionais de comércio no começo do 22 milênio a.C.35 se perde na obscuridade do que não é mais possível conhecer, além de estar prejudicada por uma abundância de suposições hipotéticas subsidiárias e de improbabilidades36. Também não são melhores as tentativas de definir os pais histórica e cronologicamente com mais exatidão por meio de observações histórico-culturais: através de reflexões sobre seus nomes, seus costumes e hábitos, sobre as concepções jurídicas da tradição sobre os patriarcas, o relacionamento da tradição com os textos cuneiformes de Nuzi-Arrapha, e outras mais37. Com isso tudo não se avança além da afirmação genérica de que os patriarcas e as sagas sobre eles enquadram-se no amplo ambiente da cultura do Oriente Antigo do 2° e do início do I a milênio a.C.

Historicamente sem serventia é também a informação — da qual exatamente nesse contexto muitas vezes se exige demais — de que Abraão seria originário de “ Ur da Caldéia” e teria partido de lá para Harã, na curva do Eufrates (Gn 11.28 Rp; 11.31 P; 15.7). Ur é Tell el-Muqayyar na Babilônia Meridional, no 32 e no 2° milênio a.C. um importante centro político e religioso dos sumérios e acádios38. Que Abraão seja originário de lá está ancorado com a maior firmeza no Escrito Sacerdotal (séc. 6/5 a.C.). Nele, a cidade é chamada sempre ’Ur Kasdim, mas os kasdim, “ caldeus” , não apareceram antes do séc. 9, como classe dominante apenas no séc. 7 a.C. na Babilônia39. Como território de origem de Abraão, a Babilônia Meridional desempenha um papel bem secundário no AT. Bem mais notáveis são as relações de Abraão e dos outros patriarcas com os arameus da Alta Mesopotâmia (Gn 11.31; 12.4; 24; 29-31). Quem quiser trabalhar com a hipótese de uma enorme migração de Abraão por toda a Mesopotâmia, não se sinta impedido. Muito mais verossímil, contudo, é que se trate de uma construção tardia, para a qual se podem mencionar ao menos três motivos: 1. Abraão deveria se originar de onde a história dos primórdios terminou catastroficamente, a terra da torre de Babel (Gn 11.1-9). 2. Na época neobabilônica (séc. 6 a.C.), Ur estava estreitamente ligada com a Harã da Alta Mesopotâmia através do culto ao deus da lua Nannar-Sin. 3. Na Babilônia Meridional moravam desde 586 exilados judeus, para os quais a partida e o êxodo de Abraão poderiam significar uma esperança de retomo para casa. Exatamente dessa época data o documento sacerdotal do Pentateuco.

