Ulisses e Polifemo

— Muito bem, Ulisses, e agora? — disse-me Agamenon, chefe das forças gregas, logo após o saque sangrento da cidade de Tróia.

A guerra havia terminado e os troianos haviam sido completamente derrotados. Fora eu, aliás, quem dera a Agamenon a idéia do cavalo de madeira para a invasão de Tróia. Uma idéia nada má, como se viu. Mas tudo isto agora já era passado e chegara a hora de cada qual retornar para a sua casa.

— Quanto a mim, sigo para Itaca, onde minha esposa Penélope me aguarda — falei ao comandante, embarcando em meus navios repletos de despojos.

— É o que também farei — disse-me Agamenon, esperançoso. — Tenho a certeza de que minha esposa Clitemnestra também aguarda, ansiosa, a minha volta.

Agamenon estava enganado: Clitemnestra não aguardava ansiosamente a sua volta, pois havia arranjado um amante durante a guerra, o cruel Egisto, junto de quem tramava já a sua morte. Quanto a mim, um destino parecido me esperava, pois os deuses haviam decretado que minha viagem de retorno seria muito longa, e que neste período minha adorada Penélope seria alvo do assédio de uma turba de pretendentes cruéis e arrogantes.

Após a partida de Tróia, cheguei a Ismarus, onde me vi envolvido de cara em uma escaramuça com os habitantes, perdendo seis de meus homens. Depois desta parada desastrada, fui aportar na terra dos Lotófagos. Ali, após ter mandado um grupo de investigadores em terra, vi-me obrigado a ir em seu encalço e trazê-los à força de volta para as naus, pois tendo comido do lótus mágico foram todos acometidos por um desejo intenso de permanecer para sempre naquela ilha.

— Por Júpiter, o que mais ainda… ? — disse eu, olhando para os céus. “Há mais, muito mais, ainda, filho de Laertes”, pareciam me dizer os fados. Depois de navegar por alguns dias, avistei, afinal, um conjunto de ilhas.

— Será prudente aportarmos? — disse um de meus homens. — Se não me engano, esta é a famosa ilha dos Ciclopes.

— Prudente ou não, estamos sem água ou comida — respondi secamente. -Apesar de serem arredios, creio que não nos farão mal algum.

Na verdade eu estava ávido por conhecer os famosos Ciclopes, raça de gigantes que vivia na outra parte da ilha, afastada de todo o convívio humano.

Durante todo o dia estivemos caçando e observando as longas espirais de fumaça que subiam das suas cavernas; ao cair da noite, entretanto, decidi fazer uma visita à ilha, levando somente alguns de meus homens.

— Pode ser que nos presenteiem com algo valioso — falei aos marinheiros que ficaram cuidando dos barcos.

A lua estava oculta atrás das nuvens e uma pesada névoa envolvia o barco quando encostamos na praia. Afastada das outras cavernas havia uma, que era a residência de Polifemo

— gigante de altura descomunal, com um único olho localizado no meio da testa. Este ser hediondo passava o dia inteiro a pastorear o seu rebanho de cabras e ao cair da noite retirava-se para o interior da caverna, onde gastava o resto do tempo tirando o leite dos animais e armazenando o queijo e a coalhada em tachos imensos. Devia ser — como de fato se comprovou mais tarde — o espécime mais detestável e arrogante de toda aquela raça miserável, visto os seus próprios pares não lhe suportarem a presença. Difícil acreditar que aquele ser repugnante pudesse ser filho do grande Netuno, deus dos mares.

O PONTO DE VISTA DE POLIFEMO:

