O Massacre dos Pretendentes

Ulisses, herói da Guerra de Tróia, após infinitos trabalhos por mares revoltos, chegara finalmente de volta à sua casa, a saudosa Itaca; trazido por um barco dos feácios, povo que o acolhera em sua última aventura, Ulisses desembarcou adormecido na praia, ainda durante a noite.

O herói, entretanto, avisado anteriormente por Minerva, sua deusa protetora, já sabia de tudo quanto se passava em sua terra: um grupo de sórdidos pretendentes havia tomado conta de sua casa e de seu reino, na esperança de tomar-lhe a esposa em casamento, a infeliz Penélope, que em vão aguardava, há mais de vinte anos, o regresso de seu amado Ulisses.

— Ainda lembra, por certo, de Eumeu, o guardador de porcos de seu palácio? —

perguntou Minerva a Ulisses, tão logo este acordou.

— Por certo, prestimosa deusa — respondeu o filho de Laertes. — Foi sempre meu mais fiel servidor, até o dia em que me vi obrigado a partir para a terrível guerra. Oh, parece mentira, mas já lá vão mais de vinte anos!

— Procure-o imediatamente — disse a deusa.

— Mas e os solertes pretendentes? — indagou Ulisses. — Se souberem que estou de volta à ilha certamente darão um jeito de me matar antes mesmo que possa escorraçá-los de minha casa.

— Você não irá escorraçá-los — interrompeu Minerva, com o sobrolho carregado. —

Todos eles sairão mortos do palácio, e pela sua mão.

Ulisses sorriu, satisfeito.

— Consigo ao meu lado, deusa invencível, não duvido nada disto.

— Mas antes você deverá chegar disfarçado à sua casa, para que ninguém o reconheça, nem mesmo a sua esposa Penélope ou o seu filho Telêmaco.

— Telêmaco… — disse Ulisses, angustiado. — Como está meu filho?

— Ele foi à terra de Menelau, na distante Argos, para colher notícias suas junto ao marido de Helena.

— Faça com que retorne, poderosa deusa!

— Acalme-se, tudo será feito a seu tempo. Em breve ele estará de volta. Mas antes você deve fazer o que primeiro falei: procura Eumeu, o guardador de porcos; ali, em sua cabana, que continua afastada do palácio, vocês poderão tramar em silêncio a vingança, até o momento em que eu der o sinal para que você retorne definitivamente ao palácio.

Ulisses ergueu-se e já ia rumando para a cabana de Eumeu, quando Minerva o chamou outra vez.

— Aonde pensa que vai deste jeito?

— Deste jeito, como? — disse Ulisses, sem entender.

— Vamos, onde está a sua argúcia? Perdeu-a no mar?

Minerva aproximou-se do herói e no mesmo instante retirou de seu corpo os trajes finos e caros que Alcínoo, rei dos feácios, dera a ele. Depois a deusa tocou-o com sua vara e fez com que seu corpo, antes robusto e viril, começasse a murchar: seu rosto, antes cheio, agora encovava-se; seus dentes lhe caíam aos pés; seu peito encarquilhava e os ombros curvavam-se tanto que quase ameaçavam se tocar.

— Acho que agora está bem! — disse a deusa, dando dois passos para trás para enxergá-

lo melhor. E completou o arranjo lançando sobre as costas do velho um trapo imundo e um alforje esburacado com um velho pedaço de pão duro e escuro aparecendo pelos furos.

♦♦♦

O dia já ia alto quando Ulisses, travestido de mendigo, aproximou-se da cabana onde vivia seu velho criado. Um fiapo solitário de fumaça subia pela chaminé. Ao redor da pequena construção havia doze pocilgas para a guarda dos porcos.

— O de casa! — disse Ulisses, batendo com o bordão na parede rústica.

— Devagar, devagar! — disse uma voz roufenha lá dentro.

O velho Eumeu surgiu à porta; seu aspecto, apesar de alquebrado, era o de um homem ainda pronto para os embates da vida.

— Quer derrubar o casebre? — acrescentou o guardador de porcos. Ulisses reconheceu imediatamente o criado, embora este não pudesse fazer o mesmo, tal a diferença do antigo rei e amo.

