Os Furoses de Medéia

A princesa Medéia, após ter salvo seu amado Jasão dos perigos da temível expedição dos Argonautas, estava agora diante de um novo dilema: Jasão, seu amado herói, fora expulso de sua terra natal por seu perverso tio, o rei Pélias, o qual se recusara a lhe ceder o trono.

Jasão, sem meios de fazer valer o seu direito, dissera, cabisbaixo, à amante:

— Deixe estar, Medéia, os deuses assim decidiram. É melhor que partamos juntos para Corinto, pois aqui nossa vida estará sob risco constante.

Quem viu o Jasão da época dos Argonautas enfrentar todos os perigos estranhará que essas palavras melífluas tenham saído tão facilmente da mesma boca. Mas assim foi. De fato, a partir da chegada à sua terra natal, o herói parece abandonar seu antigo caráter para adquirir um outro, em tudo mais mesquinho que o anterior.

— Faremos como você quiser! — disse-lhe Medéia, disposta a seguir Jasão para onde quer que o destino os empurrasse.

Mas antes que partissem, Medéia deu um jeito de vingar-se de uma maneira verdadeiramente pavorosa do tirânico rei que os expulsara — pois é preciso que se diga que apesar de ser capaz das maiores abnegações em nome do seu amor, Medéia também era capaz das piores vilanias para proteger ou vingar o seu amado herói. Assim fora, por exemplo, quando fizera em pedaços o próprio irmão, para retardar a perseguição de seu odioso pai.

Medéia apresentou-se, então, diante das filhas de Pélias, para fazer-lhes uma pequena oferta.

— Queridas meninas, antes de partir quero mostrar-lhes uma coisa — disse ela com o ar mais doce deste mundo. — Estão vendo este velho cordeiro?

Medéia tomou um machado e abateu o carneiro diante dos seus olhos.

— Cuidado, irmãs! — disse uma das filhas do velho rei. — Esta mulher é uma temível feiticeira, versada nas artes de Hécate!

— Acalme-se, jovem princesa — disse Medéia com um sorriso reconfortante. A feiticeira, então, cortou em pedaços o carneiro e colocou suas partes dentro de uma caldeira que trouxera consigo. Depois de ter espalhado ao redor do recipiente algumas libações de leite e vinho, colocou dentro as entranhas de corujas, morcegos e outros animais mortos, e o bico de um corvo, que segundo a crença resiste a nove gerações humanas. Em seguida mexeu tudo com um galho seco de oliveira, espargindo ervas mágicas e fazendo uma série de invocações extravagantes a Hebe, deusa da juventude, a Hécate, deusa infernal, e a Prosérpina, sinistra esposa de Plutão.

Passados alguns instantes a panela da feiticeira começou a corcovear debaixo do fogo. As filhas de Pélias recuaram assustadas.

— O que é isto? — exclamou a mais medrosa.

— A Vida, minhas amiguinhas — respondeu Medéia, ainda em transe. -A Vida, simplesmente…

Então de dentro da caldeira de Medéia pulou um cordeiro muito novo, quase um recém-nascido, que saiu a cabriolar por toda parte.

— Viram? — disse Medéia, amavelmente. — Nada mais simples.

As irmãs entreolharam-se. Que mágica maravilhosa ela tinha em suas mãos!

— Você poderia fazer isto… com um ser humano? — perguntou uma das filhas de Pélias.

— Sim, minhas queridas — respondeu a feiticeira. — É justamente por isto que lhes fiz esta demonstração. Bem sei que o pai de vocês já está bastante velho, e talvez vocês gostassem de vê-lo jovem e forte outra vez.

As irmãs, infelizmente, não foram inteligentes o bastante para desconfiar daquela estranha oferta, vinda de uma mulher que acabava de ser expulsa do reino por uma ordem expressa do próprio rei.

— Está bem, queremos sim, o que devemos fazer? — disse logo a mais ingênua delas.

— Tudo o que deverão fazer é picar o pai de vocês e trazer os pedaços até mim.

— Oh, jamais poderíamos fazê-lo!

— Por que não? Não querem que eles esteja jovem e robusto outra vez?

— Sim, sim, queremos…

— Então mãos à obra, suas bobinhas!

As filhas foram, então, até o quarto do pai; era noite, e elas haviam tomado antes o cuidado de dar um sonífero ao velho Pélias. O rei ressonava de boca aberta. Ao vê-lo de perto, contudo, vacilaram.

— Vamos, suas tolas, o que esperam? — disse Medéia ao lado delas.

— Não temos coragem! — disse uma.

— Ora, vejam em que estado lamentável ele já se encontra! — disse Medéia, aproximando uma vela do rosto do idoso Pélias.

De fato, a expressão do rei era perfeitamente lamentável: Pélias era um velho de feições chupadas, com a boca deserta de dentes os cabelos ralos e brancos.

