O êxodo do Egito é a redenção do Antigo Testamento. Essa não é uma maneira anacrônica e alegórica de falar. Ela está baseada na coerência interior da própria religião do Antigo e Novo Testamentos.
Esses dois, não importando quão diferentes sejam suas formas de expressão, são, contudo, um em princípio. O mesmo propósito e método de Deus se desenrolam por meio de ambos. Se, como se tem insistido nos dias de hoje, o Antigo Testamento devesse ser rejeitado e desprezado como indigno da religião ideal, pode-se ter certeza de que essa atitude seria por causa do abandono do todo da linha soteriológica da religião bíblica como tal.
É possível que haja, é claro, características não amistosas na opinião de alguns contra o Antigo Testamento, mas a fonte do antagonismo é mais profunda, e será encontrada, quando examinada mais de perto, em relação ao que o Antigo e o Novo Testamentos têm em comum: o realismo da redenção. A substância sobre a qual a impressão foi feita durante o Antigo Testamento pode ter sido o barro; porém, a matriz que a imprimiu traz o delineamento da Lei e verdades eternas. Nós podemos observar, aqui, mais uma vez, como a revelação por intermédio das palavras está inseparavelmente unida aos fatos, como por trechos inteiros a linha de demarcação entre atos e palavras parece ter desaparecido.
Há uma diferença irreconciliável entre a consciência religiosa que, a todo o tempo, está claramente ou outras vezes indistintamente consciente de que ela se desenvolve e é nutrida por meio desse solo factual, e a consciência que se emancipou da crença na realidade dos fatos. Ela não é uma diferença de crença somente; ela é uma diferença na atmosfera e sentimento do ser. Apesar de toda sua limitação, o crente do Antigo Testamento se coloca mais próximo de nós nesse aspecto do que os assim chamados idealizadores modernos ou espiritualizadores da religião cristã. A relação mais estreita entre os fatos e a prática da vida religiosa é observável exatamente no ponto a que chegamos agora. O Decálogo se abre com uma das mais profundas referências ao procedimento soteriológico de Deus para libertar o povo do Egito [Ex 20.2]. A primeira oferta do beritb é precedida por uma declaração ainda mais elaborada que parece ter sido batizada no próprio calor da afeição divina [19.4]. E o longo discurso introdutório de Deuteronômio, em espírito semiprofético, compartilha do mesmo tom e caráter. Num período bem posterior, em Isaías, o povo é convocado a relembrar das raízes últimas da origem da sua religião nas coisas que Yahweh fez por eles no passado remoto [Is 51.2].
Quais são, então, os princípios excepcionais da libertação no êxodo que foram feitos, dessa maneira, reguladores de toda salvação futura e que une, de modo indissolúvel, as coisas do passado e as coisas por vir?
LIBERTAÇÃO DO CATIVEIRO ESTRANGEIRO
Nesse contexto, lemos a autodeclaração de onipotência do Deus de Israel sobre todos os outros deuses.
Primeiramente, a redenção aqui é retratada como, antes de qualquer coisa, uma libertação de um reino objetivo de pecado e maldade. A predileção pelo pecado internalizado e individualizado não encontra nenhum apoio. Nenhum povo de Deus pode vir à existência sem ser liberto de um mundo que se opõe a Deus e a eles desde o seu nascedouro. O poder egípcio é, nesse aspecto, tão verdadeiramente típico como o poder divino que efetuou o livramento. Sua atitude e atividade foram formadas tendo-se isso em vista. O que retinha os hebreus não era uma mera dependência política, mas dura servidão. Sua condição é representada como uma condição de escravidão. Os egípcios os exploraram para fins egoístas à custa do bem-estar de Israel. Desde então, a ideia de redenção tem a imagem de escravidão a um poder estrangeiro (ou alienígena?) ligada a ela. João 8.33-36 bem como Romanos 8.20,21 remontam a essas origens distantes.
Além disso, um grau elevado de malignidade é atribuído a esse poder escravizador, de modo que ele tipifique adequadamente a mente do pecado no mundo. O endurecimento do coração de faraó pode ser explicado pela mesma razão, ao menos em parte. Sua dureza de coração tinha o propósito de revelar a verdadeira natureza interna daquilo que ele figurava. É claro que essa dureza não era de maneira alguma um ato divino arbitrário; era um processo judicial: o rei endureceu primeiro e, então, em punição a isso, ele foi, posteriormente, endurecido por Deus. Essa é a bem conhecida Lei escriturística do pecado sendo punido, um abandono irrecuperável ao pecado, uma Lei que não está confinada ao Antigo Testamento, mas que é encontrada no Novo Testamento também. A ética da questão, contudo, não nos interessa aqui, no momento. Esse reino do mal encabeçado por faraó abarca, primeiramente, os elementos humanos do paganismo. Provavelmente, entretanto, o relato não tem a intenção de se limitar a isso.