Deixem que lhes diga uma coisa: o relato que este solerte ladrão fez de nosso encontro ao rei Alcínoo, no país dos Feácios, é ignobilmente falso! Também, o que esperar de um sujeito cuja vida inteira é um tecido de mentiras? Meu pai é o grande Netuno, sim, e sou um digno filho dele. Agora vejamos: este trapaceiro é filho de quem? Será mesmo do velho Laertes, como dizem por aí? Não, todos sabem que ele é filho dos amores clandestinos do grande pilantra Sísifo, que uma noite antes do casamento do pobre Laertes deu um jeito de meter-se debaixo das cobertas do leito da bela noiva. Aí está! E sabem quem era o pai de Sísifo? Ninguém menos que Mercúrio, pai dos ladrões e embusteiros. E isto não é tudo: por parte da mãe, é neto ainda de Autólico, “o mais ardiloso dos homens”, segundo a voz corrente. Que tal esta? Filho de um pilantra e neto de dois ladinos. Na verdade, Ulisses não passa de um crápula; todos aqueles que tiveram a infelicidade de cruzar o seu caminho tiveram motivo de sobra para lamentar este funesto encontro — eu que o diga! Que dizer, por exemplo, de um homem que fez o que ele fez com Palamedes, seu companheiro de armas na cruenta guerra, a troco de uma mesquinha vingança? A história vale a pena, e dará bem a medida deste homem vil. Diz-se que Ulisses ardiloso se inimizou com Palamedes e escreveu uma carta falsa e incriminatória no nome deste último, onde se lia: “Muito bem, troianos, estou com vocês, é só me darem o ouro e entrego o jogo!”. Além disso, mandou esconder sob o leito do desgraçado inocente um monte de moedas, cunhadas com a efígie de Príamo, rei troiano, inimicíssimo dos gregos, o que levou Palamedes —

inocente até a raiz dos cabelos — a sofrer a ignóbil morte por apedrejamento. E que tal lhes parece agora o caráter deste patife? Agora, quanto ao fato de eu não fazer visitas nem receber ninguém em minha casa, isto não quer dizer nada, é apenas um hábito pessoal, e cada qual tem o direito de viver como quiser. Na verdade isto foi fruto de um acordo selado e dedado por todos: nenhum de meus vizinhos me visitaria a partir de tal data e eu retribuiria suas hospitaleiras ausências não indo também hospitaleiramente visitá-los. Não é este um requinte extremo de civilidade, que só criaturas nobres como eu, filho de um deus, podem se dar ao luxo de praticar? O fato é que desde então vivemos todos na santa paz — isto é, vivíamos, até a chegada deste vilão de má estirpe à nossa ilha. E

agora, por favor, ouçam o resto do relato com um pouco mais de precaução, enquanto vou trocar a atadura do meu pobre olho — oh, meu pobre e único olho, inútil para todo o sempre!

♦♦♦

Junto com os poucos homens que trouxera comigo, aproximei-me da caverna onde morava a criatura. Polifemo ainda não havia retornado de suas lides pastoris, e por isso resolvemos adentrar o seu covil. Embora fosse uma enorme caverna, ainda assim estava quase intransitável, atrolhada de baldes, tarros e cubas enormes transbordantes de leite, queijo, requeijão e coalhada. Nos servimos à vontade desses produtos — há muito tempo não os saboreávamos —

, até que um de meus homens prudentemente me disse, com as barbas respingadas pelo mosto:

— Vamos embora, Ulisses, antes que o temível monstro retorne.

Mas eu estava decidido a travar relações com a criatura e arrancar dela, quem sabe, algum presente digno de nota. Por isto, recusei o pedido e dei ordem expressa — bem funesta, agora reconheço — para que ninguém tornasse atrás.

De repente escutamos o balir das cabras se aproximar da entrada da caverna. Era ele, Polifemo, que retornava com os animais. Corremos a nos esconder num canto da caverna, enquanto o rebanho das cabras entrava pela abertura da entrada.

A primeira coisa que o gigante fez ao entrar foi rolar um pedregulho imenso, que nem o próprio Hércules poderia arrastar, até a entrada da caverna, vedando-a completamente. Logo depois acendeu uma grande fogueira, que iluminou a gruta por inteiro, e foi sentar-se para fazer a sua refeição.

— Ugh! — fez a fera, alisando o estômago. — Queijo e leite outra vez… Com uma das mãos tomou, então, um queijo enorme e o abocanhou inteiro, mastigando-o com seus dentes amarelos e pontiagudos. Depois tomou um jarro do tamanho de uma torre e verteu para dentro do estômago todo o seu conteúdo.

Ao depositar no chão o imenso jarro, entretanto, nos descobriu agachados ao canto. Suas feições permaneceram quase impassíveis, a não ser pelo fato do seu único olho, raiado de sangue, ter-se arregalado mais um pouco.

— Quem são vocês, pequenos estranhos, e o que querem em minha casa? -perguntou com sua voz que era quase um ronco.

