A Fé em Anthares

Em Anthares, magia pode facilmente ser confundida com tecnologia, e só não é de fato por causa da necessidade do que iremos chamar aqui de “fator fé“.

A fé em Anthares, não ser antagônica à razão, nem vai além dela. Elas concorrem: são duas espécies de um mesmo gênero. No cristianismo, a palavra “fé” (pistis) adquiriu um significado religioso muito específico, que não é o que estamos procurando aqui. Aristóteles fazia uma distinção importante entre conhecimento adquirido por demonstração (“episteme”, επιστήμη) e conhecimento de “princípios fundamentais” (“pistis”, πίστις), inferido da própria mente.

Este segundo tipo de conhecimento é a fé (a confiança, ou até mesmo “sensação”) que o usuário precisa ter para gerar magia no Universo Anthares. Em outras palavras, o fator fé em Anthares é necessário para a magia “funcionar” (ser ativada), funcionando como um tipo de “ok, Google!”, que põe a natureza a ouvir o usuário.

Mas, veja: essa fé em questão não é exatamente uma mera confiança na magia; ela é mais semelhante a uma noção numinosa (uma temor consciente: uma noção do sagrado/sobrenatural/incompreensível – explicaremos melhor mais adiante).

Talvez fique mais fácil fazendo, aqui, uma diferença básica entre pedir (tentar inserir comandos no universo) e rezar. Essa noção numinosa é a mesma base da intuição dos druidas e dos pressagistas, como explicamos já no artigo sobre Profetas, Videntes e Pressagistas. Você pode ler também um artigo que fizemos exclusivamente sobre Magia & Religião.

Pense no contexto pré-babel, onde as pessoas já entendiam natural, intuitiva e instintivamente como a magia funcionava e, portanto, que não se tratava de algo sobrenatural, mas sim parte da realidade experimental (a experiência comum e natural). No pré-babel, a convicção acerca do Idioma Criacional e seus atributos operacionais no universo eram tão claras para a humanidade, mas também tão misteriosas, que usá-la gerava, além de um tipo de temor, também uma expectativa firme no usuário, que é o que estamos chamando de fator fé. Com o tempo, por causa da imprecisão, dos sotaques e vários outros fatores de volatilidade da magia, essa expectativa firme e temor também começaram a variar muito entre as pessoas. Por isso, alguns a faziam com muita maestria, mas outros sem nenhuma precisão (ou sequer conseguiam). Isso foi bem melhor explicado no post sobre A Magia em Anthares. Além disso, o Idioma Criacional é algo natural, intrínseco à natureza, e os antigos sabiam disso. Era totalemente intuitivo.

Essa situação muda quando entramos no contexto pós-babel, onde as pessoas realmente confundem e misturam a dita “percepção” com a mera religiosidade (sensus divinitatis, que tem a ver exclusivamente com uma noção de sobrenatural). Ou seja, no mundo pós-babel, a mera certeza de que a magia existe e funciona não é suficiente se ela for uma confiança apenas no próprio método que será usado [um sistema mágico], precisando, sim, dessa percepção que vamos explicar a partir daqui.

Em resumo, a diferença do que é necessário hoje para o que era necessário antes (para fazer magia) é a mesma diferença, por exemplo, entre o que significa obedecer a Deus hoje e o que significava nos tempos de Moisés, quando não era necessário “crer no que não se vê”, porque Deus estava lá, presente entre eles.

E como se dá a fé (a credulidade em crenças básicas) no indivíduo? Caso você seja cristão, é importante notar que o que estamos chamando de fé aqui também não é o que se chama de “fé salvífica”. Trata-se, outrossim, de algo natural da humanidade. Para esclarecer, segue abaixo um comentário sobre o ato e a natureza do crer:

Uma das fontes mais importantes de crenças básicas, segundo Reid, é o testemunho. “O sábio autor da natureza plantou na mente humana uma propensão para se apoiar no testemunho humano antes que possamos encontrar uma razão para fazer isso.” Ou, como afirma Plantinga, nosso “projeto” nos leva a acreditar naquilo que os outros nos contam. Essa é sua reformulação do “princípio da credulidade” de Reid — “um processo de formação de crença por meio do qual, na maioria das vezes, nós acreditamos naquilo que nossos companheiros nos contam”. Os poderes intelectuais humanos foram projetados para produzir crenças verdadeiras com base naquilo que nos é contado. A credulidade — a predisposição de acreditar nos outros — é uma “dádiva da natureza”. É a condição indispensável de intersubjetividade e de comunidade.49 E também uma noção fundamental para a epistemologia literária, pois é o meio principal pelo qual passamos a conhecer aquilo sobre o que o texto fala. (Kevin Vanhoozer, Há um significado neste texto?, p. 339).

É preciso, agora, diferenciar o fator credulidade daquele “fator fé” necessário para operar a magia em Anthares. Abaixo, uma citação do livro “O Sagrado“, o clássico de Rudolf Otto, que vai nos ajudar a entender a diferença entre a convicção (a crença pessoal) e o fator fé para a magia:

Uma coisa é apenas acreditar no suprassensorial; outra, também vivenciá-lo; uma coisa é ter ideias sobre o sagrado; outra, perceber e dar-se conta do sagrado como algo atuante, vigente, a se manifestar em sua atuação. É convicção fundamental de todas as religiões e da religião em si que também a segunda possibilidade é viável, que não só a voz interior, a consciência religiosa, o discreto sussurro do espírito no coração, o palpite e o anseio prestem testemunho a seu respeito, mas que seja possível encontrá-lo em eventos, fatos, pessoas, em atos de autorrevelação, ou seja, que além da revelação interior no espírito também haja revelação exterior do divino. Essas revelações atuantes, essas manifestações do sagrado em perceptível autorrevelação à linguagem da religião chama de “sinais”.

Perceba o seguinte: mais do que apenas uma crença da categoria “crendice”, que se dá por pura credulidade (inclinação natural a crer nas coisas), o fator fé de Anthares está relacionado com uma convicção profunda que não é meramente pessoal, mas universal, ainda que seja intuitiva, tácita, não se tenha todas as informações, todas as premissas para essa convicção. Em Anthares, para o universo detectar o fator fé, o indivíduo precisa não apenas “ter uma crença”, mesmo que seja muito forte. Ele precisa ter essa mesma sensação atuante e vívida no momento em que tenta inserir o comando (executar a magia). Essa sensação é o que foi chamado anteriormente de “temor consciente”.

Repare então que não estamos falando do indivíduo ter uma religião para ter um fator fé eficiente. A resposta a isso também está em Otto. Nesse livro, é justamente onde ele desenvolve a ideia do sobrenatural a partir da impressão do “numinoso” captada pelas pessoas, essa sim uma emoção espiritual, que seria um “sinal do sagrado“, que ele denomina “totalmente outro“.

Os ingênuos [os humanos primitivos] pensam que vulcões, picos de montanha, lu, Sol e núvens têm vida, não por causa de uma teoria ingênua de que tudo tem “alma”, mas seguindo exatamente o mesmo critério que nós aplicamos quando reconhecemos algo vivo fora do nosso próprio eu vivo, ou seja, quando e na medida em que ali julgamos perceber ação e atuação – se com razão ou não, dependerá de observação mais detida. Segundo esse critério, aqueles objetos da natureza poderão ter vida para o observador ingênuo, só que isso sozinho ainda não leva ao mito, nem à religião. Só por terem vida, montanhas, Sol e lua ainda não serão “deuses”. Isso não acontece nem mesmo quando o ser humano se dirige a eles com um pedido. Pedir ainda não é rezar; e confiança não precisa ser religiosa. Passam a sê-lo somente quando se lhes aplica a categoria do numinoso – espantoso, terrível, assombroso, misterioso, não-entendido [ou seja: o sagrado].