O pecado é, a cada instância, mais do que a soma total de influências puramente humanas que ele traz sobre suas vítimas. Um fundo religioso, demoníaco, é delineado por trás das figuras humanas. Não somente os egípcios, mas também os deuses egípcios, estão envolvidos no conflito. Deve-se atentar para as pragas. Elas estão inextricavelmente ligadas com a idolatria egípcia. Essa idolatria era uma adoração baseada na natureza, abarcando os aspectos bons e benéficos bem como os aspectos maus e rejeitáveis da natureza. Yahweh, ao fazer que esses ferissem os próprios adoradores, demonstra sua superioridade sobre todo o reino do mal. Isso é declarado em palavras tais como: “executarei juízo sobre todos os deuses do Egito. Eu sou o SENHOR” [ Ê x 12.12], Os mesmos poderes demoníacos que foram mencionados na redenção antitípica efetuada por Cristo e que estavam ativos na sua forma mais intensa têm participação nessa oposição ã redenção de Israel do Egito.
LIBERTAÇÃO DO PECADO
Já falamos o suficiente sobre o aspecto objetivo dessa matéria. Havia, contudo, um lado subjetivo também. Os hebreus foram libertados não simplesmente de uma escravidão externa, foram igualmente resgatados do pecado e da degradação espiritual interiores. Duas posições têm sido tomadas quanto à condição religiosa do povo desse período. Uma diz que eles tinham praticamente perdido todo o conhecimento do Deus verdadeiro, e estavam profundamente imersos nas e identificados com as práticas idólatras dos egípcios. Essa é a posição de John Spencer, um teólogo inglês do século 17, em sua obra De Legibus Hebraeorum Ritualibus.
Em relação a ela havia outra peculiar concernente à origem da Lei cerimonial imposta ao povo no tempo de Moisés. O propósito dessas leis era deixar um espaço aberto para um amadurecimento gradual dos hebreus no qual eles iriam abandonando os costumes idólatras egípcios. Deus, temendo que uma proibição abrupta desses costumes causasse uma recaída no paganismo, foi condescendente em tolerar aquelas observâncias por um tempo. A outra posição cai no extremo oposto. Ela supõe que os israelitas tinham se conservado completamente isentos da contaminação da idolatria do Egito. As duas posições, nas suas formas extremadas, devem ser rejeitadas. A verdadeira religião não havia desaparecido inteiramente de Israel. Eles ainda conheciam o suficiente para perceber que Yahweh era o Deus de seus pais, pois foi no nome do Deus dos patriarcas que Moisés foi enviado a eles. Nomes compostos com E l são encontrados no registro. Eles devem ter tido a impressão de serem, até certo ponto, semíticos em suas tradições religiosas.
Por outro lado, não estamos autorizados a emitir esse julgamento relativamente favorável sobre o povo como um todo. Em Josué 24.14 e Ezequiel 23.8,19, 21, lemos que Israel serviu a ídolos no Egito. A história da jornada no deserto, com suas repetidas apostasias, como a adoração do bezerro de ouro, torna-se ininteligível, a não ser que assumamos que o povo havia deixado o Egito num estado de corrupção religiosa. Talvez, também, a adoração da imagem do bezerro e a adoração de demônios, relatadas em Levítico 17.7, devam ser interpretadas com o sendo de origem egípcia. Com o mostraremos mais tarde, não há evidência de que a Lei ritual era uma mera acomodação às tendências corruptas do povo. Porém, permanece verdadeiro que deve ter existido o suficiente de declínio e corrupção religiosa entre eles para fazer de sua libertação do Egito mais do que um benefício externo nacional sem um significado espiritual mais profundo.
