O período pré-letrado do sul da Mesopotâmia foi, em todos os sentidos, uma cultura em irrigação. As terras baixas da planície de Sinar eram formadas pelos constantes depósitos de lama vindos do Tigre e do Eufrates. Este processo ainda está em operação hoje em dia, com o resultado de que as cidades como Ur, que estiveram anteriormente junto à costa, agora estão a uma distância considerável do Golfo Pérsico. Somente depois que os canais tinham sido escavados, para drenar o rico solo aluvial e barragens foram construídas para controlar as constantes enchentes, é que a riqueza agrícola da Suméria pôde desenvolver-se. Isto foi alcançado com tal sucesso, que no final do quarto milênio a.C. os povos do sul da Mesopotâmia tinham uma grande variedade de cereais, frutas e legumes, incluindo trigo, painço, gergelim, cebolas, feijões, tâmaras, azeitonas, uvas e figos.
Os pequenos vilarejos que tinham caracterizado o período de ai Ubaid se desenvolveram em um número comparativamente menor de cidades-estado, que exerciam um monopólio sobre o território ao seu redor. Cada uma destas cidades-estado era dedicada a uma divindade-patrona, que era venerada como o dono ausente da terra. O seu templo era o edifício dominante da comunidade, e os sacerdotes eram seus servos, e a eles era confiada a responsabilidade de cuidar da terra. Em todo o período de ai Ubaid os sacerdotes já tinham introduzido o princípio de uma revolução urbana, pela sua meticulosa organização do trabalho da comunidade para a drenagem e o cultivo da terra. Nesta época, o templo tornou-se o centro da economia local, e o principal dos sacerdotes, ou ensi era reconhecido como um governador civil que era geralmente chamado de ishakku ou “lavrador arrendatário”.
Este arranjo representava uma antecipação da regra patriarcal, pois dava sanção a um estado teocrático e permitia que os sacerdotes se organizassem de tal maneira que pudessem administrar as terras da divindade de maneira eletiva, e também supervisionar o desenvolvimento da vida comunitária. Estas responsabilidades necessitavam da preservação de registros e explicações, que pudessem ser preservadas nos arquivos do templo para futura reterência. Isto é considerado, pelos arqueólogos, como o início de um sistema de expressão que evoluiu na escrita,” e pode ter sido estimulado pelos desenhos simbólicos dos selos do período ai Ubaid. Descobriu-se que as tábuas recuperadas dos estratos de Uruk em Ereque consistiam de relatos primitivos, escritos pelos sacerdotes do templo como parte de suas tarefas administrativas.
O relacionamento que existia entre a cidade e o santuário era de interdependência. Como estado, a cidade englobava a unidade política, ao passo que o templo proporcionava o impulso material e religioso para o funcionamento do estado. Durante o período dinástico, algumas cidades tiveram diversos templos, cada um dos quais reivindicava certa porção de terra como sua, da qual parte era cultivada pela comunidade do templo para seu próprio uso. Os templos também exerciam outras funções, além das de natureza religiosa ou ritual, pois eram os armazéns e as oficinas de toda a comunidade. As corporações sacerdotais foram criadas para administrar os assuntos de uma sociedade em desenvolvimento, e para regulamentar o tipo e a quantidade de trabalho que tinha que ser leito na cidade e à sua volta. Os diques e canais de irrigação precisavam de manutenção constante, e era necessário repartir este trabalho entre os membros da comunidade, e supervisionar os trabalhadores em suas tarefas. Uma proporção da produção agrícola era doada, todos os anos, ao templo, e segundo tábuas dinásticas antigas que toram recuperadas, os armazéns continham uma grande variedade de produtos agrícolas e outros, dos quais um registro detalhado era mantido. O templo parece ter sido o fator regulador da vida social nas cidades-estado, e assim exercia uma importante influência sobre todas as facetas da vida da comunidade.
Os povos que se estabeleceram na região pantanosa do delta, mais de 3500 a.C, formaram as primeiras comunidades históricas civilizadas do sul da Mesopotâmia. Eram conhecidos como sumérios, nome extraído da sua capital, Sumer, e introduziram a clássica idade suméria, que iria exercer uma influência profunda sobre todo o desenvolvimento cultural subsequente. Os sumérios eram uma raça mesclada semita, não indo-europeia, que falavam uma língua aglutinativa. Na aparência, eram escuros, com cabelos também escuros e ondulados, e barbas espessas que justificavam amplamente a descrição que faziam de si mesmos como “os de cabeça preta”. Mas eram pessoas de capacidade intelectual superior, e isto permitiu que obtivessem o domínio cultural no Oriente Médio desde uma época muito antiga.