Mas não havia entonação alguma de ameaça nela, o que me permitiu responder em tom ameno:

— Somos aqueus, da grande nação grega, ó Polifemo poderoso! Retornamos de Tróia sagrada, onde demos o exemplo de nosso valor, destruindo a cidade até os alicerces e castigando seus habitantes, coniventes que foram com a quebra ignóbil das sagradas leis da hospitalidade.

Regozijei-me todo por ter trazido à baila aquele assunto; ciente de que não tolerávamos infrações ao mais sagrado de todos os deveres, o da hospitalidade, pensaria o monstro duas vezes — assim eu imaginava, ingenuamente — antes de nos tratar com violência.

— Continue — roncou a fera, permanecendo impassível.

— No caminho de volta, contudo, nos extraviamos de nossa frota — prossegui, usando sempre de escolhidos termos -, de modo que aqui estamos, delicado e generoso anfitrião, para rogar, em nome de Júpiter hospitaleiro, que nos acolha gentilmente, como se deve acolher a todo suplicante.

— E onde estão os seus barcos, homem dos mil adjetivos?

— Nossas naus afundaram — respondi sem pestanejar, regozijando-me outra vez pela engenhosidade da resposta pronta. — Somente restamos estes que aqui estão, nus e mal alimentados, dependentes em tudo da sua generosidade.

Depois de ter-lhe lembrado o seu dever, quis ainda me mostrar humilde diante do poder que ele detinha e por isto acrescentei estas formosas palavras:

— Polifemo, filho de Netuno, não há de lhe ser estranha, pois, a hospitalidade, eis que você é sobrinho de Júpiter, o próprio deus que a impõe como um dever. Mas certo estou, contudo, de que sendo nobre como é, bastará que você faça uso de seu caráter gentil e natural para que nos permita partir da sua aprazível morada com um pouco de alimento e algum outro presente que ainda, por bonomia, nos queira ofertar.

Polifemo, a menos formosa das criaturas, respondeu esticando um de seus poderosos braços, agarrando dois de meus homens pelas pernas. Depois de girá-los duas vezes no ar, arremessou-os de encontro à parede, esborrachando seus crânios e matando-os instantaneamente.

Polifemo, no entanto, sem se abalar com nada, partiu-os em pedaços, com os próprios dentes, e comeu-os tranqüilamente, ao mesmo tempo em que tirava longos goles do seu leite para ajudar a descer os ossos mal mastigados de nossos companheiros. Depois de ter praticado este ato repugnante, o monstro estirou-se todo, entre as cabras, e ajeitou-se para dormir, sem ligar a mínima para o restante de nós, que estávamos de joelhos suplicando a Júpiter que nos livrasse daquela enrascada.

Para descrédito e infâmia eterna deste monstro abjeto, devo dizer ainda que ele caiu imediatamente em um sono profundo, tão logo pôs a cabeça sobre o musculoso braço, acordando somente na manhã seguinte, quando fatos semelhantes aos daquela pavorosa noite se repetiram, renovando o horror em nossas almas.

O PONTO DE VISTA DE POLIFEMO:

Se é verdade o que este pérfido saqueador afirma? Sim, claro, é verdade. Eu comi, de fato, vários daqueles bucaneiros malditos — e os teria comido todos, caso não tivesse sido tão descuidado — ó imbecil que sou! Sim, o fato é verdadeiro, mas não a versão unilateral e mesquinhamente humana que o pirata grego apresenta. Vejam, vocês, imparcialmente, como são as coisas: eu, Polifemo, pela vontade dos deuses, nasci antropófago. É a minha natureza, compreendem? Todo ser deve se prover daquele alimento que lhe é específico; no meu caso, este alimento é a carne humana. Assim como uma cobra se alimenta de ratos, um cavalo, de pasto, e um tamanduá, de formigas, eu me alimento, preferencialmente — como naquele, até então, abençoado dia — de carne humana. Enganados, no entanto, pelo discurso hipócrita daquele saqueador barato, todos passam a ver este prosaico ato da gastronomia ciclópica como um feito horrendo e infamante. Infame, senhores, é invadir-se a casa de alguém durante a noite —