— Bom-dia, guardador, que o senhor do trovão o abençoe! — disse Ulisses, procurando elevar o tom de voz para disfarçar a emoção que sentia.

Algo na figura do mendigo fez com que Eumeu não lhe perguntasse nada e simplesmente o fizesse entrar, acostumado que estava, aliás, a receber quase todos os dias estes errantes que vagavam sem remo nem rumo por toda a Grécia.

Depois de trocarem algumas palavras, estiveram contando episódios de suas vidas. Ulisses inventara uma longa história acerca de suas desventuras imaginárias — como se as suas reais já não lhe bastassem -, afirmando ter avistado o rei de ítaca numa de suas andanças.

— Ora, bobagem! — disse Eumeu, enfadado. — Por esta parte pode passar por alto, estrangeiro, se com isso pretende me agradar ou a alguém no palácio, para onde os seus pés descalços logo o levarão a exercer com mais sucesso o seu ofício. Não há dia em que não chegue aqui alguém com uma história ou recado de Ulisses, esperando ser bem tratado por causa do embuste. Comigo, entretanto, você não precisa perder tempo; antes, acabe logo a sua história, pois a noite já vem vindo e devo ainda recolher os porcos e separar quatro deles para levar ao palácio.

— Então há festa hoje por lá? — disse fingidamente Ulisses, arreganhando as gengivas rosadas que sua língua ressequida percorria de cima a baixo.

— Hoje?! — exclamou Eumeu, divertido. — Ora, não se passa um dia desde a partida do rei que não haja um banquete dentro das portas daquele palácio. São três porcos ou mais que levo para lá por dia, e temo já que nos faltem animais para daqui a muito pouco…

— E quem são esses que se instalam com tanta liberdade em minha cas… digo, na casa do rei desaparecido?

— São príncipes e nobres de pouca monta, na maioria; eles vêm em bandos de todos os cantos da Grécia para se apossar do trono que julgam vago para sempre. Não passam de comilões e beberrões que não têm outro objetivo senão viver às custas das riquezas do rei morto.

— Mas e a esposa de Ulisses, o que faz diante disto tudo?

— Penélope se defende do jeito que pode! O que mais poderia fazer, sozinha e com apenas um filho, incapaz de expulsar todos estes rufiões?

— Mas ela já escolheu o tal pretendente?

— Não, ela tem protelado o mais que pode a decisão. A propósito, tem feito isto de uma maneira tal que a torna digna esposa do solerte Ulisses.

— Por quê? Vamos, conte-me a astúcia de Penélope!

— Até aqui a rainha vinha se utilizando do seguinte estratagema: fechada em seus aposentos, ela passava o dia inteiro a costurar numa tela um imenso manto. “Quando ele estiver terminado, somente então farei minha escolha”, dizia ela aos arrogantes pretendentes, sempre que estes lhe cobravam o término do trabalho. Durante a noite, entretanto, ela desfazia toda a trama, para que no dia seguinte os pretendentes malditos a encontrassem com o manto quase no começo.

— Oh, adorável mulher! — disse Ulisses, enlevado com a astúcia da esposa.

— Bem, mas amanhã cedo levarei estes porcos àqueles salafrários! — disse Eumeu, erguendo-se com dificuldade. — Atualmente são eles os patrões por aqui,e o peso da mão de um patrão irado é algo ruim em toda parte.

Ulisses, revoltado com aquele estado de coisas, deitou-se num enxerga que ali estava à disposição dos viajantes — pois o guardador de porcos era devoto sincero de Júpiter hospitaleiro e cumpria à risca a obrigação de tratar bem a todo forasteiro. Ao mesmo tempo, o marido de Penélope sentia-se feliz e orgulhoso da esposa, que com esperteza e inteligência ia ludibriando a ganância dos invasores enquanto não se dava o momento do seu retorno.

♦♦♦

Na manhã seguinte, amanheceu cedo. O porqueiro, acostumado à lida dos animais, levantava-se sempre junto com a Aurora de rosados dedos.

— Oh, mais um dia sem meu rei… — gemeu Eumeu, como sempre fazia, numa espécie de oração desanimada, em que errava apenas um fio de esperança.

Neste instante, porém, avistou alguém que se aproximava, quase à sua frente.