Considera-se que tenham chegado à planície fértil de Sinar vindos das regiões montanhosas do leste, embora alguns estudiosos sejam de opinião de que eles sejam originários das montanhas do Cáucaso. Com os sumérios estava incluído outro grupo não semita, os elamitas, que podem ter feito parte da população préSuméria no sudeste da Mesopotâmia. Esta conjetura se baseia, em parte, no fato de que a cerâmica elamita encontrada em Susã, a sua capital, é mais antiga do que a cerâmica decorada suméria de ai Ubaid. Os elamitas vieram do outro lado dos montes Zagros, e a sua ocupação da planície da Mesopotâmia foi, por muito tempo, uma questão de disputa pelos sumérios. Eram, de modo geral, considerados como invasores, e em um estágio inicial no período histórico, os sumérios começaram a expulsá-los de volta à sua terra original. Ataques de retaliação caracterizaram as relações entre elamitas e sumérios por alguns séculos, e houve períodos da história suméria em que uma dinastia elamita tinha o controle militar da planície de Sinar. Mas qualquer que seja a importância política dos elamitas, é evidente que a sua cultura influenciou muito pouco os sumérios, que, em todos os aspectos, eram superiores a qualquer forma contemporânea de civilização.
Os sumérios adotaram e ampliaram o sistema de cidades-estado que vinha existindo desde o período ai Ubaid. Cada comunidade reivindicava uma divindade em particular (ou divindades), e seguia o seu próprio padrão de ritual de adoração. O deus local era reconhecido como o governante supremo de uma sociedade teocrática, e somente dele derivavam o poder e a autoridade. No início do período dinástico, que de modo geral é considerado como a primeira metade do terceiro milênio a.C, os deuses da Suméria estavam organizados em um panteão que era reconhecido por toda a nação. Grande importância se atribuía às atividades religiosas, e uma considerável parcela do tempo era devotada à formação de conceitos teológicos e tradições rituais. Os templos cresceram em tamanho, e eram construídos de acordo com padrões que os sumérios acreditavam terem sido revelados aos homens em visões. As terras da comunidade eram divididas entre as divindades locais, e uma proporção da produção era devolvida ao templo, sob a forma de aluguel. O tamanho global das cidades-estado também tendia a crescer, e neste período Ur ocupava uma área muito superior a duzentos acres, ao passo que a população de Lagash era pouco inferior a vinte mil habitantes.
Um resultado do desenvolvimento dos templos das cidades foi o surgimento de uma grande variedade de artesãos especializados. A riqueza da Suméria urbana tornou possível que fossem importados todos aqueles materiais que não eram nativos da planície aiuvial. Pedras semi-preciosas tais como lápis-lazúli e obsidiana estavam sendo usadas antes da fase jemdet Nasr, e no terceiro milênio a.C. houve um aumento do comércio sumário com as nações vizinhas. O cobre era importado da Anatólia, das regiões montanhosas iranianas e provavelmente do oeste da índia.” As pedras eram transportadas de Omã, no Golfo Pérsico, ao passo que o estanho era obtido do Irã, da Ásia Menor e da Síria. Prata, ouro e pinho já eram usados na fase de Uruk, e os artesãos em cobre daquele período tinham se tornado proficientes em moldar uma liga de cobre e chumbo. Novos instrumentos eram projetados para o trabalho agrícola, e eram vastamente aclamados além das fronteiras da Suméria. Os artesãos em ouro e prata voltaram sua atenção à manufatura de uma grande variedade de artigos de toalete e ornamentos pessoais. Alfinetes, brincos, conjuntos de toalete e outros artigos de delicado talento artístico e execução eram muito procurados no início do período dinástico, e os gostos dos ricos e dos pobres, igualmente, eram satisfeitos por meio de produtos de diferentes qualidades.’ Recipientes de metal gradualmente substituíram a cerâmica decorada de uma época anterior, que agora era considerada adequada somente para os pobres. Magníficos vasilhames modelados em ouro, prata, bronze e pedras semi-preciosas eram produzidos em quantidade, em uma vasta variedade de formatos e tamanhos. O talento artístico exibido na decoração destes artigos reflete a habilidade e a arte do quarto milênio a.C, quando a arte suméria estava em seu auge.