Deve-se lembrar de que na história do povo de Deus, a escravidão externa é frequentemente concomitante com a infidelidade espiritual a Yahweh. Nós não precisamos negar, é claro, que as causas secundárias da opressão de Israel residem em considerações políticas e antipatias raciais. Só que desenvolvimentos políticos nunca fornecem uma explicação suficiente do que acontece na história sagrada. Os egípcios eram somente instrumentos para levar adiante os desígnios de Deus. Que Deus havia ordenado aquela escravidão de antemão para um propósito específico é provável pelo fato de ela ter sido predita a Abraão por ocasião da instituição do berith [Gn 15.13],
UMA APRESENTAÇÃO DA ONIPOTÊNCIA DIVINA
Em seguida, observamos, quanto ao método de libertação, a ênfase lançada sobre a onipotência divina para trazê-la. O poder de Yahweh, acima de tudo, é celebrado no relato. Isso fornece o tom da canção de Êxodo 15, uma profunda interpretação poética do êxodo por essa óptica [vs. 6,7, 11]. Com o já salientado, há uma acumulação sem igual de milagres nessa parte da História. O número de pragas é dez, o número escriturístico que indica plenitude. A divisão das águas do mar é o ato culminante no grande drama de redenção. A poesia sacra posterior gostava de celebrar esses atos de Deus e de basear neles a esperança segura de libertações futuras similares. A onipotência de Yahweh e o êxodo permanecem, daqui por diante, associados na tradição de Israel.
Com essa ênfase no elemento de poder, não é de admirar que tudo na História é cuidadosamente arranjado para colocá-lo em relevo apropriado. Quando Moisés, na sua força, procurou libertar o povo, o resultado foi um fracasso. Quando, depois de um intervalo de quarenta anos e agora comissionado por Yahweh para conduzir e efetuar a redenção, ele assume a tarefa num espírito totalmente oposto de absoluta dependência de Deus, reconhecendo completamente a própria incapacidade, Deus promete que ele ferirá o Egito com todos os seus prodígios [Ex 3.20], Ele coloca seus prodígios nas mãos de Moisés [4.21]. Ele prossegue em redimir a Israel com um braço estendido e grandes julgamentos [6.6]. O endurecimento do coração de faraó, enquanto tinha a intenção de fazer dele um expoente declarado do mal, tinha também a intenção de prolongar o processo de libertação, criando, assim, espaço para a mais completa demonstração de poder. Isso é dito em palavras como: “Eu, porém, endurecerei o coração de Faraó e multiplicarei na terra do Egito os meus sinais e as minhas maravilhas” [7.3]. A tarefa tinha de ser a mais difícil, a fim de que a onipotência que a opera pudesse ser a mais evidente. Toda a existência, personalidade e conduta de faraó parecem ter sido moldadas com isso em vista. Em Êxodo 9.16, Yahweh declara: “mas deveras, para isso te hei mantido, a fim de mostrar-te o meu poder, e para que seja o meu nome anunciado em toda a terra”. Mesmo se as palavras “te hei mantido” signifiquem “te conservei por mais tempo no palco da História, enquanto que sob circunstâncias ordinárias terias caído antes”, elas confirmam a visão em questão. Esse é o caso, ainda mais se a ênfase mais forte for adotada: “Eu fiz que te apresentasses na cena”, ou seja, eu vos chamei à existência [cf. Rm 9.17], Finalmente, o conflito entre as obras efetuadas por Moisés e os sinais dos magos egípcios mostra que uma relação na esfera de poder é descrita.
UMA DEMONSTRAÇÃO DA GRAÇA SOBERANA
Mais uma vez, a libertação de Israel do Egito era uma demonstração sinalizadora da soberana graça de Deus. Os egípcios foram julgados com respeito à sua idolatria, e os israelitas foram resgatados e poupados, apesar de terem se associado com seus opressores nas práticas idólatras. Está claro que o princípio da graça soberana somente explicará tais fatos. Isso é chamado de “distinção entre os egípcios e os israelitas” [Êx 8.23; 11.7]. Em harmonia com isso, é afirmado repetidamente no Pentateuco que a fonte do privilégio de Israel está exclusivamente na livre graça divina, não em quaisquer qualidades que o povo possuísse [Dt 7.7; 9.4-6]. Na verdade, o amor de Deus pelo Israel mosaico tem suas origens no seu amor pelos pais. Isso faz que o conceito do relacionamento estabelecido pela livre escolha divina retroceda um pouco, mas não altera sua natureza, pois os pais também foram escolhidos no amor soberano de Deus.
