Ulisses e as Sereias

Ulisses, o engenhoso filho de Laertes, Que retornando estava da sangrenta Tróia, No rumo de sua casa, a saudosa Itaca, Havia passado antes pela ilha de Circe, Feiticeira poderosa e cheia de sortilégios.

“O soldados que minha ilha ora visitam,

De coração e alma leve adentrem esta morada!”

Assim dissera a solerte encantadora,

Ocultando já no manto a vara maldita,

Ao primeiro homem que dela se aproximara.

Euríloco era o nome do guerreiro que chefiava A um grupo viril de vinte marinheiros fortes; Outro grupo, chefiado pelo filho de Laertes, Em alto-mar ficara alerta e estacionado, Pois boa tripulação nunca expõe-se por inteiro.

* Alusão a um episódio parecido com o de Ulisses e Polifemo que consta em Simbad, o Marujo. (N. do A.)

“Saibam que esta é a ilha Eéia, de sólido renome, E eu, Circe, filha do luzente Sol e da sombria Hécate. Sou irmã de Eetes, guardião do dourado velocino, Que a Jasão audaz, trabalhos infinitos rendeu, Vencidos pelas artes de Medéia, feiticeira feito eu!”

“Tendo envenenado meu marido tirânico e cruel,

Fugi para cá em busca de refúgio ameno,

Para aprender em paz as minhas artes mágicas,

De como criar filtros e poções de toda sorte,

E fazer descer do céu os próprios astros luminosos!”

Euríloco, entretanto, mais que todos olha atento Ao redor da casa onde a temível Circe mora; Lobos monteses e leões enfeitiçados os olhos vêem, A vagarem por perto, com ar desorientado, De quem, surpreso, nem sempre teve aquela forma.

Assustados, os fortes homens de Euríloco Eriçam sem querer as cerdas das espessas barbas, Ao verem perto tantas feras sonambúlicas, De cabeça baixa, com o ar de quem implora Socorro e auxílio urgente a toda aquela gente.

Circe, enquanto isto, já canta dentro em seu tear, A tecer uma grande trama, digna de perfeita deusa. Os visitantes, contudo, sem poder lhe dizer não, Levados são a se servirem de estranhos alimentos, Menos Euríloco, que de longe observa tudo a salvo.

Nem bem terminam de comer sua maldita refeição, Eis que os homens em porcos ficam convertidos, Por força de um soberbo encanto da ladina Circe, Pelo qual basta encostar em cada qual a sua vara, E tê-los virados em suínos com ilesa mente humana.

“Eia, já para o redil!”, brada a solerte Circe, A vara de homens, meio gente, meio porcos, Os quais grunhindo palavras sem sentido, Marcham com as patas de fendidos cascos No rumo terrível de um negro e fétido covil.

Euríloco, de olhos arregalados que tudo viram, Dá volta e meia e para a nau corre estertorado, A bradar a cada passo: “Ó ilha de maldição!” Ulisses, entretanto, de espada pronta logo surge, A indagar do soldado a razão de tanto alarde.

Informado pelo único e infeliz sobrevivente

(Eis que um ser virado em porco não pode ser mais gente),

Conclama a todos os demais da sua embarcação,

Para que tomando armas, escudos e pesadas achas

Rumem com ele para enfrentar a terrível situação.

“Oh, fujamos todos, filho de Laertes!”, clama Euríloco, “Pois esta mulher também não é humana, não!” Ulisses, então, temendo pela vida dos remeiros, Decide ir sozinho, auxiliado pelo braço e pela astúcia, A enfrentar a bruxa que vira gente em bicho fossador.

Mas no caminho Mercúrio, deus de pés ligeiros, Surge dos céus aladamente para precavido lhe alertar: “Eis uma droga benéfica que o livrará de qualquer feitiço, Mas se ela ainda assim pretender tocá-lo com sua vara, Saque, então, a sua espada e lhe encoste o gládio ao peito!”

Ulisses o conselho segue e deste modo vence a feiticeira, A qual, prostrada a seus pés, lhe abraça forte os joelhos A clamar: “Piedade, ó guerreiro, a sua força é bem maior! Pois que, além de si, ainda tem o socorro de um deus!” Domada, então, a bruxa, rumam ambos para o brando leito.

Por sugestão da feiticeira assim estiveram juntos, Para que ambos criassem confiança um no outro, Mas como confiar numa criatura esquiva e traiçoeira? Ulisses então lhe diz, tomando o peso da palavra: “Bruxa solerte, livre antes meus amigos do feitiço!”

Circe feiticeira, decidida a provar a sua lealdade. Ruma, então, para a pocilga a passos firmes, Onde estão amontoados os porcos de Ulisses, E lá lhes toca, um por um, com sua vara mágica, Devolvendo-lhes a antiga e saudosa forma humana.