A Ascensão da Realeza
Os templos das cidades do início do período dinástico não escaparam incólumes ao desenvolvimento da sociedade, pois a sua própria autoridade passou por certo grau de modificação pela transferência do poder de uma assembleia de anciãos ao personagem de um indivíduo. No entanto, os anciãos não foram substituídos no processo, pois a ideia original de uma única jurisdição surgiu da necessidade de que um membro da assembleia assumisse a responsabilidade de liderar em uma emergência. A função de governante ou lugal era temporária, por definição, mas em determinados casos uma sucessão de crises locais tendia a dar-lhe uma forma mais duradoura. Originalmente, não havia nada de uma natureza hereditária conectada à função de rei ou governante, pois ele agia em nome da assembleia de anciãos, e, no final das contas, como um auxiliar da divindade patrona da cidade, uma vez que a realeza era, de qualquer forma, uma questão de escolha divina. Se um filho sucedesse ao seu pai como lugal, isto só poderia ser interpretado como uma indicação de aprovação divina, uma vez que os sumérios acreditavam que os deuses podiam retirar as bênçãos e os privilégios da realeza a qualquer tempo.
A medida que a sociedade adquiria uma natureza mais complexa, a organização das comunidades do templo também tendia a expandir-se. Um sacerdote executivo, conhecido como ensi era responsável por organizar e integrar o trabalho da comunidade, e por isso seu local de trabalho estava situado no templo principal da cidade. Ele delegava alguns de seus poderes a outros membros da classe sacerdotal, e quando a guerra os ameaçava, tornava-se a autoridade responsável pela disposição das unidades militares e a mobilização do povo. Tal posição estava aberta a considerável abuso, pois quando o bem-estar da comunidade estivesse subordinado à ambição pessoal, como acontecia ocasionalmente, a fraqueza de todo o sistema se tornava aparente.
O acúmulo de riqueza por indivíduos não era impossibilitado pelo socialismo teocrático do início do período dinástico. Uma vez que a cota especificada de bens tivesse sido entregue ao templo, o indivíduo tinha liberdade de dispor de qualquer excedente conforme julgasse adequado. Alguns se aproveitavam da maneira como o ensi organizava o fluxo de bens que entravam e saíam do país, para adquirir uma vasta variedade de bens importados, muitos dos quais vinham do vale iraniano. Restos destes bens importados foram encontrados em Ur, Susa e Mari, incluindo selos da variedade hindu e vasos de pedra do tipo que resultou das culturas Kulli no oeste da índia, na Idade do Bronze. Em sua maioria, no entanto, as importações consistiam das matérias-primas das quais os artesãos sumérios manufaturavam artigos destinados à exportação assim como ao mercado doméstico. A delicadeza e a beleza de alguns destes artigos é evidente, com base em escavações nos cemitérios em Ur e Quis, que possibilitaram eloquente testemunho do domínio que os sumérios exerciam sobre todas as outras culturas.
Já perto do final do período Jemdet Nasr, estabeleceu-se o cargo de lugal pelo desenvolvimento cie uma sucessão real, ou dinastia. Segundo as tradições religiosas de épocas mais recentes, a realeza “desceu do céu” e estabeleceu-se em Eridu. O prisma de Weld-Blundell, cujo conteúdo foi divulgado em 1923 pelo professor Langdon, preservava um texto quase completo de uma antiga lista de reis sumérios, que parece ter sido escrita durante a próspera Terceira Dinastia de Ur. A lista fornecia os nomes de oito reis, em ordem cronológica, e lhes atribuía reinados de duração exageradamente longa, nas cidades de Eridu, Badtibira, Larak, Sippar e Surupak; Berosso, um sacerdote de Marduque na Babilônia, no século III a.C, aumentou a lista de reis para dez, e aumentou para mais do que o dobro a soma de seus reinados individuais. E possível que a mesma tradição fundamente os dez reis antediluvianos de Berosso e os dez patriarcas que existiram, a partir de Adão, até a época de Noé, mas é difícil dizer até onde existe uma conexão genuína entre eles.
A Tradição Suméria a Respeito do Dilúvio
Esta antiga realeza chegou a um abrupto fim, por uma enchente devastadora que aparentemente inundou Surupak e as cidades vizinhas, inclusive Quis. O fato de que o dilúvio fizesse parte importante da antiga tradição suméria é evidente com base na declaração que vem em seguida à lista dos monarcas antediluvianos, e que dizia que “depois que veio o dilúvio, a realeza desceu do alto”, e foi restabelecida em Quis. A crise que este dilúvio ocasionou encontrou expressão em inúmeras outras formas literárias, e tornou-se uma parte popular da tradição religiosa suméria. Algumas versões até mesmo mencionavam Surupak como a própria cidade sobre a qual veio o dilúvio, e um fragmento de tábua suméria, encontrado em Nipur, praticamente no meio do caminho entre Quis e Surupak, e datado do terceiro milênio a.C, descrevia o cenário do evento.