alguém que se sabe, de antemão, que abomina visitas! —, consumir-se o seu queijo e o seu leite, sem a sua expressa permissão, e ainda querer ser recompensado por isto com mimos e presentes. Quanto ao fato de haver dormido logo em seguida ao saboroso repasto, é claro que dormi — como dormem todos os gregos barrigudos (ou julgam, porventura, que são todos esbeltos como Apolo ?) depois de comerem um boi inteiro a cada refeição. Se duvidam, peguem aquele relato sujo, A Ilíada, e contem quantas vezes aqueles selvagens comedores de bois se sentam, nos intervalos de suas matanças repulsivas, para se empanturrar de carne bovina e ainda fazer oferendas aos deuses com seus restos, sem demonstrar piedade alguma para com os pobres animais.

♦♦♦

Nem bem o dia amanhecera, quando vimos o gigante cruel erguer-se das palhas, fazer um gargarejo com um gole de leite e ir a um canto para expulsar os dejetos do dia anterior. Trêmulos de horror, ainda assim nos foi impossível deixar de imaginar que os restos de nossos antigos companheiros estavam naquele instante sendo restituídos ao mundo de maneira tão vil e repugnante. “Oh, se eles pudessem imaginar, no dia anterior, o negro destino que os aguardava!”, dizíamos uns aos outros, mal podendo suportar os odores infectos que se espalhavam por toda a caverna.

Nem bem o monstrengo havia acabado de desobrigar o seu ventre monstruoso, quando o vimos caminhar rapidamente em nossa direção. Depois de abaixar um pouco sua carantonha horrenda até nós e nos estudar detidamente, um por um, com seu meticuloso olho, agarrou mais dois dos nossos e os esmagou entre os próprios dedos.

Outra vez gritos pavorosos ecoaram por toda a caverna, acordando as cabras, que se puseram a gritar junto conosco.

Depois de ter arrastado a pedra gigantesca com ridícula facilidade, o pérfido monstrengo levou as cabras para fora, repetindo pela milésima vez aquela que devia ser a sua rotina mansa de todos os dias.

Livres daquela presença diabólica, demos larga, então, à nossa revolta:

— Basta, temos de dar um fim neste canalha! — gritou um dos sobreviventes.

— Isto mesmo, vamos matar o miserável! — clamou outro, vesgo de ódio. Minha opinião era igual à deles; só que em vez de ficar maldizendo, fui procurar logo os meios de levar a cabo a sangrenta desforra.

Encontrei, então, encostado a um canto da caverna o longo cajado do Ciclope; era uma vara verde de oliveira, espessa como um carvalho.

— Vamos, ajudem-me aqui! — gritei aos demais.

Juntos, arrastamo-la até o borralho da fogueira, que ainda ardia sob as cinzas.

— Antes de levarmos ao fogo, companheiros, vamos desbastar a ponta! -ordenei, com decisão.

Consumimos quase o dia todo a afiar a ponta, até que ela ficou quase perfeita. Depois de tê-la endurecido sob o fogo, a guardamos debaixo do estrume, único lugar, por certo, em que o gigante deixaria de procurar em toda a caverna.

Quase no final do dia o monstro retornou, cumprindo a mesma rotina de sempre: tangeu as cabras para dentro da caverna, retirou o leite, comeu dois dos nossos e preparou-se para dormir. Antes, porém, que o fizesse, aproximei-me dele com um copo cheio do rútilo vinho que havíamos trazido, dizendo:

— Toma, Polifemo, prova deste licor saboroso que trouxemos de nossa terra; servirá como excelente acompanhamento para a carne humana que devoraste tão sem piedade.

Ele saboreou o vinho, dando mostras de que jamais havia provado bebida tão deliciosa.

— Dê-me mais desta delícia — disse o Ciclope, enxugando a boca — e me diga o seu nome, estrangeiro.

— Meu nome é Ninguém — respondi, com presteza. — Assim me chamam todos aqueles que me conhecem.

— Então, Ninguém, por ter me ofertado este vinho saboroso, você será devorado por último; tal será a recompensa que vai obter de minha hospitalidade.

Não saberia dizer se suas palavras eram produto do seu senso de humor perverso ou se estava mesmo tentando ser gentil, lá à sua maneira primitiva.