— Ora vejam, é o jovem de volta à casa! — disse Eumeu, largando a vassoura. Sim, era Telêmaco, filho de Ulisses, que acabava de retornar de suas andanças pelas ilhas próximas em busca de notícias de seu saudoso pai.

— E então, filho de Ulisses, nenhuma notícia de seu pai? — perguntou Eumeu, cujos olhos brilhavam de expectativa.

— Não, bom servo, nada pude descobrir, infelizmente — disse Telêmaco, que parecia afoito por dar logo a má notícia e livrar-se da lembrança do desgosto.

Eumeu recolheu em silêncio a pequena bagagem de Telêmaco e levou-a para dentro.

— Vamos comer algo, jovem príncipe.

Eumeu meteu logo nos espetos alguns pedaços de carne revestida de copiosa gordura, enquanto retirava de um pequeno forno de pedra dois grandes pães para acompanhar a primeira refeição. Depois temperou numa cratera de pau o vinho para que juntos libassem a Júpiter supremo.

— Temos visita, como de hábito — cochichou o guardador a Telêmaco, apontando para o mendigo, que ainda ressonava, exausto da longa viagem do dia anterior.

Telêmaco já estava acostumado àquelas benfeitorias do servo do palácio; sem se importar com o estrangeiro, sentou-se à mesa com Eumeu. Assim estiveram trocando idéias, enquanto Eumeu se regozijava com o retorno, ao menos, do filho.

— Telêmaco, é preciso que você saiba que durante a sua ausência os solertes pretendentes tramaram contra a sua vida, postando um grupo de assassinos à espera na entrada do arquipélago — disse Eumeu, com a revolta estampada nos olhos.

— Sei disto tudo — respondeu o filho de Ulisses. — Minerva acompanhou meus passos desde a minha partida e me alertou do perigo, fazendo com que retornasse por outro caminho, enganando desta forma estes patifes.

A este tempo Ulisses já tinha acordado, embora permanecesse enrolado em sua manta.

Mesmo de costas, pelo tom e conteúdo da conversa soube quem tinha atrás de si. Aos poucos sentiu crescer dentro de si um sentimento avassalador e esteve prestes a arrojar para longe a manta furada e lançar-se aos braços do filho, num ímpeto feroz. Mas foi detido pela lembrança de que aos olhos do filho ele não passava de um velho malcheiroso. Sentando em sua esteira, procurou, então, o Apolo do bordão para colocar-se em pé.

— Deixe que eu o ajudo, forasteiro — disse Telêmaco, apoiando o braço do velho junto ao seu.

Ulisses deixou que Telêmaco o conduzisse até um banco e ali ficou, observando o filho dos pés à cabeça.

“Oh, deuses, como está forte e nutrido!”, pensou, com orgulho. Ulisses sentiu crescer no peito um sentimento de gratidão em relação ao porqueiro, velho servo e súdito, que de alguma maneira havia contribuído para tornar o seu filho aquele jovem robusto e saudável que tinha agora diante de si.

Depois de estar longo tempo conversando, Telêmaco decidiu que já era hora de tirar sua mãe da aflição em que a deixara.

— Eumeu, largue tudo e vá direto ao palácio de meu pai para levar à desditosa Penélope a notícia de meu regresso.

Nem bem o velho tinha saído para cumprir a sua missão, Ulisses viu que Minerva, do lado de fora da casa, o chamava com sinais.

— Pois não, deusa? — disse o mendigo.

— Ulisses, protegido dos deuses, chegou a hora de se revelar ao seu filho -disse a deusa, tocando em Ulisses com sua vara e restituindo a sua antiga forma. — Vá e mostre-se a Telêmaco tal como é!

Ulisses voltara a ser o antigo rei e herói: o peito outra vez largo, as barbas negras e luzidias, os braços musculosos e os dentes firmes. Quando Telêmaco o viu retornar, tomou um susto:

— Velho mendigo, você é, então, um deus, como imaginei desde o começo? — disse o jovem, que pressentira desde o início estar diante de um ser que não era deste mundo.

— Não sou deus algum, mas apenas Ulisses, o seu pai ! — disse o homem que entrava.

Telêmaco relutou durante muito tempo em acreditar que tal milagre fosse possível, até que Ulisses, perdendo a paciência, visto estar ávido por abraçar o filho que não via há mais de vinte anos, envolveu-o em seus braços, retirando da alma de Telêmaco toda dúvida.