Depois de terem criado animais e homens, e terem estabelecido as cinco cidades antediluvianas, aparentemente os deuses se arrependeram de seus atos. A terceira coluna da tábua, então, apresentava a ideia de um dilúvio que engoliria a humanidade. O piedoso rei-sacerdote Ziusudra, o equivalente sumério a Noé, foi avisado do plano por Enki, a poderosa divindade da água:
Ziusudra, em pé… ouviu (uma voz)…
“Eu vou lhe dizer uma coisa…
Pela nossa mão, um dilúvio (…) será (enviado);
Para destruir a semente da humanidade…
Esta é a decisão, a palavra da assembleia”
A quinta coluna descrevia a terrível tempestade que surgiu depois que Ziusudra tinha construído um grande barco:
Todas as tempestades de ventos, extremamente poderosas, atacaram de uma só vez…
Depois, durante sete dias e sete noites,
O dilúvio tinha devastado a terra,
E o gigantesco barco tinha se agitado sobre as grandes águas,
Apareceu Utu, que ilumina o céu e a terra.
Ziusudra abriu uma janela do grande barco…
Diante de Utu, prostrou-se
O rei mata um boi, mata um carneiro.
Depois da tempestade, o piedoso rei recebeu a bênção da imortalidade, e foi transferido para o monte de Dilmun, uma residência paradisíaca que agora é identificada com a ilha de Barein, no Golfo Pérsico.
O Dilúvio assim celebrado na tradição religiosa deve ter sido consideravelmente mais devastador do que a maioria das inundações que eram constantes na antiguidade no vale do Tigre e Eufrates. Descobriu-se que a última fase de Jemdet Nasr em Surupak continha um depósito aluvial que indicava que, certa vez, uma enchente de considerável magnitude varreu a área. Uma camada similar de cerca de dezoito polegadas de profundidade (quase 46 centímetros), pouco acima das camadas Jemdet Nasr em Quis, marcou o depósito deixado por uma enchente posterior.19 Este estrato aluvial foi descoberto por Langdon, que o interpretou como sendo o depósito do Dilúvio Bíblico, enquanto que uma conclusão similar foi obtida por Woolley, que encontrou um estrato de dois metros e quarenta centímetros de argila aluvial limpa quando escavava os níveis intermediários de ai Ubaid em Ur.
Estudiosos de escolas de pensamento muito diferentes agora reconhecem que a identificação destes depósitos de enchente com o Dilúvio de Noé do livro de Gênesis é tanto equivocada quanto improvável. Em primeiro lugar, os níveis aluviais em Ur e Quis não são contemporâneos, um fato que Woolley reconheceu quando apresentou o primeiro como sendo o verdadeiro depósito do Dilúvio. Quando Quis foi posteriormente escavada por Watelin, descobriu-se que havia diversas camadas de lama, e delas, duas importantes camadas eram separadas por uma outra de quase seis metros de ruínas. Além disto, Woolley não conseguiu encontrar nenhuma camada formada por água quando escavou Tell el-Obeid, que 6ca há somente seis quilômetros e meio de Ur. Descobertas de depósitos aluviais nos locais de Quis, Uruk, Surupak e Lagash mostram que nenhum deles é contemporâneo ao estrato da enchente em Ur.
Uma indicação de que a história do Dilúvio já era conhecida em Quis foi fornecida pela descoberta de impressões cilíndricas de Gilgamesh, o lendário herói da literatura épica da Babilônia, em níveis inferiores àquele que Langdon afirmava ser idêntico ao do Dilúvio do livro de Gênesis.22 Provavelmente a explicação mais satisfatória desta situação é o fato de que Ur, Quis e outras cidades sofriam inundações periódicas de diversas intensidades sempre que os cursos dos rios no delta eram alterados por causa de obstruções de lama e por causa de enchentes. Watelin considerou que chuvas torrenciais fossem a causa da inundação em Quis, em vez de uma onda descomunal, enquanto Parrot julgou que, para a produção de grandes depósitos de lama, as enchentes foram um fator importante, combinadas com a característica violência das tempestades na Mesopotâmia.
Seguindo o catastrófico dilúvio que atingiu a Suméria, a realeza foi retomada com a Primeira Dinastia de Quis, de acordo com a lista de reis, e teve continuidade em outras dinastias, algumas delas provavelmente contemporâneas, nas cidades de Uruk, Ur, Mari e outros lugares. O lendário rei pastor Etana foi um dos primeiros governantes de Quis, e a história de sua subida ao céu à procura da “planta do nascimento” foi preservada na mitologia suméria.
——- Retirado de R. K. Harrison – Tempos do Antigo Testamento.
Leia também:
#O Crescimento da Cultura Suméria
[…] O Crescimento da Cultura Suméria […]
[…] O Crescimento da Cultura Suméria […]
[…] O Crescimento da Cultura Suméria […]
[…] o termo que traduz, na língua suméria, a palavra deus ou deusa. O seu sinal cuneiforme é mais comumente empregado como o determinante […]