Não, pensando bem, aquela fera era incapaz de qualquer sentimento próximo da generosidade; ele debochava, simplesmente, mas logo iria pagar bem caro por suas gracinhas.

Depois de ter tomado todo o nosso vinho, o maldito gigante tombou a cabeça para trás e caiu sobre os pelegos. Mal havia fechado os olhos e começou a expedir o seu ronco bestial; de sua boca entreaberta escorria um vômito pútrido, mistura de vinho, leite e pedaços maldigeridos de carne humana.

Aproveitamos, então, que o gigante adormecera para retirar do esconderijo a estaca afiada. Silenciosamente a arrastamos até a fogueira, que ainda ardia com força, e ali a deixamos até que o fogo deixou a extremidade pontiaguda rubra de calor, a ponto de quase inflamar-se.

— Agora, todos juntos! — falei, inspirando coragem nos meus camaradas. Com a estaca erguida, cravamos, então, o instrumento com toda a força no olho do Ciclope, que estava entreaberto. Enquanto três dos nossos ajudavam a manter o instrumento fixo no redondo olho, eu, do alto, fazia-o girar, como um carpinteiro faz ao furar uma prancha do navio. O olho do gigante silvava, e um mar de sangue, misturado às lágrimas copiosas que desciam dele, evaporava quase no mesmo instante, devido ao fortíssimo calor do toro incandescido.

— Corram todos! — exclamei, pulando para o chão tão logo a criatura bestial lançou o seu horroroso grito de dor.

A caverna inteira reboou, como se um trovão tivesse explodido no seu interior. A fera, erguendo-se num salto, pôs-se a berrar em desespero pelos seus confrades:

— Socorro, amigos, socorro!

Num instante os outros Ciclopes estavam ajuntados do lado de fora da caverna.

— O que foi, Polifemo, quem o está atacando? — gritaram, assustados.

— Ninguém! Ninguém! — bradou Polifemo, com a mão espalmada sobre o olho ensangüentado. — Ninguém está me atacando!

— Ora, se ninguém o ataca, então você está certamente sonhando! — disse um dos Ciclopes, e logo todos retornaram para suas cavernas.

Polifemo saiu tateando até a entrada da caverna e, após arrastar o tremendo pedregulho, ficou sentado, de sentinela, para que nenhum de nós pudesse escapar.

Após pensar muito em como faríamos para escapar daquela terrível sentinela, cheguei a bolar o seguinte plano, que me pareceu nada menos que perfeito: cada qual de nós sairia agarrado ao ventre de uma ovelha, cercado por outras duas.

E assim foi feito: quando a Aurora surgiu, colorindo a entrada da caverna de uma luz rosada — espetáculo que o infeliz monstrengo nunca mais poderia avistar -, partimos em direção à saída. Polifemo, torturado por dores excruciantes, passava a mão pelas costas lanosas das reses, sem perceber que íamos agarrados ao ventre das ovelhas do meio. Quando nos vimos do lado de fora da nossa funesta prisão, demos graça aos deuses e corremos com quantas pernas tínhamos para o nosso barco, que graças a Netuno ainda estava ancorado no mesmo lugar.

Num pulo pusemo-nos para dentro da embarcação e já íamos nos fazendo ao mar quando tive a infeliz idéia de tripudiar do gigante derrotado:

— E aí, criatura desgraçada, aprendeu a lição? — gritei, logo após a linha da arrebentação.

— Isto é para você aprender a nunca mais infringir as sagradas leis da hospitalidade, devorando os seus hóspedes como fez tão cruelmente conosco.

A resposta de Polifemo foi agarrar uma rocha e arremessá-la em nossa direção, que descobriu graças à minha voz impertinente. A pedra foi cair bem ao lado de nosso barco, erguendo uma onda gigantesca que quase nos engoliu.

Meus companheiros, aterrados, não cessavam de me censurar a arrogância.

— Por que provocar desta forma a ira daquele monstro? — disse um deles, lutando para manter o remo dentro da água revolta.

Surdo, no entanto, às suas advertências, ergui novamente a minha voz em direção à praia, cego pela afronta feita a mim e a meus companheiros mortos.

— Quando alguém perguntar quem foi que cegou o seu olho, não esqueça, Polifemo maldito, de dizer que foi Ulisses, rei de ítaca!