Depois de aliviarem do peito as lágrimas há tanto tempo represadas, Ulisses e Telêmaco sentaram-se para conversar sobre o estado aflitivo em que se encontrava o infeliz reino de ítaca.

— Meu pai, como fará para aparecer diante de toda aquela gente e vingar as afrontas que lhe fizeram durante a sua ausência? — disse Telêmaco.

— Esteja calmo — respondeu Ulisses, encarando o jovem com firmeza. — Já assentei tudo o que haverá de ser feito junto com Minerva, a deusa que me assiste em todos os perigos.

Ela também está sedenta de grande morticínio, tal como a minha alma. Mas é preciso que façamos a coisa com maior astúcia do que a deles próprios, pois caso contrário estaremos nos expondo a uma derrota humilhante dentro de nossa própria casa.

— Sim, mas e Penélope, minha mãe?

— Por enquanto ela não deverá ser informada de nada, nem sequer de meu regresso.

Aliás, nem o próprio Eumeu, guardador de porcos, deve saber de minha volta, ao menos por enquanto, pois bem sabemos que servos dóceis têm o coração mais mole do que o das próprias mulheres.

Telêmaco sorriu alegremente: aquele era de fato o seu velho pai!

— Fico grato aos deuses por saber que você continua exatamente o mesmo — disse ele, dando um novo abraço ao pai.

Mas para Ulisses o capítulo curto, embora sincero, das ternuras já terminara; suas energias já haviam outra vez se transferido inteiras para o cérebro, e era ali que ele acomodava com verdadeiro regalo a sua alma.

— Vamos trabalhar, garoto — disse Ulisses, tocando a testa de Telêmaco com o dedo. —

Se não me engano, temos outra vez pela frente a melhor diversão deste mundo: enganar os enganadores.

♦♦♦

Penélope, a rainha de ítaca, reencontrara finalmente o filho, depois de alguns meses de ausência; ela sabia que os pretendentes não iriam desperdiçar a chance de atentar contra a vida de Telêmaco assim que ele tentasse regressar de seu périplo inútil, mas foi com infinito alívio que soube do truque que Minerva usara para despistar os traiçoeiros que haviam armado a emboscada.

Enquanto isto, Antínoo, chefe dos pretendentes instalados no palácio de Ulisses, homem cúpido e violento que havia tramado a morte de Telêmaco, mordia a mão de raiva e frustração.

— Eis o moleque de volta à casa! — disse ele a Anfínomo, outro dos solertes pretendentes. — Não é bom para nós que Telêmaco esteja o tempo todo a procurar pelo pai.

— Calma, Antínoo — respondeu o outro, levantando um grande copo, cheio de vinho até às bordas. — Não faltará ocasião para que também a este os deuses dêem um jeito de fazer apodrecer os brancos ossos numa praia deserta, tal como ao pai certamente o fizeram.

Neste instante chegavam ao palácio Ulisses, outra vez na condição de mendigo, e Eumeu, o guardador de porcos, ainda ignorante da verdadeira identidade do seu companheiro. Quando Ulisses passou pela soleira, percebeu que um cão coberto de sarna erguera a cabeça para encará-

lo. Estava preso num pequeno redil, sem espaço sequer para se movimentar — o que aliás, nem podia mais fazer, devido ao seu estado de fraqueza e desnutrição -, e não tinha forças nem ânimo para manter erguida a cabeça. Desde a partida de seu amo, o rei de ítaca, companheiro inseparável de viagens e caçadas, que sua vida passara a ser um tecido de maus-tratos e violências, até que se vira reduzido, afinal, àquele triste estado.

Ulisses também reconheceu imediatamente o velho Argos — pois tal era o nome do cão

— e deixou que uma lágrima rolasse disfarçadamente. Sem que ninguém percebesse, retirou o velho cão da gaiola opressiva e imunda. Argos, sem forças para correr e agradecer ao amo, agachou-se ainda mais, erguendo apenas seus olhos úmidos e ganindo baixinho para o dono —

sim, não havia dúvida, o seu velho dono estava de volta!