— O pai de vocês está um caco — disse a feiticeira, com uma careta de repulsa. —

Querem vê-lo definhar ainda mais a cada dia?

As irmãs, após terem observado as feições gastas do rei, se resolveram, afinal:

— Está bem, vamos lá! — disse uma delas, virando o rosto para o lado e vibrando um punhal na carcaça gasta sobre a cama.

As outras, voltando o rosto, também fizeram o mesmo, e logo Pélias, rei de Iolcos, estava morto.

— Agora cortem-no em pedaços — disse Medéia sombriamente.

As irmãs encontraram muita dificuldade em serrar os membros do próprio pai.

— Vamos, ele nada sente! — disse Medéia, descendo um machado sobre o pescoço do velho rei.

Depois de recolhidos os pedaços, foram lançados todos à caldeira de Medéia.

— Agora vão trocar as suas roupas — disse Medéia, enquanto mexia a mistura. —

Depois descansem um pouco, enquanto termino isto.

As irmãs foram lavar o sangue do próprio pai, que ainda permanecia aderido aos seus cabelos. Mas quando voltaram encontraram o quarto vazio.

— Onde está a feiticeira? — disse uma das irmãs, desconfiada. Outra correu logo, atarantada, para o tripé, onde o fogo ainda ardia. Dentro da caldeira restavam apenas os ossos do velho Pélias, a borbulharem em meio à horrenda mistura. E do meio deles surgiu à tona, de repente, a caveira amarelada do velho rei: um sorriso — ainda desdentado — errava em sua ossuda face.

Todas — menos a que havia desmaiado — correram logo para a janela a tempo de verem Medéia, montada num carro puxado por serpentes aladas, afastar-se em direção à lua.

— Maldita! — bradou uma das filhas. — O que significa isto? Apesar de afastada, a voz esganiçada de Medéia ainda se fez ouvir:

— A Morte, minhas amiguinhas. A Morte, simplesmente…

♦♦♦

Jasão e Medéia chegaram, depois da terrível vingança, a Corinto.

Medéia, exilada e longe de sua pátria — onde poderia ser ainda a filha do rei, com todo o conforto que isto acarretava -, ainda assim sentia-se feliz: vivia com o homem que amava e de quebra ainda ganhara dois lindos filhos deste amor. Mas foi justamente nessa ocasião que o caráter vil de seu esposo resolveu finalmente se manifestar.

Tendo Jasão recebido uma oferta irrecusável do rei de Corinto para que se casasse com sua filha, desde que repudiasse Medéia, não hesitou o crápula em aceitar integralmente os termos do vil acordo.

— Você não pode fazer isto! — lhe disse Medéia, traída em sua honra. — Não vê que é um ato monstruoso?

— Ato monstruoso? — respondeu Jasão, com um sorriso de mofa. — E não será monstruoso cortar em fatias o próprio irmão?

Medéia lançou-se de unhas afiadas para cima dele, que empalideceu, confundindo-se com a parede caiada às suas costas.

— Maldito vilão! Por que insiste em me jogar às faces um ato extremo que cometi apenas para salvá-lo das garras funestas de meu pai?

— Realmente, você é um anjo… — disse Jasão, com um sorriso amarelo cercado de arranhões escarlates. — O fato é que não há mais discussões acerca disto: você deverá deixar este reino junto com os seus dois garotos. É uma exigência do rei.

— Meus dois filhos? — rugiu Medéia, descabelada.

— Sim, eles poderiam futuramente reivindicar a posse da coroa — disse Jasão, abaixando os olhos.

— Você não vale nada, mesmo! Como pude me enganar? Por sua culpa atraí a inimizade de meu pai e de minha família!

— Ora, retorne para lá e viva eternamente com aquele bando de loucos naquele país atrasado! Você é ingrata, mesmo! Tirei-a daquele país miserável, dei-lhe filhos e posição, o que esperava mais? Mas agora acabou, tenho de seguir em frente: um reino está sendo posto em minhas mãos, compreenda!

— E por que não lutou pelo seu próprio reino, covarde? Por que não se vingou do assassino que matou seus próprios pais? Será que sua nova mulherzinha saberá defendê-lo das lacraias e escorpiões que andam pelo palácio?

Jasão fez menção de esbofetear a mulher, mas ao ver os olhos raiados de sangue e a boca espumante da esposa, pensou duas vezes e susteve a mão.

— Cale a boca e desapareça da minha frente; tem até amanhã para sair deste reino com os dois moleques.

— Canalha! Você sabe que uma mulher sozinha com dois filhos não tem meios de sobreviver em qualquer lugar de toda a Grécia!

Jasão, então, sacou da túnica uma bolsa de veludo, como se relutasse em se desfazer daquele último e pesado argumento.