— Deixa estar, saqueador maldito! — respondeu o Ciclope, enfurecido. — Tão logo este tal de Alguém pise aqui, farei com que conheça a força de minha ira!

Depois, voltando para o mar o olho vazado e repleto de remela, clamou a Netuno, seu pai divino:

— Ó Netuno, senhor das profundezas marítimas, se tem amor por seu filho Polifemo, que aqui clama por vingança, faz com que este perverso Ulisses receba o justo castigo por seus atos infames e que não chegue jamais à sua casa, ou, caso chegue, que encontre lá tamanha confusão que lamentará, por fim, o próprio dia da chegada!

Graças a esta maldição proferida pelo perverso Polifemo, tive de enfrentar, de fato, muitas tribulações até o meu retorno, perdendo no caminho todos os meus companheiros e chegando à minha pátria apenas com a roupa do corpo.

O PONTO DE VISTA DE POLIFEMO:

Muito bem, aí está o vilão em toda a sua vileza! Não satisfeito em me infligir cruel castigo, desce ainda ao tripudio, último argumento dos patifes! O problema deste pirata, como o de todos os da sua perversa laia, é que são simplesmente incapazes de ver as coisas senão de um único ângulo: o da sua estrita conveniência. Vejam, por exemplo, a maneira simplista pela qual se desvencilha, num de seus raros momentos de lucidez e isenção, de um argumento que me poderia ser sobremaneira favorável, poupando-me, quem sabe, da sua vingança torpe. Apenas por um brevíssimo instante foi capaz de enxergar o lado gentil de minha natureza, quando lhe afirmei que deixaria para comê-lo por último, em retribuição ao seu gesto de ter-me ofertado o saboroso vinho. Vejam, um prisioneiro que está na aflitiva situação de ser devorado vivo (sim, aflitiva, reconheço, pois sou perfeitamente capaz de enxergar todos os ângulos de uma situação!) deveria ao menos ser grato pela oportunidade que lhe dei de ter mais alguns instantes de vida do que os outros. E pouco, dirão. Admito; mas quem disse que minhas gentilezas acabariam por aí? Quem cede um pouco, cede mais além; o cruel vilão deveria saber perfeitamente disto. Mas a sua natureza implacável desconhece a soberana e divina arte da compaixão. Sim, quem foi capaz de atrair por meio de um torpe estratagema uma jovem virgem e indefesa para a armadilha de um sacrifício sórdido, como ele fez em Aulis com a infeliz Ifigênia, não tem mesmo um pingo de compaixão na alma! E por que não me matou logo de uma vez, como fiz piedosamente com seus colegas de rapinagem, em vez de me condenar a uma vida votada à mais negra escuridão? (Oh, nunca mais poder enxergar a lã branquinha de meus carneiros e o pêlo alvíssimo de minhas cabras… Nunca mais poder ver o leite brilhar dentro dos tarros, como pequenos e espumantes oceanos… Nunca mais poder ver o sol do lado de fora da caverna e meus queridos camaradas lá, bem longe, entregues às suas atividades…) Oh, perverso filho de um ladrão! Bem me advertira Telemo, o adivinho, há muitos anos atrás, que um dia chegaria a esta ilha um homem diabólico, saqueador de cidades, e que me faria perder a vista num gesto inaudito de crueldade. Infelizmente sempre imaginei que seria alguém do meu tamanho, capaz de me fazer frente, e assim levei a vida descuidadamente, até que chegou, enfim, o negro dia — oh, imprevidência maldita! Mas Netuno, meu poderoso pai, há de remeter-lhe tamanha maldição, que ele preferirá morrer do que chegar à própria casa. E quanto a este Alguém que ele me prometeu que aqui virá, já sei bem de quem se trata! Telemo também me alertou, e desta vez não cairei diante dele, de uma maneira tão bisonha e infantil, vencido por um ridículo joguinho de palavras. Simbad, tal é o seu nome, e pertence à estirpe dos arábicos de pele escura. Desde o dia funesto em que o ladrão de Itaca retirou seus pés imundos de minha ilha que aguardo a sua chegada. * Oh, infeliz errante e esfomeado, mal sabe o mal que o aguarda quando aqui chegar com as suas sandálias rotas e os seus colegas de infortúnio!