A ideia de filiação, aparecendo aqui pela primeira vez [cf. Gn 6.2], pertence à mesma linha de pensamento [Ex 4.22; D t 32.6], Filiação é de natureza não-meritória. Nós também encontramos, de novo, o uso afetuoso do verbo “conhecer”, encontrado previamente com relação a Abraão [Ex 2.24,25]. O verbo “escolher” também é usado. Isso é peculiar em Deuteronômio [7.6,7; 14.2]. Finalmente, o termo “redenção” entra em seu uso religioso. Seu significado específico (diferente de termos gerais como “resgatar”, “libertar”) reside precisamente em descrever o readquirir em amor de alguma coisa possuída anteriormente. Ainda não há no Antigo Testamento nenhuma reflexão naquele elemento tão facilmente associado com o conceito, aquele de que um preço de redenção é pago. Somente pelo uso metafórico é que esse pensamento emerge numa instância isolada [Is 43.3]. O sentido, nas passagens do Pentateuco, é simplesmente aquele de afeição demonstrada na renovação do direito antigo de posse. Dessa maneira, nos capítulos finais de Isaías, nos quais o pano de fundo é a libertação do exílio, o termo é bem frequente. As passagens do Pentateuco são: Êxodo 6.6; 15.13 e Deuteronômio 7.8; 9.26; 13.5; 21.8.
O NOME DE DEUS
Em Êxodo 6.3, lemos que a revelação do nome pertence ao período m osaico e é característica dele. Partindo da inferência de que o escritor da passagem não poderia tê-lo considerado como conhecido em tempos mais antigos, o criticismo divisivo tem feito que essa passagem seja analisada com base na distinção entre documentos eloístas e javistas. Há, todavia, fortes objeções a essa exegese literalista da passagem. E a priori improvável que Moisés tivesse sido enviado aos seus irmãos, os quais ele teve de fazer relembrar do Deus de seus antepassados, com um novo, previamente desconhecido, nome desse Deus em seus lábios. Há também o fato de que a mãe de Moisés tem um nome composto com Yahweh, na sua forma abreviada Jo, ou Joquebede. E esse nome ocorre no mesmo documento em Êxodo 6.3. Daí, a suposição adicional, desfavorecida por todos, de uma interpolação do nome Joquebede. Quando olhado de perto, Êxodo 6.3 não requer um desconhecimento absoluto prévio da palavra. A declaração significa simplesmente que os patriarcas ainda não possuíam o conhecimento prático e a experiência daquele aspecto do caráter divino que encontra sua expressão no nome. “Conhecer”, no conceito hebraico, e a mesma palavra na nossa conversa do dia-a-dia, são duas coisas bem diferentes. Até mesmo o contexto de Êxodo 6.3 concede com o provável que há uma referência a um conhecimento prático e experimental. Nos versículos 6 e 7 lemos: “vos resgatarei com braço estendido e com grandes manifestações de julgamento. Tomar-vos-ei por meu povo e serei o vosso Deus; e sabereis que eu sou Yahweh, vosso Deus”. Por meio da redenção, eles irão aprender, não que há um Yahweh, mas o que Yahweh significa para eles, que Yahweh é o Deus deles, ou que seu Deus é Yahweh.
A suposição de uma existência pré-mosaica do nome, é claro, não implica que ele existia tão cedo quanto o narrador em Gênesis, falando por si mesmo, o introduz. Não podemos dizer quanto ele é mais antigo do que o êxodo. A priori, a hipótese não pode ser excluída de que em tempos mais remotos ele teve outras associações. O nome pode ter sido corrente em pequenos círculos; uma etimologia diferente daquela de Êxodo 3 pode ter sido atribuída a ele. Ele pode até ter vindo de uma fonte extra-hebraica. As opiniões, contudo, propostas a partir da última sugestão, são, algumas delas, impossíveis e todas altamente problemáticas. Uma origem egípcia foi suposta por Voltaire, Schiller, Comte e outros. Isso está fora de questão, porque a libertação do cativeiro do Egito é representada com o envolvendo um conflito entre Yahweh e os deuses do Egito.
De acordo com Colenso, Land e outros, o nome é semítico das terras do norte, e designava, em seu ambiente anterior, o deus do céu, doador da fertilidade, em cuja honra a adoração em orgias da Síria era praticada. Existe aquilo que dá a entender que é um oráculo antigo, no qual o nome Iao é identificado com Dionísio, de maneira que Yahweh seria o Dionísio cananita. Inicialmente, um alto grau de antiguidade foi atribuído a essa peça, de modo a conceber como possível a explicação de que a forma síria Iao era a original, de onde os hebreus teriam emprestado o Yahweh deles. Isso, é claro, tornou-se impossível quando uma data recente se tornou aparente, pois nessa data os israelitas já estavam, há muito tempo, de posse do nome Yahweh. A probabilidade nessa suposição seria que os adoradores sírios do tal Iao teriam tomado emprestado o nome de sua divindade do nome bem conhecido do Deus de Israel.