Gênesis 14, finalmente, o único texto que coloca um dos patriarcas em contextos históricos maiores, c, em termos históricos, inteiramente inaproveitável. Esse capítulo não pertence a nenhuma das fontes do Pentateuco. Nele Abraão aparece como guerreiro; é a última coisa com que o leitor conta. Esta e outras estranhezas, todavia, também constituem a atração da narrativa. Não estranha que muita perspicácia histórica, mas também muita especulação aventurosa tenha sido aplicada nela40. Narra-se o seguinte: quatro grandes reis do norte e do leste haviam sujeitado, durante 12 anos, cinco reis menores no extremo sul do Mar Morto. No 13a ano, os reis menores ousaram a sublevação. No 14a ano os reis maiores organizaram uma expedição punitiva conjunta. A batalha ocorreu no Vale de Sidim, e no decorrer dela os reis menores apanharam duramente. Com ricos despojos e muitos prisioneiros, os vencedores partiram. Nesse ponto, súbita e inopinadamente, Abraão entra em cena, pois entre os prisioneiros se encontra seu sobrinho Ló. Ele arregimenta 318 homens41 e começa a perseguir os grandes reis. Alcança-os na região de Dã, derrota-os, tira deles os prisioneiros e os despojos e os persegue até para além de Damasco. Após seu retorno, Melquisedeque, o rei-sacerdote de Salém, lhe traz pão e vinho e o abençoa. Abraão lhe dá o dízimo de tudo, e ao rei de Sodoma entrega todos os despojos apreendidos. Em si já basta esse resumo. Enumerar e fundamentar uma por uma todas as impossibilidades exigiria espaço demais. Precisamos nos dar por satisfeitos com algumas indicações. Em Gn 14, pelo menos três partes estão interligadas de modo relativamente frouxo: o relato da guerra (vv. 1-11), a história de Abraão (w . 12-17, 21-24) e o episódio de Melquisedeque (w . 18-20). Dessas três partes o relato da guerra ainda é a que mais parece ter como base lembranças históricas. Mas quais? Até este momento ninguém consegue dizer isso com segurança, nem mesmo Roland de Vaux, que fez um grande esforço em torno de Gn 14, procurando sobretudo tomar compreensível a inusitada rota da marcha dos grandes reis. Ele conta com a possibilidade de que a ação contra os reis menores junto ao Mar Morto tenha sido apenas um episódio dentro de um empreendimento maior: um empreendimento visando o controle das ligações comerciais entre a Síria e a Arábia ao longo da estrada régia transjordânica. Contudo, abstraindo do fato de que, com isso, no máximo se poderiam explicar as operações na Transjordânia, mas não os desvios para Cades e Dã, nem de Vaux nem outros conseguem localizar historicamente o empreendimento. De Vaux situa-o, e assim também a Abraão, no séc. 19 a.C. Mas nem desse nem de outros séculos se conhece uma ação político-militar da qual tivessem participado conjuntamente a Babilônia, o Elão e o reino hitita. Algo semelhante não pode ter havido.

Também os nomes dos grandes reis não levam adiante. A impressão que se tem ao ler esses nomes é que um autor tardio, à procura de nomes estranhos e antigos, tivesse aberto uma enciclopédia histórica, lendo nela, porém, apenas os verbetes e não os artigos. Anrafel de Sinear (Babilônia) não é de modo algum, como antigamente muitas vezes se supunha, Hammurapi de Babilônia, mas corresponde ao nome acádico Amar-pi-ef4; um rei com esse nome se conhece de Qatna, na Síria. Arioque de Elasar (?) é provavelmente o nome hurrita Arriwuk; que, p. ex., um filho de Zinrilim de Mari ostenta. Quedorlaomer (Kuter-Iaqamar) é um nome elamita freqüente, mas justamente não está documentado entre os numerosos reis de Elão. Tidal é provavelmente o termo hitita Tut/dhaliya — mas que rei com esse nome é este, e por que se chama “ rei dos povos”? Com tudo isso não se chega a nenhum resultado. Gênesis 14 decerto não é nada mais do que uma criação pós-exílica artificial e tardia. Não se consegue perceber para que fim foi criada; talvez, entre outras razões, para mostrar que também o bendito patriarca Abraão certa vez esteve envolvido com a grande política. O episódio de Melquisedeque, entretanto, deve ser mais antigo. O essencial para a fé e para a compreensão da história não reside nas sagas dos pais como composições individuais, mas no fato de que os patriarcas se tomaram ancestrais de todo o Israel e portadores da promessa divina de descendência e propriedade de terra cultivada. A importância dos patriarcas para a tradição israelita, portanto, é o resultado de um trabalho interpretativo em grande estilo, pelo qual o Israel posterior pôde compreender sua etnogênese e a tomada de sua terra como obra da condução de Deus, já de há muito preparada. Todas essas ponderações, por mais hipotéticas que forem, depõem em favor de uma datação dos pais numa época não muito anterior à tomada da terra e em favor de sua pertença àqueles grupos de pessoas dos quais surgiu o próprio Israel.

—– Retirado de: Herbert Donner – Historia de Israel e dos povos vizinhos, vol.1.


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