A alegria extrema, entretanto, foi fatal para o seu organismo debilitado, como se Argos apenas esperasse pelo retorno de Ulisses para dar o último suspiro: sua alma combalida desceu em seguida para a mansão de Plutão, indo fazer companhia a Cérbero de três cabeças, o mais famoso de todos os cães, com assento ao lado do próprio rei do mundo subterrâneo. Ulisses não teve o desgosto de ver a morte do pobre cão, pois já tinha entrado com o guardador de porcos no enorme pátio do palácio, onde Telêmaco os aguardava. Vendo o pai chegar, o filho de Ulisses se aproximou e estendeu a ele um pão e um naco de carne recém-assada.

— Toma, mendigo, acalme a indigência do seu estômago e tão logo estiver refeito corra a passar a sacola pelos pretendentes que lá dentro estão saciando de carne as suas almas desde que o carro de Apolo despontou no céu.

— Faça logo isto — disse Eumeu, corroborando as palavras de Telêmaco. -Como diz o cego aedo, “não é bom o acanhamento num necessitado”.

Ulisses, erguendo-se, empunhou então sua tigela e foi mendigar uma migalha de cada um dos pretendentes.

— Vejamos agora quais são os justos e quais têm a alma negra.

Antínoo, o chefe dos pretendentes, que levava a palma da ruindade sobre qualquer outro ali dentro do palácio, logo ergueu a sua voz perversa:

— Eia, guardador de porcos, quem deu autorização para trazer até cá este mendigo sujo e repulsivo?

Ulisses, fazendo ouvidos moucos, prosseguiu a fazer a roda, recolhendo muitos bons pedaços de pão e deliciosa carne recoberta por fina manta de gordura.

Depois de ter passado por todos e enchido seu alforje de um bom farnel, retornou a Antínoo para testar-lhe mais uma vez o caráter infame.

— Que nume maldito nos enviou esta assombração para que nos estrague desta forma tão ameno banquete? — bradou Antínoo, o mais perverso dentro daquela casa.

— Pobre de Júpiter soberano se viesse à sua casa mendigar, só como teste, como fez a Baucis e Filemon! — disse Ulisses, tentando despertar a compaixão naquele peito endurecido.

Mas esta observação levou a cólera a crescer tanto no peito de Antínoo, que este, de um pulo, agarrou de um banco e meteu nas costas do velho mendigo.

— Isto é para você aprender a ver quem manda aqui.

Ulisses abanou a cabeça, controlando os seus nervos. Sabia que podia reduzir a um monte de ossos e de sangue aquele desgraçado, mas preferiu ficar em silêncio, pois a hora da vingança ainda não soara. Mas em seu íntimo maquinava terríveis desgraças.

Nisso, outro dos pretendentes ergueu-se, então, dizendo:

— Vai mal este banquete se vamos permitir que um mísero mendigo nos estrague a festa.

Esqueça o molambo, Antínoo, e passemos a coisas melhores.

Decerto se referia a uma imensa cratera de ouro repleta de vinho açucarado com oloroso mel, cristalino feito o âmbar, que brilhava a poucos passos dos seus olhos.

Neste instante surgiu Penélope diante de todos. Nunca estivera tão bela, e seus olhos traíam um ar de obstinada decisão.

— Pretendentes, vocês todos venceram, se queriam me impelir a uma decisão — disse ela, alçando a fronte. — Eis que amanhã se fará aqui um grande concurso entre todos aqueles que disputam a minha mão.

Penélope ergueu diante de todos os olhos um arco de madeira encerada, o mais belo e sólido que olhos humanos já haviam visto.

— Eis aqui o arco de Ulisses. Amanhã faremos um concurso no qual o vencedor será aquele que conseguir acertar com uma única flecha doze anéis enfileirados. Quem acertar primeiro receberá a minha mão e passará a ser rei de ítaca, gozando para sempre de todos os privilégios que esta condição acarreta.

Mal terminara de dar esta bombástica notícia, Penélope retirou-se. Havia cumprido perfeitamente as instruções que seu filho Telêmaco lhe dera.

— Eumeu, temos um trabalho secreto a fazer durante a noite — disse o filho de Ulisses ao guardador de porcos. — Posso contar com você?