Mais recentemente, tem-se pensado que o nome foi descoberto nas listas egípcias mais antigas dos lugares cananitas, como Baitiyah, Babiyah. Também foi encontrado o nome de um rei de Hamath, lendo-se Yaubidi nas inscrições assírias. A hipótese mais em voga entre os wellhausianos é que Yahweh era um deus dos kenitas, uma tribo no distrito do Sinai, dos quais o sogro de Moisés pertencia, o que explicaria a associação de Yahweh com aquela montanha. Então, há ainda a hipótese de que Yahweh é idêntico à forma Yahu, ou Yah, que ocorre nos nomes próprios assírio-babilônicos. Os sacerdotes hebreus devem tê-lo trocado por Jahveh, a fim de sugerir a derivação de hayah, “ser”.
Igualmente futeis, como a maioria dessas teorias de procedência, são algumas das etimologias, altamente naturalistas, propostas para a explicação do sentido original da palavra em si. Ela tem sido relacionada com hawah, “cair”, com vistas ao sentido de “aquele que se apressa, colide”, um deus da tempestade, ou, ainda mais primitivamente, um meteoro caído do céu. Ou hawah tem sido comparado no sentido de “soprar”, o qual está presente em árabe. W ellhausen observa que: “a etimologia é bem óbvia; ele cavalga pelo ar, ele sopra”. De novo, o sentido de “cair” foi introduzido seguindo essa tendência. Jahveh é uma forma no hiphil, que quer dizer: “aquele que causa a queda”, ou o deus da chuva, da tempestade. Assim pensam Robertson Smith, Stade e outros. Bem menos naturalística é a derivação igualmente do hiphil, proposta por Kuenen, “aquele que causa o ser”, ou o Criador, ou, com uma inclinação mais histórica, “aquele que faz que suas promessas venham a ser”, ou seja, as cumpre.
Todas essas derivações são puras conjecturas. E óbvio que, qualquer que seja o sentido original por trás do uso veterotestamentário, se é que houve um, o sentido autoritativo para a religião de Israel foi fixado por meio da revelação de Êxodo 3, e somente com isso é que temos de lidar aqui. Deus diz a Moisés: Ehyeh asher Ehyeh. Então isso é abreviado para Ehyeh e, finalmente, mudado da primeira para a terceira pessoa Yehweh. A solução do mistério deve residir na forma mais plena.
O que tal sentença pode significar? Mais uma vez aqui, em que o questionamento é exclusivamente quanto à intenção do escritor, as opiniões dos expositores variam consideravelmente. Para começar, temos a questão da construção (da sentença). Nós podemos ler a sentença de maneira linear: “Eu sou o que Sou”, e anexar nossa interpretação, seja ela qual for, diretamente a isso. Ou, e isso é igualmente sintaticamente possível em hebraico, podemos começar lendo do meio, colocando a primeira palavra no fim, o que leria: “Eu, que sou, verdadeiramente sou”. Mais ainda, quanto à questão de interpretação inclui-se a analogia da sentença construída de modo semelhante, Êxodo 33.19, que, uma vez igualmente associada com o nome Yahweh, deve ser reguladora, pelo menos quanto à construção, para a fórmula de Êxodo. Se lermos lá: “Eu serei misericordioso com quem eu for misericordioso”, teremos que ler aqui: “Eu sou o que sou”. Por outro lado, se interpretarmos: “a quem Eu for misericordioso, Eu serei (verdadeiramente) misericordioso”, nós não podemos fazer diferente aqui em Êxodo 3.14: “Eu, que sou (verdadeiramente), sou”.
Tendo isso em vista, vamos agora brevemente revisar as soluções oferecidas. Uma é que a sentença expressa a inescrutabilidade de Deus: “Eu sou o que Eu sou; o que eu sou não é para ser inquirido com curiosidade; meu ser não pode ser expresso por nenhum nome”. Contra isso pesa o fato de que todos os outros nomes divinos expressam alguma coisa. Um nome para expressar o inominável, ou seja, o que não pode ser conhecido, estaria, sob as circunstâncias, completamente fora de propósito. Era nessa conjuntura de importância suprema que Deus deveria, de alguma maneira marcante, revelar-se, a fim de revelar e definir algum aspecto de seu caráter, tão necessário para o povo conhecer. Nessa visão, é claro, a construção é linear.