Então, existe uma diferença gritante entre o fator fé e a religiosidade. Ele continua:

Não por se imaginá-los dotados de “almas”, mas por se “senti-los numinosos” é que os objetos naturais entram na antessala da religião para se transformar em divindades naturais, objetos de autêntica religião. […] Desde a época da mais primitiva religião sempre se considerou como “sinal” tudo aquilo que conseguisse despertar esse sentimento do sagrado no ser humano, estimulá-lo, fazê-lo eclodir; isto é, todos aqueles elementos e circunstâncias de que se falou acima: o terrível, o excelso, o avassalador, o assombroso e muito especialmente o misterioso e o não-entendido.

Como o próprio Otto diz, “existe um paralelo exato desse processo em outra área do juízo, que é a estética”.

Mesmo a percepção estética rudimentar apresenta uma sensação ou pressentimento do belo, que só pode provir de uma vaga noção a respeito, possuída já a priori, caso contrário nem poderia ocorrer. A percepção estética ainda rudimentar aplica a vaga noção do belo inicialmente também apenas por “confusão”, não por anamnese autêntica [quando se encontra o sagrado e não apenas algo que o aparente ser exteriormente], ao considerar belas coisas que nem o são. […] Uma vez desenvolvida a percepção estética (o bom gosto), ela então rejeita com forte repulsa aquilo que é apenas análogo ao belo, mas não belo em si, tornando-se capaz de enxergar e julgar corretamente, ou seja, reconhecer como belo aquele elemento exterior pelo qual realmente “se manifesta” aquilo do qual ele tem uma ideia interior, isto é, um critério.

Por que essa questão sobre a estética é importante? Porque no post sobre A Magia em Anthares já iniciamos a discussão sobre a humanidade ter sido criada com uma noção de Ética, Linguagem e Estética, três absolutos em Anthares. Continue lendo Otto:

[…] A prática mágica não depende da crença em almas [ou espíritos], tendo provavelmente existido antes desta. Em segundo lugar, o que importa aqui não é o tipo de forças que o efeito mágico produz, e sim qual é a qualidade das forças que levam ao seu efeito mágico. Essa qualidade dos efeitos chamados mágicos, sejam fortes ou fracos, extraordinários ou bem triviais, exercidos por alguma alma ou não-alma, somente pode ser caracterizada por aquela singular sensação do “totalmente outro“, do que falamos e que aqui aparece inicialmente como o inquietantemente misterioso. O encantamento pressupõe uma força de algo ou alguém inquietantemente misterioso. Quando ela desaparece, não há mais encantamento, e sim técnica ou habilidade.

Nesse sentido, há uma relação interessante que se pode fazer entre a fé, a tecnologia e as “gambiarras” que chamamos de sistemas mágicos nesse outro post.

Se o “poder” das glândulas tireoides do bezerro é bom contra bócio e debilidade mental, quanto mais um cérebro de sapo ou fígados de judeus? Aí tudo depende da observação, e a nossa medicina nesse aspecto se distingue daquela do pajé somente pelo fato de ser mais exata e usar o método experimental. O que entra na antessala da religião é o “poder”, sendo que sua incorporação acaba se transformando nos chamados “ritos de comunhão” e “sacramentos” apenas quando nessa ideia de poder se assentaram ideias como do “feitiço”, da “magia”, do “sobrenatural”, em suma: mais uma vez a noção do “totalmente outro”.

Assim, em Anthares, a medicina (tecnologia) num período arcaico funcionaria de qualquer maneira, mas como não é muito exata no caso da medicina dos pajés e afins, ora funciona, ora não funciona, e isso aparenta ter relação com a fé (ou, mais ainda, com o “poder” do pajé e sua ligação com a divindade, quando não, a relação da própria tribo). Por outro lado, como alguns ritos medicinais poderiam (à base da coincidência ou de muita pesquisa) alcançar a colaboração através de comandos dados ao universo, esses ritos só funcionariam se houvesse o fator fé. Dessa forma, na maioria das vezes não seria fácil um expectador do ritual saber se sua eficácia teria saído da fé, da tecnologia ou da gambiarra.

Conseguiu entender qual é a tal fé necessária para a magia funcionar em Anthares?

Fizemos também um post bem breve mostrando a relação entre a criação do Universo narrada em Gênesis, a missão da humanidade e o Idioma Criacional, sob o título A Missão da Humanidade.

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