— E claro, meu patrão e senhor! — respondeu Eumeu, cujas velhas narinas começavam a farejar de novo aquele odor que tanto o excitava na juventude: o odor de armas prestes a serem empunhadas contra a vilania.

♦♦♦

Durante a noite, Telêmaco e Eumeu recolheram, no grande salão onde se daria a disputa do arco e flecha, todas as armas ali guardadas e que ficavam sempre à mostra: escudos, lanças, arcos, gládios, achas e machados.

— Não esqueça, Eumeu, se alguém perguntar o motivo de tal retirada, diga que é para a limpeza, pois que estão todas encardidas da fumaça, e é bom que estejam todas reluzentes para o dia do banquete do casamento de minha mãe com o vencedor do torneio que ora se fará, entendeu? — disse Telêmaco ao velho, momentos antes de começar a competição.

— Sim, Telêmaco, tudo isto eu compreendo — disse o guardador de porcos. — A única coisa que não entendo é por que me oculta o que verdadeiramente está para acontecer dentro destas altas paredes.

Eumeu parecia magoado com aquela desconfiança; por isto Telêmaco resolveu logo lhe contar o que se passava.

— Eumeu, vou lhe contar um segredo, ao preço da sua vida! — disse. — Ulisses, rei de ítaca, já está entre nós, e de hoje não passará o dia do seu ajuste de contas…

O guardador de porcos perdeu a fala diante de tamanha surpresa. Dali a pouco começaram a adentrar o salão os pretendentes, vestidos em suas melhores vestes, mas trajando na alma ainda a mesma soberba e arrogância. Cada qual já se considerava o vencedor e se preparava para as homenagens que receberia de todos os outros derrotados concorrentes.

Apoiado a um fino escabelo estava o arco de Ulisses, tendo ao lado uma aljava dourada repleta de aceradas flechas com pontas prateadas. Penélope, radiosa, surgiu logo em seguida.

— Atenção vocês todos, chegou o momento em que deverão fazer o tremendo esforço de deixarem de comer e beber por um instante para que possamos dar início a isto.

O primeiro dos pretendentes chamado a empunhar o arco foi, claro, o infame Antínoo, chefe daquela turba insaciável. Tomando do arco, estudou-o e sopesou-o durante um bom tempo, gozando do prazer de ser o primeiro — e único, imaginava — a tentar o arremesso.

Depois de ter visto a frustração desenhada no rosto de cada um dos adversários, Antínoo tomou a primeira flecha, passou a língua escura de vinho nas delicadas cerdas da extremidade e tentou encaixar a seta no arco.

Mas para seu desgosto e vergonha supremas, não foi capaz de armar o arco nem de retesar as cordas. Seu rosto inteiro suava, inclusive seus globos oculares, arregalados, parecendo prestes a lhe cair da cara. Risinhos começaram a soar por todo o salão, a princípio tímidos, mas logo em seguida se transformaram num coro divertido e aberto.

— Basta, Antínoo, falta-lhe tutano nos ossos! — disse uma voz.

— É, entrega o arco de volta à rainha, ela armará melhor! — disse outra. Antínoo, frustrado, viu-se obrigado a passar a arma para outro competidor. A cabeça baixa era a denúncia cabal da sua derrota.

Mas o segundo não foi menos infeliz: não conseguiu retesar nem por um milímetro o arco. O terceiro foi pior, ao fazer saltar para cima o arco e as flechas, provocando um coro de risos que subiu à abóbada do salão e foi retumbar no alto como um trovão. Cinco, dez, quinze, quarenta pretendentes, nenhum foi capaz de levar a cabo a tarefa de armar o arco fatal.

— Basta, é uma maldita trapaça! — gritou Antínoo, feliz por ter descoberto a causa de seu inexplicável fracasso.

Neste momento, o mendigo surgiu por entre os pretendentes e tomou das mãos de Penélope o arco, dizendo:

— Rainha, com a sua augusta permissão, eu tentarei o que estes fracos senhores nem sequer puderam iniciar.

— O que este maldito mendigo está fazendo aqui outra vez? — bradou Antínoo, no último limite da exasperação.

O mendigo, sem dar ouvido às vaias, tomou então do arco e, após armá-lo com infinita facilidade, assestou a mira para os doze anéis, do outro lado da sala. O ruído gemente da seta cortou o salão inteiro e a seta foi cravar-se no alvo indicado, após haver atravessado ilesa os doze anéis.