Outra solução é que Deus assevera a realidade de seu ser. Para isso, a construção terá de começar pelo meio: “Eu, que sou (verdadeiramente), sou”. Em sua forma mais filosófica, isso pode ser chamado de opinião ontológica. Isso se aproximaria do que os estudiosos tentaram expressar na doutrina que Deus é puro ser. Mas essa é uma ideia por demais abstrata para ser adequada aqui. Ela não traz nenhuma aplicação direta às necessidades dos israelitas nesse momento. Eles, certamente, tinham alguma coisa mais urgente para fazer do que se perderem em especulações referentes ao modo da existência de Deus. A o perceberem isso, alguns, ainda que retendo a mesma ideia, esforçaram-se para dar a essa definição um tom mais prático. Yahweh é chamado de Ser Único par excellence, porque ele atesta o seu ser por meio de suas ações. Tal associação não é estranha ao instinto da nossa língua moderna. Nós dizemos que uma coisa é “atual”, significando que é “real”, apesar de que “atual”, etimologicamente, significa “aquilo que age”. Mas seria difícil provar que isso era conhecido do instinto hebraico de formação da linguagem. Ela é, antes, uma ideia abstrata, e nenhum traço dela tem sido descoberto no idioma hebraico.
Um terceiro esforço é aquele de Robertson Smith. Ele chama atenção para Êxodo 3.12, no qual Deus diz a Moisés: “Eu serei contigo”, e considera a cláusula “Eu serei” como uma abreviação para “Eu serei contigo”. Essa abordagem requer, mais uma vez, que a sentença seja lida começando pelo meio: “Eu, que serei contigo, certamente serei convosco”. Há duas objeções a isso. Primeiro ela muda o singular “tu” endereçado a Moisés para o plural “vós” endereçado aos israelitas. Além disso, ela assume que em tal declaração a parte realmente importante do sentido pode ser deixada sem ser suprida. O “contigo” é, na verdade, o núcleo da promessa toda, e isso teria permanecido não expresso.
A antiga opinião tem menos chances de ser objetada do que essas soluções oferecidas. De acordo com ela, a leitura da cláusula de forma linear dá expressão à autodeterminação, à independência de Deus, que, especialmente em associações soteriológicas, nós estamos acostumados a chamar de sua soberania. Essa opinião recebe apoio considerável da sentença análoga em Êxodo 33.19, no qual o contexto parece, antes, evocar uma afirmação da soberania de Deus em conceder a graça da visão de si mesmo, do que uma segurança no sentido de, ao prometer ser misericordioso, ele ser verdadeiramente misericordioso. Tomado desse modo, o nome Yahweh significa primariamente que em tudo o que Deus faz por seu povo ele é interiormente determinado, não sendo movido por quaisquer influências exteriores.
Contudo, disso advém outro pensamento, inseparável dela, ou seja, que ao ser determinado interiormente e não sujeito à mudança interior, ele está completamente imune à mudança, particularmente, não sujeito a ela com relação a seu povo. Entendido dessa maneira, o nome se encaixa admiravelmente à situação de sua revelação. Yahweh, o Deus absoluto, agindo com total liberdade, era o mesmo Deus a ajudá-los em sua indignidade quanto a si mesmos e em sua impotência quanto aos egípcios. Que a soberania é a base para que Deus se dê a si mesmo para Israel é declarado em palavras como: “Tomar-vos-ei por meu povo e serei vosso Deus; e sabereis que eu sou Yahweh, vosso Deus” [Êx 6.7], O outro elemento, contudo, aquele da fidelidade, é igualmente enfatizado desde o começo: “Yahweh, o Deus de vossos pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó, me enviou a vós outros; este é o meu nome eternamente, e assim serei lembrado de geração em geração” [Êx 3.15]. “Lembrei da minha aliança. Portanto, dize aos filhos de Israel: eu sou Yahweh” [Êx 6.5,6, 8], Em Êxodo 33.19, no qual Deus dá uma revelação de sua soberania para Moisés, essa é trazida em relação com o nome Yahweh. Em trechos posteriores da Escritura, o segundo elemento, aquele da fidelidade, é associado especialmente ao nome [Dt 7.9; Is 26.4; Os 2.20; M l 3.6],
—– Retirado de: Geerhardus Vos – Teologia Bíblica – Antigo e Novo Testamento.
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