E tão satisfeitos ficaram todos naquela ilha, Que hóspedes da feiticeira se tornaram desde então, Recusando-se a partir no rumo da saudosa ítaca, Comendo e bebendo fosse dia ou fosse noite, Enquanto Ulisses fruía dos prazeres do seu leito.

Um ano, entretanto, passado em descanso e vida mansa, Bastou para acordar nos soldados o sentimento do dever; Então o filho de Laertes, tomando as mãos da sedutora, Disselhe com voz chorosa estas súplices palavras: “Circe, deixa que partamos no curso de nossa casa!”

Ela, tornada agora amiga e compreensiva, Cede aos rogos insistentes do audaz guerreiro, Não sem antes adverti-lo do perigo que os espera, Nos rochedos onde pousam as sereias fascinantes, Cujo canto doce traz delícia, mas também a morte.

Ainda assim, as naus já se aprestam a partir, Quando se ouve um grito alto e pavoroso, Como o barulho de algo pesado que se racha; Correm todos pressurosos a ver que grita é esta, Para encontrar caído ao chão um pobre corpo!

Oh! é o desastrado Elpenor que subido ao telhado Para melhor gozar das delícias do zéfiro suave De lá despencou, com o caco cheio de vinho, Ao escutar o chamado para retornar às naus, Sem lembrar antes de colher auxílio à escada!

Assim entrou o pobre Elpenor, de ponta-cabeça, Na escura mansão de Hades, talvez ainda cantando, Enquanto os homens de Ulisses cortavam os mares, Em busca da doce pátria há tanto tempo almejada, Levando n’alma os avisos da ajuizada Circe.

Empurrado por um vento veloz e favorável, Singravam assim as naus do astuto Ulisses, Por entre as vagas cortadas por agudas proas, Até que súbito um mormaço aquietou as ondas, Fazendo silenciar todo vento e toda brisa.

Ulisses, avisado de antemão, eleva forte a voz: “Marujos, me prendam ao mastro a toda pressa, Eis que a perigosa ilha das sereias se avizinha! Depois, tomando da espessa cera que lhes dei, Cerrem os ouvidos e não escutem mais um pio!”

“E se eu clamar que os laços meus afrouxem, Surdos estejam, renovando duplamente os nós, Pois doutro modo mergulharei às águas turvas, Sedento do canto, dos beijos e das carícias mil, Que as pérfidas criaturas aladas me prometerão!”

Neste instante avistou-se nos rochedos escarpados Uma montanha de ossos desfiados e espalhados, A maioria eram alvos feito a neve e refulgindo ao sol, Mas a outros recobria um resto de imunda pele Com o sangue da medula a gotejar de volta ao mar.

“São as malditas sereias!”, bradam as vozes em coro, Enquanto elas do alto se despencam aladamente, Eis que são metade pássaros e metade fêmeas, E não raça de peixe como erradamente afirmam Aqueles que só em sonhos navegaram estas águas!

Suas cabeças nada devem à mais bela das mulheres, Eis que são Helenas e Afrodites de aladas asas, De busto liso ornado por dois botões rosados, Mas que no lugar dos braços duas asas alvas têm, Das quais se valem para se suspender aos céus.

O seu canto mavioso fala de amores impossíveis, E de mil prazeres nunca dados aos mortais, Um canto ardiloso que mistura o amor e a morte, Capaz de tornar a mente humana leve e alada Livre doravante do pesado encargo do dever.

Um siflar sinistro roça por sobre as cabeças Dos homens surdos, que remam a toda brida, Mas Ulisses, de ouvidos destapados e mãos presas, Pode ouvi-las perfeitamente e então clama:

“Oh, malditos, desamarrem logo as minhas mãos!”

Uma das sereias, entretanto, ousada avança, Roçando os rubros lábios ao corpo rijo do herói, “Vem, homem, que mesmo a dor eu te farei prazer!”, Diz a criatura percorrendo-o com os dedos lisos, Enquanto adeja as asas, lhe refrescando a fronte.

Mas os marujos, de semblante pétreo e mãos ao remo, As ondas fendem com toda a força dos seus braços, E desta forma vão ganhando mais e mais distância, Do canto perverso e agora inútil das sereias, Que já se despencam derrotadas sobre o mar.

Tão logo seus alados corpos tombam sobre a água, Conformação nova vão todos adquirindo, Eis que as alvas penas se espalhando sobre o leito, Em negros rochedos vão se transformando, Até formarem um pequeno grupo de novas ilhas.

Diante do promontório da Lucânia, desde então, Estão à vista de todos as rochosas Sirenusas, Formadas pelos ossos de antigas e belas sereias, Que ainda dizem àqueles que cruzam suas águas: “Cuidado! Mesmo as pedras escondem um desejo!”