Um grito de espanto saiu da boca dos pretendentes. Telêmaco fez um sinal para que Penélope fosse retirada da sala, na surdina. Quando ela já havia se recolhido ao seu quarto, cercada por soldados de sua confiança, Telêmaco retornou para o salão.

— Pode trancar as portas — disse ele a Filécio, um ajudante que haviam cooptado na última hora. — Que estas portas só se abram outra vez para a recolha dos cadáveres dos pretendentes, entendido?

O jovem assentiu, orgulhoso por poder tomar parte naquele episódio que a história haveria de gravar em letras de ouro.

Depois de retornar, Telêmaco ergueu os olhos ao pai, fazendo um sinal indicativo de que a matança podia começar.

Ulisses, ainda travestido de mendigo, dirigiu-se até o outro lado do salão, afastado de toda a malta dos pretendentes, levando consigo o filho e o guardador de porcos. Um temporal tremendo começara a desabar lá fora, e o ruído dos trovões, junto à penumbra que se fizera dentro do enorme salão, começou a encher de apreensão o coração dos usurpadores. Uma vez instalado em seu lugar, Ulisses desfez-se dos seus andrajos e trepando à grande mesa que havia à sua frente bradou à escória ajuntada no outro extremo do salão:

— A primeira competição está acabada e sou eu o vencedor — disse Ulisses, de arco em punho. — Vejamos agora como me sairei da segunda, com o auxílio de Apolo, do dourado arco.

Uma segunda seta partiu de seu arco com um silvo apavorante e foi enterrar-se direto na garganta de Antínoo. O chefe dos pretendentes, que tinha o pescoço erguido para entornar para o estômago mais um gole de vinho, perdeu a respiração; a ponta da flecha saiu-lhe pela nuca, e no mesmo instante a sua boca expeliu um jato escuro de sangue numa golfada hedionda. Antínoo, caído de quatro, ainda rastejou alguns metros antes de tombar sobre o solo.

— O mendigo está louco! — gritou um dos pretendentes. — Às armas, companheiros, às armas!

Mas não havia arma alguma ali dentro: de repente todos se deram conta de que estavam metidos dentro de uma terrível armadilha. Minerva fizera com que Ulisses retomasse sua antiga forma, resplandecendo agora aos olhos de todos quase como um deus — um apavorante deus que vinha para exercer vingança.

Os olhos dos pretendentes percorriam as paredes e recantos em busca de armas, mas não havia nenhuma. As portas que davam para as saídas estavam trancadas.

— Estamos encurralados! — bradou um deles.

Eurímaco, um dos pretendentes, tentou dissuadir Ulisses com meigas palavras:

— Está bem, se você é mesmo o rei que está de volta, filho de Laertes e protegido dos deuses, reconhecemos que tinha o direito de matar Antínoo, o mais arrogante de todos nós e aquele que mais desonrou o seu nome e a sua casa. Mas agora basta, valoroso Ulisses, sentemo-nos para negociar uma rendição digna e uma indenização generosa, eis que estamos, desde já, dispostos a pagar-lhe por tudo aquilo que consumimos na sua ausência. Vamos, deponha o arco e cesse a sua ira!

— Nem que me oferecessem todo o produto de suas heranças e demais riquezas eu titubearia em levar até o fim a matança a que me propus. O negócio para vocês, agora, é lutar ou fugir, porém não creio que qualquer de vocês possa fugir à morte que lhes tenho preparada.

Um suor gelado cobriu a raiz dos cabelos de todos os pretendentes amontoados do outro lado da sala, pois era a própria morte quem lhes falava pela boca de Ulisses.

— Já que o vingativo filho de Laertes quer nos matar um a um, companheiros, tratemos de lutar por nossas vidas! — bradou Eurímaco, sacando um punhal que trazia metido nas vestes, avançando resoluto para Ulisses.

O protegido de Minerva, no entanto, assestou no arco outra seta com a rapidez do raio e a disparou na direção de Eurímaco, que recebeu a flecha no peito e se estatelou sobre a mesa, espalhando pelo chão o vinho e os pedaços de carne.