— Tome, aqui está! — disse ele, lançando a bolsa aos pés de Medéia. — É ouro — mais ouro que o seu pai sovina daria a você em toda a sua vida! — para que você possa recomeçar a vida em qualquer parte da Grécia.

Medéia, muda de asco, abriu a porta para que Jasão saísse.

Antes de transpor a porta, porém, ele deu uma última olhadela na bolsa. Sim, lá estava ela, solitária, caída ao chão; algumas moedas douradas brilhavam sobre o piso do mármore, como se fossem benesses douradas a escorrerem da boca de uma macia cornucópia de veludo. — Não vai querer mesmo o ouro…? -disse ele, fazendo menção de voltar.

Medéia bateu a porta na sua cara.

♦♦♦

No mesmo dia Medéia trancou-se em seu quarto. Uma terrível decisão maturara durante a noite em sua mente. Ela estava perdida, desgraçada para sempre. Ela e seus filhos. Mas o desgraçado não ficaria em melhor estado, pensou a feiticeira.

Sim, Medéia voltara a ser a feiticeira. Tirando de sua arca um belíssimo vestido, embebeu-o em ervas mefíticas e mandou que seus filhos o levassem até à noiva, no palácio.

— Não esqueçam: digam que é um presente de uma súdita e admiradora -disse Medéia aos dois filhos. — E atenção: só saiam de lá quando ela o tiver provado.

Os garotos cumpriram a missão com muito gosto; algo em suas núbeis naturezas já se regalava com o gosto da vingança.

Creúsa, a filha do rei de Corinto, recebeu o presente e de nada desconfiou. Como poderia desconfiar de um presente trazido por duas crianças tão encantadoras?

— Vocês dois são muito queridos! — disse Creúsa. abaixando-se até eles. Os dois garotos sorriram, deliciados: seus olhos apertaram-se de gozo, enquanto ofereciam cada qual as suas duas bochechas escarlates para o beijo da princesa.

— É o presente de uma súbita admiradora… — disseram ambos, sorridentes. No mesmo instante Creúsa vestiu o maravilhoso vestido.

— Vejam só que corte, que maravilhoso caimento! — disse a aia da princesa. Os dois garotos ergueram as cabeças e sorriram novamente, sacudindo com orgulho as suas bochechas.

Neste exato momento, no entanto, as vestes de Creúsa começaram a arder em seu próprio corpo. Uma flama ardente subiu desde a cauda e veio avançando até envolver a princesa numa labareda única. Aos gritos, ela saiu por todo o palácio e acabou não só por morrer, como por espalhar o incêndio pelo palácio inteiro, matando a todos, inclusive o próprio rei que lá estava.

Medéia, então, após receber a feliz notícia, aproximou-se dos dois filhos e lhes disse, com lágrimas nos olhos:

— Vocês dois foram perfeitos! Por isso, receberão o prêmio maior de um mortal.

Infelizmente ela sabia que jamais teria como criar os dois em segurança, e sua decisão já estava tomada. Deu-lhes assim um suco cheio de ervas soníferas e venenosas, de modo que num instante os dois estavam adormecidos para sempre.

Medéia acariciou-os, dando um beijo em cada um e dizendo com a voz petrificada pela dor:

— Não, não…! Jamais permitiria que fossem vilipendiados ou mortos pela mão de meus inimigos! Para onde vão, estarão seguros, ninguém jamais os magoará nem tirará sangrenta desforra de seus corpos! Sim, se eu lhes dei a vida, então que seja a minha mão, e não outra, a retirá-la.

Depois de consumado o terrível ato, Medéia subiu novamente, depois de tanto tempo, em seu carro puxado por aladas serpentes e fugiu pelos céus da tormentosa noite. Na mesma noite chegou ao reino de Plutão, levando pela mão as sombras dos dois garotos. A esposa do rei subterrâneo os recebeu alegremente.

— Deixo com você, Prosérpina, meus dois tesouros; sei que aqui estarão em segurança

— disse Medéia à rainha infernal.

— Oh, que lindinhos! — disse Prosérpina, enquanto os dois estendiam suas bochechas.

Ambos traziam no rosto aquele mesmo sorriso cerzido de sempre e pareciam bem contentes de estarem dispensados dos trabalhos e horrores deste mundo.

Medéia partiu, então, e ainda viveu muitas outras coisas — terríveis, na sua maioria, pois um negro fado a perseguia. Quanto a Jasão, desde então, levou uma vida errante e desgraçada.

Um dia, bêbado e alquebrado, foi descansar numa praia deserta, ao abrigo dos restos da nau Argo, aquela mesma que o conduzira à aventura do Tosão de Ouro. De repente uma viga caiu do alto e rachou sua cabeça, matando na mesma hora o ex-herói.

Comparando as mitologias grega e romana - Universo Anthares

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