Depois seu corpo escorregou até o chão, onde ficou por algum tempo escoicinhando até largar a alma junto com o sangue copioso que deitava pela boca.

Os demais, aterrados, viraram de lado a enorme mesa e se ocultaram atrás dela, como numa trincheira. Anfínomo, outro dos pretendentes, de gládio em punho avançou por sobre os destroços, mas foi atingido pela lança de Telêmaco, que o prostrou de borco no chão, com os dedos em garra raspando o mármore gelado.

— Agüente firme, meu pai, que vou à sala de armas buscar lanças, escudos e elmos brilhantes para que possamos proteger nossos corpos da ira destes cães! — disse Telêmaco, rompendo por uma saída que, dali de onde estavam, mantinham estrategicamente aberta.

Enquanto isto, Ulisses, ajustando as setas velozes ao arco, ia despedindo-as uma a uma, sempre certeiras, no peito e nas cabeças dos inimigos entrincheirados do outro lado do salão. Os corpos já estavam se empilhando, e um rio de sangue fumegava, saído de seus corpos sem vida, fazendo os pretendentes patinarem no chão grudento com cheiro de morte.

Entretanto, o guardador de cabras Melântio, que tomara o partido dos pretendentes desde a chegada destes e que sabia que seria punido com a morte tão logo acabasse o massacre ali dentro, decidiu, de fora, ajudar os inimigos de Ulisses, subindo ao depósito de armas e trazendo de lá um monte de lanças, escudos e elmos de bronze para eles.

— Telêmaco, veja! — disse Ulisses ao filho, que já havia retornado. — Os malditos estão recebendo ajuda de fora e já trazem ao peito armaduras e portam aos braços lanças e escudos!

O traidor Melântio foi aprisionado dentro do próprio depósito por Eumeu, guardador de porcos, quando lá retornara para nova remessa de armas aos pérfidos usurpadores.

Mas o mal estava feito: os pretendentes, empunhando suas lanças, prepararam-se para arremessá-las na direção de Ulisses e Telêmaco.

— Atiremos os primeiros seis dardos! — ordenou um dos canalhas.

As lanças voaram, cruzando todo o amplo salão, mas Minerva fez com que se desviassem do alvo, ferindo apenas levemente a mão de Telêmaco e o ombro de Eumeu, que se juntara aos dois na renhida luta.

Ulisses, então, ordenou também o ataque: as lanças dele, de Telêmaco e Eumeu partiram silvando e todas acertaram seus alvos, prostrando ao chão três dos pretendentes, que foram juntar-se ao enorme grupo dos cadáveres empilhados. O bando dos remanescentes aterrado, recuou, ainda mais para o fundo do salão. Alguns ganiam, tentando de rastos retirar do corpo dos mortos as lanças empapadas de sangue.

Minerva, então, decidiu acabar com a audácia daqueles usurpadores e surgiu ao alto do salão, portando sua assustadora égide — a sua couraça franjada de serpentes, que tinha ao centro a terrível cabeça da Górgona. O bando dos sobreviventes arremessou-se como uma boiada apavorada, saltando por cima das mesas e dos corpos pisados, acossado pelas lanças e dardos que o rei de ítaca e seus ajudantes desferiam sem cessar.

Muito tempo ainda se passou quando do lado de fora a ama de Ulisses escutou a voz do filho de Laertes, soberano de ítaca, ordenar com voz saciada:

— Podem abrir as portas.

A ama perdeu a voz quando as portas se abriram de par em par: todos os pretendentes estavam mortos, seus corpos empilhados sobre uma piscina de sangue.

— A justiça está feita e a justiça completa — disse Ulisses, que estava coberto de suor, de sangue e de pó.

Melântio, o guardador de cabras que traíra a confiança ao dar acesso ao depósito para os pretendentes, foi desamarrado e levado à presença de Ulisses. Diante de todos, recebeu uma morte impiedosa: teve o nariz e as orelhas cortadas, o sexo extirpado e dado aos cães para que o comessem, e as mãos e os pés decepados.

Quanto a Penélope, finalmente reencontrou o marido, após vinte anos de longa ausência, e ambos tiveram uma longa noite de amor no mesmo leito onde tantas vezes tinham provado das delícias que Vênus reserva aos amantes.